Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.
Não imaginei que em plena noite após aprovação da reforma trabalhista espanhola o meu telefone celular se enchesse de mensagens perguntando sobre o que havia acontecido no congresso espanhol. Foi aprovada? Sim. Pero… no. Assim posso dizer. Um voto errado do Partido Popular. Um erro desconcertante da presidenta do parlamento, socialista. Uma mudança de voto de última hora de um partido minúsculo. E a extrema direita (posso dizer fascista) ameaçando derrubar a atrapalhada aprovação política nos tribunais da justiça espanhola (posso dizer justiça franquista, herdeiros da “última grande ditadura europeia”). Lawfare não foi só pra prender o Lula. Aqui é cotidiano também.
A resposta da minha amiga, a deputada Maria Dantas, brasileira no parlamento espanhol, logo que a perguntei – por Whatsapp – sobre o que havia acontecido no Congresso foi sintomática e única: “exausta” (estou exausta). Ela e o seu partido, Esquerda Republicana de Catalunha, votaram contra a proposta do governo espanhol. É fato que o conflito entre monarquia e república é pano de fundo nas relações entre o que se diz esquerda em Madri e o que se diz esquerda em Barcelona. Mas devo dizer que o papel de ERC foi decisivo nas negociações e, na minha opinião, foi o partido – corajosamente – que mais ajudou a entender o porquê de posicionar-se contra uma coisa que os dois maiores sindicatos nacionais (Comisiones Obreras e UGT) estiveram a favor. Enquanto estes sindicatos mais falavam em subir o salário de determinadas categorias – entre as que possuem melhor capacidade de contratação com contratos de trabalhos “indefinidos”, sem data para concluir – os sindicatos chamados “minoritários” (os que mais crescem, proporcionalmente), as Comunidades Autônomas mais à esquerda (Catalunha, a que mais gera emprego, na dianteira, e governada por ERC) e os ramos de trabalho mais precarizado (com piores contratos de trabalho; até mesmo contratos de 1 só dia) deixam cada vez mais claras as opções: mais emprego, pagando pior e em piores condições.
Pedro Sánchez seguirá resumindo o que não diz. Sabe quando está tudo tão ruim que ficar como está pode ser o pior? Lamento informar que não é bem verdade: o que falta é coragem ou aquela famosa vontade política para apostar que é possível não ceder às chantagens do grande mercado capitalista, o que segue influindo na política geral – principalmente por serem donos e patrões da grande mídia.
Na Espanha jamais se deveria falar de Lei Trabalhista sem falar da – pior ainda – Lei de Imigração. Pois afinal são os imigrantes que, segundo todas as estatísticas oficiais, acabam mais precarizados e pagando os patos das crises que ninguém sabe quando acabam e recomeçam, se é que acabaram.
A grosso modo, podem ler e reler e interpretar como queiram, mas este é – para mim – o principal resumo do que está acontecendo e vai aumentar: desta vez com um capitalismo selvagem mais feroz, batendo no peito e brindando com champanhe ao dizer que não foram eles que apoiaram o governo socialista; e sim que foi o governo socialista (apertado contra as cordas da governabilidade, – é bom que se diga) que apoiou a classe empresarial, os patrões. Se já faziam o que faziam, imaginem agora que se sentem mais legitimados por uma suposta esquerda que os apoia. E isso era tudo que não queria a cara B do Governo da Espanha, o Podemos. Gritavam para a ERC apoiar e não lhes deixassem sozinhos na foto com os barões capitalistas.
Para ter-se uma ideia da complexidade, ERC governa Catalunha com um programa independentista com apoio da direita catalã. Na hora de votar a tal reforma, a direita catalã – a de sempre – rachou com ERC e não negou ser a direita que é: votou a favor da reforma (mesmo sendo “radicalmente” contra o governo espanhol). Quando o assunto é capitalismo, capitalismo é. E será.
Fazia anos que o partido mais assumidamente neoliberal (Ciudadanos se chama, mais que Liberal, sem esconder-se ideologicamente) não votava junto com o governo que se diz socialista. Votou. Apoiou. Porque será? Odeia Pedro Sánchez mas votou com ele, já que ele negociou primeiro com os patrões.
