Por Sofia Pilagallo.
Profissionais e pesquisadores da saúde se uniram em nota de repúdio à nova publicação do Ministério da Saúde sobre aborto legal no Brasil, divulgada no último dia 8 de junho. No documento, intitulado ” Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento “ , consta, entre outras coisas, que não existe aborto legal no Brasil, mas sim aborto com “excludente de ilicitude”. A alegação chamou atenção de especialistas e vem repercutindo na mídia nos últimos dias .
“Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno”, afirma o documento do Ministério da Saúde. Segundo os médicos que assinaram a nota de repúdio, a alegação é falsa e vai na contramão do que diz o Código Penal.
Leia mais: Audiência pública onde maioria é contra o aborto legal gera relatos de nojo, revolta e indignação.
O aborto é garantido por lei em três casos: se a gravidez é decorrente de estupro, representar risco à vida da mulher ou no caso de anencefalia fetal, ou seja, quando não há desenvolvimento cerebral do feto. Por lei, qualquer hospital que ofereça serviços de ginecologia e obstetrícia deve ter equipamento adequado e equipe treinada para interromper uma gravidez nas situações previstas em lei.
Ainda no documento, o Ministério da Saúde diz, por exemplo, que a curetagem uterina é um dos métodos recomendáveis para a interrupção da gravidez. O procedimento consiste em esvaziar o interior do útero com o auxílio de uma cureta, instrumento cirúrgico em forma de colher. Mas, como explicou ao iG a ginecologista Helena Paro, membro do Comitê de Aborto Seguro da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO, na sigla em inglês) , o método é considerado obsoleto e prejudicial à mulher pelas principais autoridades em saúde. As evidências científicas mais sólidas sugerem que as maneiras mais recomendáveis de se interromper uma gravidez são por meio da aspiração intrauterina e do uso do medicamento Mifepristona, que não está disponível no sistema de saúde brasileiro.
“Como profissionais e pesquisadores da saúde, sentimo-nos no dever ético de contestar publicamente as afirmações falaciosas disseminadas ao longo do documento, principalmente as que se referem aos aspectos técnicos e assistenciais relacionados ao aborto legal no Brasil”, escreveram os médicos na carta.
“Nos primórdios dos anos 1990, quando os primeiros documentos do Ministério da Saúde sobre o cuidado em aborto foram publicados, era compreensível que as recomendações não trouxessem uma avaliação criteriosa dos estudos, haja vista a dificuldade de acesso à internet e às bases de dados internacionais. No entanto, em 2022, não podemos aceitar um documento que não explicite o método de seleção desses estudos e tampouco avalie o nível de evidência e o grau de recomendação das condutas”, completaram.
Os médicos reuniram 14 informações pouco difundidas sobre o aborto legal no Brasil com o objetivo é trazer esclarecimento à população e desmentir inverdades que estão sendo disseminadas sobre o assunto, sobretudo nos últimos dias. Veja abaixo:
1. Sim, aborto é uma questão de saúde pública e de justiça social.
No Brasil, são mais de 200 mil internações por ano para procedimentos relacionados ao aborto, que custam, em média 40 milhões de reais por ano ao SUS. Dos 770 óbitos por aborto entre 2006 e 2015 que ocorreram no Brasil, a maioria foi entre mulheres pretas, indígenas, que viviam nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste.
2. Sim, existe aborto legal no Brasil.
Desde 1940, o aborto é legal nos casos de gravidez decorrente de estupro e nos casos de risco de vida à mulher. A partir de 2012, o aborto nos casos de anencefalia fetal também passou a ser legal no Brasil.
3. Aborto legal não é crime e ameaçar meninas e mulheres com investigação policial é tortura do estado.
A imposição da investigação policial para os casos de aborto legal é uma tentativa de intimidar a população e os profissionais de saúde que assistem meninas e mulheres com direito ao aborto.
4. A coleta de vestígios forenses é um direito sob consentimento da mulher.
A coleta de material biológico sem o consentimento da mulher é uma grave violação ética e de direitos humanos. A mulher também tem o direito de escolher o método de tratamento ao aborto de acordo com suas preferências e não é obrigada e submeter-se ao tratamento cirúrgico exclusivamente para a coleta de vestígios, já que a coleta não é possível durante o tratamento medicamentoso nas fases mais iniciais da gravidez.
5. Aborto legal via telemedicina é eficaz, seguro, reduz custos para o sistema de saúde e é recomendado pelas diretrizes internacionais.
Os “riscos” do aborto medicamentoso por telemedicina listados pelo Ministério da Saúde não encontram respaldo na literatura científica. O aborto chega a ser 14 vezes mais seguro do que o parto.
6. No conceito de aborto induzido, o elemento que o caracteriza é a
intencionalidade da interrupção da gravidez e não a viabilidade fetal.
O aborto induzido é a interrupção intencional da gravidez intrauterina por meios medicamentosos ou cirúrgicos, independentemente de peso fetal, idade gestacional ou viabilidade fetal.
7. O código penal brasileiro não estabelece limites de idade gestacional para o aborto legal.
Estabelecer um limite de idade gestacional ausente na legislação brasileira serve a propósitos ideológicos, como o de atrasar a assistência de meninas e mulheres, de maneira a impedir o acesso ao aborto legal.
8. A indução da assistolia fetal em idades gestacionais avançadas pode trazer benefícios emocionais, legais e éticos em situações especiais.
Essa é uma recomendação de sociedades de Ginecologia e Obstetrícia e suas sub-especialidades, como a Society of Family Planning (EUA) e o Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (Inglaterra).
9. Urge a incorporação da mifepristona e a melhoria do acesso ao misoprostol no Brasil.
A omissão do Estado brasileiro em prover a mifepristona, listada como medicamento essencial pela OMS desde 2005, e a manutenção de regulamentações que impõem dificuldades para a aquisição do misoprostol pelos hospitais, são barreiras de acesso ao aborto seguro que contribuem para as mortes relacionados ao aborto no Brasil.
10. A curetagem uterina é um tratamento obsoleto e não é recomendada para o aborto de primeiro trimestre.
A recomendação da curetagem uterina em um documento de 2022 reflete a incapacidade técnica do Ministério da Saúde em prover orientações atualizadas, baseadas em evidências científicas.
11. Não se recomenda a administração de imunoglobulina anti-D antes da 12ª semana de gestação.
Trata-se de mais uma recomendação desatualizada da pasta da saúde.
12. O método anticoncepcional de escolha da mulher pode ser iniciado no primeiro dia do tratamento medicamentoso ou cirúrgico e em qualquer dia do ciclo menstrual.
Essa abordagem é conhecida como contracepção de início rápido e tem a vantagem de reduzir o tempo durante o qual a pessoa possa estar em risco de uma gravidez não planejada por estar sem uso de algum método contraceptivo e evita barreiras e custos relacionados ao retorno para iniciar um método que requer presença no serviço de saúde.
13. Uma a cada três mortes maternas são decorrentes de causas obstétricas indiretas, ou seja, por doenças maternas graves.
A limitação da indicação do aborto terapêutico a uma situação “in extremis”, como a pasta da saúde tenta dissuadir nesse documento, resulta em decidir pelo tratamento em condições clínicas gravíssimas, quando a decisão para interromper a gestação já não consegue salvar a vida da gestante.
14. A objeção de consciência tem limites éticos para sua invocação.
Segundo as diretrizes mais recentes da OMS, se a objeção de consciência impedir o acesso ao aborto legal, esse recurso torna-se “indefensável”.
—