Por Mariana Castro.
De um lado, escolas brasileiras festejam o “Dia do Índio”, celebrado no dia 19 de abril, por meio de uma imagem estereotipada, racista e limitada do índio, coberto por pinturas e empunhando flechas. Do outro, violência, invasões, assassinatos e 521 anos de resistência.
Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, Gersem Baniwa, professor indígena e doutor em Antropologia Social, explica que a visão folclórica do indígena é resultado da ignorância e do racismo europeu, que defendia que os povos colonizados eram inferiores.
Para que essa visão seja superada, o intelectual aposta na educação, que considera um instrumento capaz de atingir as diversas classes sociais. “É por meio da educação que se atinge as classes das elites econômicas e a mídia”, exemplifica.
Filho de pai da etnia Baniwa e mãe da etnia Baré, Gersem José dos Santos Luciano – nome registrado em cartório por padres missionários – ou Gersem Baniwa, como é mais conhecido, nasceu na aldeia Yaquirana, no Alto Rio Negro, próximo ao município São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas.
Professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Baniwa integrou o Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2016 e esteve à frente da Coordenação do Conselho da Educação Escolar Indígena (CGEEI), no Ministério da Educação.
O intelectual defende uma educação autêntica, descolonial e libertadora, capaz de acolher a pluralidade de culturas e saberes. “A escola não indígena precisa descontruir a sua cosmovisão e as suas referências dessa uniformidade e superioridade, e abrir espaço para outras culturas, tradições, saberes e valores”.
Baniwa afirma que o consumo desenfreado está levando toda a humanidade ao suicídio, e a única saída é o reencontro do homem com a natureza e consigo mesmo.
“O homem se deslocou da natureza, se sobrepõe sobre a natureza. Ele quer dominar. Quer, no fundo, destruir a natureza. Isto é um caminho de suicídio. É um caminho absolutamente sem nenhuma garantia, nenhum futuro, nenhuma sustentabilidade. Até a ciência econômica, matemática e física indica que precisa haver esse equilíbrio entre, por exemplo, o consumo e aquilo que a natureza dispõe”.
Durante o mês de abril, a programação do “Abril indígena” destaca a memória, a intensificação da luta dos povos indígenas, a urgência da demarcação de territórios e o fim da violência no campo.
Confira a entrevista completa.
Brasil de Fato – Nessa semana, escolas de todo o Brasil seguem reforçando uma imagem folclórica do índio, descalço, com penas na cabeça e uma flecha na mão. O quanto essa visão está distante da existência e da pluralidade dos povos indígenas, e como podemos superá-la?
Gersem Baniwa – Em primeiro lugar, investindo fortemente em programas educativos. Acho que o melhor caminho para superar a dificuldade de acolhimento, compreensão e convivência com a pluralidade e a diversidade, principalmente indígena, é por meio da educação, construindo uma nova consciência, uma nova compreensão do que é a humanidade e do que são as pluralidades das sociedades.
A Lei de 11.645 [que incluiu a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” no currículo das escolas] deveria receber maior e melhor atenção, inclusive em termos de investimentos financeiros, para qualificar professores.
Para que esses professores possam atuar com um material didático de qualidade, para que, de fato, se construa uma nova cosmovisão e uma nova consciência das novas gerações de brasileiros, e que se supere aquelas tradições racistas e preconceituosas do período colonial.
Essas tradições tinham a certeza que a única humanidade, ou a única sociedade da vida humana e civilizada, eram aquelas originadas ou ligadas às sociedades ocidentais europeias.
A educação é o caminho porque é por meio da educação que se atinge tanto as classes das elites econômicas, quanto os jornalistas e a mídia.
Boa parte do preconceito, da discriminação e do racismo são resultado, em primeiro lugar, do desconhecimento e da ignorância. Em segundo lugar, do imaginário dominante europeizado e etnocêntrico.
Inclusive, o governo Bolsonaro faz uso dessa imagem exótica para colocar em prática um projeto de extermínio indígena, incentivando que o agronegócio e mineradoras assumam o poder sobre terras indígenas.