A outra aposta é igual de hipócrita: é preciso criar mais empregos urgentemente na Espanha, senão a União Europeia (todas as instituições europeias estão presididas pela direita, pelo Partido Popular Europeu; enquanto o PP não governa nenhum país europeu) não mandará mais dinheiro dos fundos de resgate econômico da sindemia de Covid. Sindemia é Pandemia pra pobre. O vírus é igual pra todos. Mas sofrem, perdem e morrem mais os mais pobres – em qualquer lugar do mundo. Porque será?
Sabe o pior de tudo? Havia maioria para aprovar uma reforma de esquerdas se o governo espanhol que se diz de esquerdas quisesse. Não quis. É fato. Esse é o dado mais importante. Digam o que disserem.
Diálogo é palavra boa e bonita. Foi a mais usada pelo Podemos. Apostar pelo diálogo (pela negociação da contratação laboral), quem não quer? Omitiu de dizer que o diálogo entre desiguais não é diálogo. É imposição mesmo. Marx Morreu, a luta de classes não. Pelo contrário, a Espanha mostra que segue viva.
Falando em morte. É significativo que a esquerda brasileira festeje a vitória dessa tal reforma do belo diálogo social. Na mesma semana em que o país, Brasil, pega fogo (ou pelo menos deveria pegar) pela morte do congolês que foi cobrar o que o seu patrão não queria lhe pagar. O diálogo não deu certo e o jovem “se viu no seu direito” de protestar. Foi assassinado. Não houve diálogo, em resumo.
Lembram do que eu falei sobre a Lei de Imigração espanhola? Jamais deveríamos tratar de reforma trabalhista no Brasil sem falar da particularidade do regime escravocrata moderno que ainda se mantém à custa de quem? Dos imigrantes, também, apesar de que estes são proporcionalmente em menor número, num Brasil gigante. Mas principalmente já não dá pra esconder o debate que atualmente mais pega fogo no Brasil. A exclusão, a precariedade, a morte, no Brasil tem cor. E todos sempre soubemos qual é. A única diferença é que a hipocrisia dos nossos próprios privilégios brancos já não consegue se manter. E o pior é que não porque haja uma revolução social em curso no Brasil. É que, ao chegar no fundo do poço, a barbárie sobre a vida de qualquer ser humano não branco no Brasil os faz gritar de desespero e indignação: e agora que já perdemos tudo o que tínhamos de perder? Fazer o quê?
Em tempo: o Lula sabe muito bem que o que há de falar-se não é da norma de cada país, mas da regulamentação de uma normativa internacional, da Organização Internacional do Trabalho, da OIT. É disso, da Convenção 151 e 158 da OIT. AQUELA que foi entregue pela própria CUT ao próprio Lula no Planalto, no primeiro ano de governo seu (precisamente no dia 14 de fevereiro). Aquela OIT que ninguém mencionou quando aprovou sua reforma: Temer e o PP espanhol. O Lula, candidato, sabe que o nome é complicado: ultratividade, proibida por sentença do STF brasileiro e que a manchete da website da CUT diz que foi recuperada na Espanha. Ele, mais que ninguém, sabe onde o sapato aperta.
Eu sou e serei CUTista (da CUT, no Brasil) mas estampar, HOJE, 4/2/2022, na primeira página da website da Central a manchete, em letras maiúsculas “ACABOU COM BICOS: Congresso da Espanha aprova reforma que garante mais direito aos trabalhadores” é uma ofensa a qualquer brasileiro que vive na Espanha e que está sofrendo na pele, literalmente, a verdade que essa manchete – vergonhosa, a meu ver! – esconde. Assim não vale. Quer debate? Vamos fazer…
@1flaviocarvalho. @quixotemacunaima. Sociólogo e Escritor. Ex dirigente sindical da CUT e ex Formador da Escola de Formação da CUT no Nordeste. Barcelona, 4 de fevereiro de 2022.
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