Por Letycia Bond
Apesar de o debate em torno do aborto se manter em contornos inflamados, a maioria da população brasileira reconhece que o procedimento, quando feito sob condições precárias, representa ameaça às mulheres. Oito em cada dez pessoas (84%) dizem saber que o aborto clandestino é uma das principais causas de morte de grávidas no país.
O dado consta em relatório divulgado pelo Instituto Patrícia Galvão e pelo Instituto Locomotiva, nesta sexta-feira (25). Para conhecer as impressões dos brasileiros sobre o assunto, as instituições colheram respostas de 2 mil pessoas com idade a partir de 16 anos, de 27 de janeiro a 4 de fevereiro.
A pesquisa também revela que 77% concorda que quem mais é prejudicado pela criminalização do aborto são as mulheres de baixa renda, que não têm condições de pagar por orientação médica, ao realizá-lo. Ao todo, 67% dos respondentes declaram que considerar a interrupção provocada da gravidez um crime não resolve o problema, já que as mulheres continuarão a optar por ele e, como consequência, a morrer, quando submetidas a um aborto inseguro.
Para 73%, quem defende a proibição ao aborto em qualquer circunstância não leva em conta os impactos na vida da mulher ou menina grávidas, caso sejam obrigadas a levar a gestação adiante. Foi por vislumbrar de maneira clara o que a aguardava que Cátia* escolheu abortar. Tinha 18 anos quando descobriu que estava grávida de um rapaz com quem se relacionava de modo casual e conta qual foi a reação do jovem, que enviou a resposta por escrito: “Se você quiser abortar, é um problema nosso. Se quiser ter o bebê, é um problema seu”.
O aborto como plano consolidou-se após conversas com uma amiga da família mais velha, colega de trabalho da irmã. A mulher, 14 anos mais velha do que Cátia, acabou sendo sua confidente e a orientou, tornando a noção sobre o procedimento abortivo mais simples.
Foi essa amiga quem a acompanhou no dia marcado. “Foi um procedimento seguro e eu fui bem assistida. A clínica era conhecida, até hoje deve existir, todo mundo sabia o que acontecia na clínica. Mas era na clandestinidade”, relata Cátia.
“Foi um ambiente bem organizado. Aconteceu, na época, algum atraso em relação à minha ficha, que se perdeu. Outras mulheres foram passando na minha frente e eu ficando. E, nesse momento, a gente ficava numa pequena sala de espera. Havia uma moça chorando muito, eu a acalmei, fiz todo um discurso falando da hipocrisia da sociedade, tentando acalmá-la um pouco. Eu estava muito tranquila, depois que essa amiga da família disse que tudo era muito seguro”.
Cátia acrescenta que não teve sequelas, tudo transcorreu bem e que, por uma década, não teve remorso. O sentimento chegou depois, quando engravidou novamente, aos 29 anos, e veio à tona sempre que se tornou mãe novamente. Ela tem quatro filhas, que não sabem que ela fez um aborto. “Se nós fôssemos uma sociedade onde o aborto fosse legalizado, onde não houvesse toda essa coisa de culpar a mulher que aborta, teria sido um pouco mais tranquilo esse sentimento que aflorou durante as minhas gestações. Sou completamente favorável à legalização em qualquer circunstância, acho que ser mãe é muito difícil em uma sociedade patriarcal, onde o peso da criação e sustento dos filhos recaem sobre a mulher”, pondera.
“Não vejo como alguém ser mãe sem ter escolhido isso, porque implica uma série de sacrifícios, abrir mão de muitas coisas. Para mim, a maternidade tem que ser uma coisa que você diz: aceito. Senão, ao contrário, é uma tortura”, emenda, enfatizando que “ninguém cobra nada do homem”, pelo fato de a gravidez acontecer no corpo da mulher.
Para Viviane*, a decisão sobre o aborto envolveu dilema, uma vez que sempre se viu contra a interrupção da gravidez, até meados de 2014, quando começou a mudar de ideia. Diferentemente de Cátia, ela tinha maior intimidade e proximidade com o pai da criança, seu namorado, na época.
Hoje Viviane é mãe e, mesmo gostando da maternidade, afirma que a rotina, às vezes, a sobrecarrega. Por isso, no seu entendimento, não deve ser algo exigido das mulheres. “Não sou capaz de apoiar que meninas e mulheres passem pela maternidade de forma compulsória. Não é mais uma opção. Para mim, é necessário que tenha uma política pública que ampare as mulheres que decidem interromper a gravidez. Sou 100% a favor do aborto, em qualquer circunstância”, defende.
“Para mim, o caso é questão de saúde pública.”, argumenta, em consonância com 64% da amostragem.
Perguntada sobre casos de mulheres de seu círculo social que falem abertamente sobre ter feito um aborto, Viviane diz que as experiências somente são compartilhadas quando alguém precisa de um. “O que eu noto é que as mulheres não falam sobre o aborto, principalmente entre as que são contra, até que precise fazer um. Aí, quando você precisa fazer um, descobre que várias mulheres ao seu redor fizeram também.”
Identificar mulheres ou meninas que engravidaram após serem vítimas de estupro também pode ser algo mais comum do que se imagina. O levantamento sublinha que 21% dos participantes conhecem alguém nessa situação. Isto é, 22,6 milhões de pessoas conhecem uma mulher ou menina que já se encontrou nessa situação.
A parcela que sabe de pelo menos um caso de gestação decorrente de estupro que não foi interrompida é de 11,9 milhões de pessoas (52%) e a de pessoas que conhecem um caso de gestação interrompida de uma vítima violentada é de 7,6 milhões (34%). A pesquisa sinaliza, ainda, que a maioria da população apoia a gravidez de forma legal e segura, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), quando a mulher/menina foi vítima de estupro – 89% das mulheres, ante 85% dos homens.
Entrevistada pelo Brasil de Fato, a professora de Direito Beatriz Corrêa Camargo, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), avalia que, quando o estupro envolve um agressor desconhecido da vítima, há uma “maior compreensão” em relação ao aborto, se escolhido como melhor opção. “Agora, é claro, hoje a gente já usa o termo em contextos mais amplos”, diz ela, em referência ao estupro marital, cometido por um homem, contra sua companheira, que, hoje em dia, já não é mais tolerado tão amplamente.
A perspectiva da docente Marcella Magalhães Gomes, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é compatível com a de Beatriz, no sentido de que os papéis definidos como adequados para mulheres e para homens afeta, por completo, a forma como se relacionam. “A ideia da cultura do estupro, do conceito que foi criado, é essa ideia de uma sociedade na qual você cria forças, ideologias e vários outros instrumentos de propagação e também de justificação de diferença singular, capital, entre homens e mulheres quanto a posições sociais. E que essa diferença, de alguma maneira, não é algo socialmente engendrado, mas que é algo natural.”