Esse é o grande problema. Isso é resultado da ignorância, mas também do racismo estrutural, civilizatório, do ocidente europeu, que sempre considerou as sociedades europeias como as únicas humanidades, e que deveriam ser tratadas como civilizadas. Todos os demais povos, principalmente os povos colonizados, como os indígenas, ou não seriam humanos, ou seriam inferiores.
Essa é a visão do presidente da República, que vai na televisão para todo o Brasil e diz: “Olha, os indígenas precisam sair dos seus zoológicos para virem até a nossa civilização e se tornarem humanos como nós”. Ele claramente passa essa visão de desumanidade indígena.
Nós superamos essa visão com formação, com educação.
As escolas indígenas têm um papel fundamental na luta dos povos por seus direitos. O senhor defende, inclusive, uma escola indígena descolonial e libertadora. Como seria esse modelo educacional e o que é preciso para alcançá-lo?
Do ponto de vista da escola dos índios, precisamos ter uma escola autônoma, autêntica, original. Não é ser contra a escola não indígena, mas precisamos ser favoráveis à própria educação indígena, que tem seus valores ancestrais, históricos, tradicionais, que valoriza a família, a comunidade, a sociedade, a humanidade, a natureza e o meio ambiente.
São valores muito fortes, muito importantes no passado, presente e futuro. É muito importante valorizar esse aspecto da educação indígena, com esses valores, e [ao mesmo tempo] abertos para o mundo e para as novas tecnologias.
A escola não indígena precisa descontruir a sua cosmovisão e as suas referências dessa uniformidade e superioridade, e abrir espaço para outras culturas, tradições, saberes e valores. Essa seria a contribuição da Lei 11.645.
Que caminhos a sabedoria e a trajetória de resistência dos povos indígenas poderia apontar para seguir com esperança de dias melhores?
Sem dúvida nenhuma, primeiro é preciso fazer uma guinada, uma volta ao passado, e se recompor. Uma das principais fragilidades da atual civilização moderna é a separação do homem e da natureza.
O homem se deslocou da natureza, se sobrepõe sobre a natureza. Ele quer dominar. Quer, no fundo, destruir a natureza. Isto é um caminho de suicídio. É um caminho absolutamente sem nenhuma garantia, nenhum futuro, nenhuma sustentabilidade. Até a ciência econômica, matemática e física indica que precisa haver esse equilíbrio entre, por exemplo, o consumo e aquilo que a natureza dispõe.
Precisamos desse retorno, desse equilíbrio total, global. Global não apenas da humanidade enquanto cosmo, mas dos seres humanos, da natureza, do mundo como ele é.
É é muito importante: voltar um pouco a essa experiência mais integrada, mais orgânica. Esse é o caminho. O caminho puramente do consumo e do individualismo só leva à destruição.
A segunda questão muito importante é fazer com que o futuro seja planejado por todos. Não apenas na integração do homem com a natureza, mas a integração entre os seres humanos, portanto, entre os homens. Essa questão da equidade é fundamental.
O que castiga o mundo hoje, em grande medida, é o preconceito, o racismo, mas principalmente o ódio. O ódio que existe no mundo, as guerras, as lutas. No Brasil, as polarizações ideológicas representam muito esse ódio. É preciso haver a refundação da sociedade entre si e com a natureza.
Esse é o único caminho possível: o reencontro, a recomposição do cosmo, portanto, do homem com a natureza, e a recomposição da humanidade consigo mesma, entre as diferentes sociedades humanas. Superar o ódio, os conflitos, as polarizações, as intrigas, e criar condições de vida, de sobrevivência e de felicidade para o bem viver.
É exatamente essa combinação do homem com a natureza e do homem consigo mesmo na sua diversidade. Porque a guerra, a ausência de paz, a ausência de tranquilidade, que gera toda sorte de miséria, é resultado, efetivamente, desse desamor entre os humanos, da falta de amor entre as sociedades humanas.
Essa é a lição dos povos indígenas. A principal lição pedagógica e civilizatória dos povos indígenas.