Por Luciana Motoki.
A mulher engravidou. Conforme seu útero cresce, ela percebe que o corpo vai deixando de ser somente dela. Desconhecidos colocam a mão em seu ventre sem pedir licença, enquanto perguntam: “Para quando é?”. Algumas respondem: “Está previsto para dia tal, mas vou aguardar o parto normal”. E escutam: “Corajosa! Conheço uma mulher que ficou aguardando o parto normal e o bebê passou da hora. Quando fizeram a cesárea foi tarde demais. Cuidado! Se eu fosse você, agendava logo a cesárea, para não correr esse risco”.
Quantas grávidas passaram por situações semelhantes, em que alguém coloca a cirurgia como a forma mais segura de nascer? Pode ser o médico que acompanha o pré-natal, um familiar, um amigo ou até mesmo um estranho.
Vivemos em um país em que a maioria dos nascimentos ocorre por via cirúrgica. O índice de cesarianas no Brasil é o segundo maior em todo o mundo, atrás apenas da Costa Rica.1 O percentual de cesáreas em 2016, segundo dados do Ministério da Saúde, foi de 55,5%. Na rede pública, esse percentual atingiu 40,2%, enquanto na rede privada ficou em torno de alarmantes 85% (segundo dados da Agência Nacional de Saúde). A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera aceitável que de 10% a 15% dos nascimentos ocorram por cesariana.
A pesquisa “Nascer no Brasil”, divulgada pela Fiocruz em 2014, aponta que quase 70% das mulheres brasileiras desejam um parto normal no início da gravidez. No entanto, uma minoria o tem como desfecho. O que leva essas mulheres a terminar a gestação numa cesariana?
Muitas são as causas atribuídas. Baixa remuneração dos planos de saúde para o parto (que pode demandar muitas horas de assistência) e comodidade para o médico (dia e hora marcados) estão entre as principais. Além disso, a visão equivocada de que a cesárea é mais segura e de que o parto normal envolve um sofrimento muito grande são fatores que influenciam o índice. No entanto, é bem estabelecido na literatura médica que a cesárea está associada a um maior número de complicações (hemorragias e infecções na mulher; dificuldade respiratória e necessidade de UTI nos recém-nascidos).
A assistência ao parto no Brasil é carregada de intervenções de rotina, muitas vezes desnecessárias e sem embasamento científico. A mulher, quando entra em trabalho de parto e procura assistência, tem de enfrentar um atendimento pouco empático nas maternidades: são privadas da presença de um acompanhante de sua escolha durante todo o processo ou parte dele (pré-parto, parto e pós-parto), ficam impossibilitadas de ficar na posição que lhes seja mais confortável para lidar com a dor, são submetidas a exames de toque excessivos e jejum prolongado. Além disso, escutam frases violentas em vez de palavras de incentivo. O exemplo clássico é: “Na hora de fazer não gritou, né?”. Por fim, têm as pernas amarradas em posição ginecológica e o períneo cortado rotineiramente, enquanto alguém sobe com força em seu abdome para “ajudar” o bebê a nascer porque “ela não está colaborando”.
Quando finalmente nasce, o bebê não é colocado diretamente em seu colo e é separado para passar por procedimentos que poderiam aguardar, como pesar e vacinar. O recém-nascido também pode sofrer com o excesso de intervenções assim que nasce, como ter suas vias aéreas aspiradas sem indicação. Em muitas maternidades, esse bebê é encaminhado para um berçário e por lá fica algumas horas (às vezes muitas) em observação, sem estar em contato com a mãe e estabelecer um vínculo muito importante, especialmente para estimular a amamentação.
Com esse tipo de assistência, é impossível que essa mulher fale da sua experiência de parto de forma positiva. É bem provável que ela não deseje um segundo parto normal.
Cada vez mais, mulheres têm buscado informações para não sofrer violência no parto ou serem submetidas a cesarianas sem indicação. Existe um movimento, chamado humanização, que apoia e ajuda as mulheres que procuram outra forma de dar à luz.
Ao contrário do que muitos pensam, a humanização não preconiza o parto natural a qualquer custo, tampouco ignora a segurança para mulher e bebê. É um modelo de assistência que respeita o protagonismo feminino e a fisiologia do parto, e, caso haja necessidade de intervir no processo, a mulher é informada sobre os riscos e os benefícios da intervenção, sempre proposta com base em evidências científicas. A mulher participa das decisões do parto e compartilha responsabilidades. Parto humanizado pode ser na água, de cócoras, deitada, natural ou com intervenções.
Atualmente, existem grupos de apoio a mulheres que desejam ser atendidas nesse modelo de assistência. Boa parte desses grupos são gratuitos e semanais. Neles são discutidos diversos temas relacionados a gestação, parto e pós-parto, com ênfase maior na fisiologia do parto, que acaba sendo o momento de maior vulnerabilidade. Existem ainda grupos virtuais que facilitam o acesso à informação sobre o tema.
Essas iniciativas são de grupos independentes e não estão vinculadas a projetos governamentais.
Infelizmente, essa assistência não é acessível a toda a população, já que a maioria das equipes que presta esse tipo de atendimento é particular. A usuária do SUS possui poucas opções de maternidades que oferecem atendimento humanizado, e mesmo assim conta com a sorte de a equipe de plantão respeitar seu plano de parto. As casas de parto são poucas (duas na cidade de São Paulo), e há dificuldade de transferência para um hospital que respeite e acolha as mulheres sem julgamentos.
Em 2016, o Ministério da Saúde publicou o Protocolo Clínico de Diretrizes Terapêuticas para a Cesariana, com parâmetros que devem ser seguidos pelos serviços de saúde, visando reduzir o número de cesarianas desnecessárias. Em 2017, o Ministério da Saúde anunciou as Diretrizes para o Parto Normal e Humanizado, com medidas que devem ser incorporadas por todas as maternidades, centros de parto normal e casas de parto, visando ao respeito no acolhimento e dando mais informações para o empoderamento da mulher no processo de decisão ao qual tem direito. Apesar de importantes, as medidas são insuficientes para garantir assistência humanizada a todas as usuárias do SUS.
As más práticas de atenção ao parto e ao nascimento, com suas altíssimas taxas de cesáreas e excesso de intervenções desnecessárias, contribuíram para que o Brasil não conseguisse atingir a meta da ONU de redução de mortalidade materna.
Há necessidade urgente de mudança no sistema obstétrico do país para melhoria da assistência ao nascimento. Descentralizar da figura do médico a assistência ao parto de risco habitual, permitindo a atuação de obstetrizes e enfermeiras obstetras, é uma medida eficaz para reduzir o número de intervenções, com maior satisfação da mulher no momento do parto e sem aumentar o número de eventos adversos.
É preciso discutir o nascer. Deixar que a mulher lute sozinha contra um sistema que oprime suas escolhas é mais uma forma de violência.