“O dia-a-dia nosso é roça. Levanta, trata os porcos, as galinhas e mexe nas plantinhas. Tem abundância, graças a Deus”. Assim, a agricultora Solange Aparecida Rodrigues relata seu cotidiano no acampamento Maila Sabrina, em Ortigueira, na região central do Paraná. Parte da abundância cultivada por Solange e outras 370 famílias que vivem no acampamento foi doada a quatro ocupações urbanas da Cidade Industrial de Curitiba (CIC), no sábado (11).
No dia da colheita, quinta (9), cada família do acampamento tinha como tarefa reservar uma parte do que produz para a ação de doação. De pouco em pouco, ao longo de uma tarde, um barracão do acampamento foi se enchendo com sacos dos mais variados alimentos. Na contagem final, 14 toneladas (14 mil quilos) distribuídas entre arroz, feijão, outros tipos de grãos, mel, pães, legumes e frutas. Além dos alimentos, a comunidade enviou 300 máscaras de tecido produzidas por costureiras que moram no local.
O esforço coletivo da doação é uma forma de ajudar as ocupações urbanas que têm sofrido com os impactos econômicos gerados pela pandemia de coronavírus. A ação integra uma campanha de solidariedade que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tem feito em todo o Brasil.
De uma ocupação rural, os alimentos do Maila Sabrina viajaram por mais de 300 quilômetros até chegar às ocupações urbanas 29 de Março, Tiradentes, Dona Cida e Nova Primavera, às vésperas da Páscoa.
Edna Eliana Bacilio, integrante da coordenação da comunidade Dona Cida, relata que desde a segunda semana da quarentena algumas famílias começaram já não tinham comida em casa: “A maioria das pessoas da comunidade não está tendo como sair pra trabalhar. Estão presas na comunidade, sem emprego e sem ter da onde tirar. Essa doação que veio vai ajudar bastante as famílias”, conta a coordenadora.
“Se não fosse a ocupação da fazenda e a reforma agrária isso não seria possível. Se não fosse as famílias que ocuparam a terra estarem produzindo comida. Nós somos gratos por estar na terra pra produzir e poder hoje ajudar as famílias da cidade”, diz Jocelda de Oliveira, integrante da coordenação do acampamento.
O território da comunidade Maila Sabrina tem 10.600 hectares, que já foi um dos maiores latifúndios do Paraná. Antes da ocupação, a área sofria devastação ambiental pela produção de búfalo, sem cumprir os critérios de Reserva Legal.
Do asfalto ao chão de terra
Algumas das pessoas que hoje vivem e produzem no acampamento Maila Sabrina tiveram também a experiência de morar em grandes centros urbanos. É o caso de Edna dos Santos, que viveu em área rural até os 17 anos, quando mudou-se para a cidade com a família.
“Eu trabalhava de empregada, ganhava um salário [mínimo], não dava. Eu tinha um salão de cabeleireira e também não dava. Eu ia dormir pensando nas contas do final do mês e era muito difícil”, conta.
Hoje, morando no acampamento, Edna diz que produz seu próprio alimento. “Arroz, feijão, meu autossustento. E pra mim é uma satisfação estar doando alimentos pro pessoal da cidade, porque eu sei que a vida lá não é fácil”.
Assim como Edna, Clóvis Coelho Soares, conhecido como Nicão, também já sentiu na pele as dificuldades que um trabalhador urbano pode enfrentar. Antes de mudar-se para o acampamento Maila Sabrina, em 2011, Nicão vivia na cidade, onde trabalhou em madeireira e indústria, foi operador de máquina e motorista de caminhão. Hoje, Nicão se dedica ao trabalho na terra, planta arroz, feijão, milho para os animais, batata doce, mandioca e banana.
“Da terra a gente consegue se alimentar bem, graças a Deus, com produtos de qualidade e fazer algo mais. Ter capacidade de doar alguma coisa pra alguém que precisa é um prazer”, diz.
Apesar das diferenças, as semelhanças
Do ponto final dos alimentos, na Cidade Industrial de Curitiba, Roberto Baggio, da coordenação estadual do MST, relaciona a realidade das famílias moradoras de ocupações urbanas e rurais: “Estamos aqui numa grande área ocupada que tem os mesmos problemas dos camponeses, sem moradia garantida, sem infraestrutura, sem água, sem casa. O que revela que os problemas do povo brasileiro são parecidos em todos os locais”.
De 2015 a 2018, as ocupações urbanas da Cidade Industrial de Curitiba sofreram reiteradas ameaças de despejo. Em Ortigueira, a área do acampamento Maila Sabrina foi ocupada em 2003 e a ordem de reintegração de posse foi emitida no mesmo ano. A disputa jurídica segue desde então e as ameaças de despejo se intensificaram ao longo de 2019.
Em todo o Paraná, existem cerca de 200 ocupações urbanas irregulares na iminência de despejo. A mesma angústia do risco de despejo assombra cerca de sete mil famílias acampadas no campo.
Ações de solidariedade em todo o estado
A exemplo do que tem ocorrido em vários estados brasileiros, os acampamentos e assentamentos do Paraná estão realizando doações de alimentos em todas as regiões do estado. Na terça-feira, dia 7, 5 toneladas de alimentos orgânicos foram doadas pelos acampamentos Maria Rosa do Contestado e Padre Roque Zimmermann, em Castro, e o pré-assentamento Emiliano Zapata, em Ponta Grossa.
Em Castro, 3 toneladas de alimentos foram doadas a cinco Centros de Referência de Assistência Social (CRAS). Já em Ponta Grossa, 2 toneladas de produtos foram destinadas ao Banco de Alimentos do Serviço de Obras Sociais (SOS), da Prefeitura Municipal.
Nesta sexta-feira (10), comunidades do Oeste do Paraná também organizaram a arrecadação de 2 toneladas de alimentos para doar aos povos indígenas da etnia Guarani, moradores de reservas da região.
Ainda neste sábado de Aleluia (11), o assentamento Eli Vive, de Lerrovile, Londrina, doou cerca de 7,5 toneladas de alimentos a famílias da região sul da cidade. Na região Centro do estado, cerca de 2 toneladas de produtos foram doadas a famílias urbanas, na quinta-feira e neste sábado.
Além de comida, a Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória (Copavi), localizada no assentamento do MST Santa Maria, em Paranacity (PR), doou 60 litros de álcool 70% para o Hospital Municipal Doutor Santiago Sagrado Begga. O álcool será usado pelos profissionais de Saúde do município.
No Paraná, 7 mil famílias vivem em 70 acampamentos do MST e cerca de 25 deles enfrentam o risco do despejo. O estado tem 24 mil famílias assentadas, que moram em 369 assentamentos da reforma agrária.