A “vila militar do Chaves” e o “politicamente correto”

Foto: Reprodução GShow

Por Victor Picchi Gandin.

Em diversas ocasiões as criações de Roberto Goméz Bolaños, o eterno Chespirito, foram parodiadas por outros programas humorísticos da América Latina, inclusive no Brasil, contendo desde finalidades meramente humorísticas a críticas políticas e sociais. Na última terça-feira (15/01/2019), a série “Chaves” foi satirizada pelo programa “Tá no ar”, exibido pela Rede Globo. Através de um esquete chamado “Vila Militar do Chaves”, a produção referenciou o presidente brasileiro recém-empossado Jair Bolsonaro (PSL), conquistando admiradores e também ferozes críticos.

A réplica do cenário da vila do “Chaves” construída pela Globo especialmente para a última temporada do “Tá no ar” chamou a atenção de diversos telespectadores. A atuação também merece elogios, com Márcio Vito interpretando Chaves, Danton Mello vivendo o Professor Girafales, Georgiana Góes fazendo a Dona Florinda, Maurício Rizzo como Quico, Luana Martau fazendo o papel de Chiquinha e Marcius Melhem encarando o Seu Madruga.

Marcelo Adnet, protagonista do esquete, conseguiu aperfeiçoar ainda mais as imitações que vinha fazendo desde o “Tutorial dos Candidatos”, que também viralizou na época das eleições 2018 sob o nome “Tutorial de Imitação”. O melhor desta paródia, porém, foi seu roteiro, com sacadas geniais satirizando Bolsonaro e a forma de pensar de vários de seus seguidores.

O esquete começa com a apresentação do “capitão” como novo dono da vila, representando a troca de comando do governo brasileiro. Chiquinha (Luana Martau) brada logo de início a frase que marcou o movimento de eleitores contrários às ideias de Bolsonaro durante a campanha eleitoral: “ele não”. Antes de ser rebatido por mulheres assumidamente de direita, o #elenão da vida real foi encampado inicialmente por pessoas com perfil próximo ao de Chiquinha (jovens e mulheres), o que justifica a escolha da personagem para a frase. No contexto do roteiro do humorístico, o “ele não!” foi dito em solidariedade a Seu Madruga (Marcius Melhem), uma vez que o pai de Chiquinha deve 14 meses de aluguel e justamente seu cobrador estava à caminho.

O novo dono da vila chega denunciando “anos de incompetência e má administração” e promete “resolver essa questão”. A partir daí a sátira brinca com o temperamento do presidente, com o novo dono da vila julgando pessoas de perfil contrário à sua visão de mundo. Desempregados, moradores de rua e até professores são chamados por ele de “vagabundos”. Sem ao menos conhecer o trabalho de Professor Girafales (Danton Mello) e a realidade de seu ambiente escolar, o capitão estigmatiza-o (numa boa sacada de Adnet, que nesta hora olha para a câmera – “Professor?”) e diz que Girafales provavelmente anda ensinando “ideologia de gênero, kit gay e darwinismo”.

Num dos melhores momentos da sátira, Seu Madruga (Marcius Melhem), ao ser preso arbitrariamente por não pagar o aluguel, afirma ter se arrependido de ter gritado “Fora, Seu Barriga”, em referência ao “Fora Temer”, movimento da época em que Michel Temer amargava baixos índices de popularidade e sofria grande rejeição popular um tempo após assumir a Presidência da República com o impeachment de Dilma Rousseff.

A paródia também lembrou da fala de Bolsonaro sobre ter “fraquejado” ao ter uma filha mulher, do “acabou a mamata” pronunciado por diversos de seus eleitores e de outros episódios protagonizados não pelo atual Presidente da República, mas por pessoas próximas a ele, como o vice-presidente General Mourão e a ministra Damares Alves. Desta forma, o novo dono da vila, compactuando tais “ideias”, julgou a família de Dona Florinda: “Tá tudo errado nessa família daí. Você vestindo azul, sem nenhum homem na casa, tem uma família desajustada”. Ao olhar para Quico (Maurício Rizzo), conclui, de modo preconceituoso: “Por isso que esse menino é todo afeminado, olha aí!”

De forma autoritária e numa espécie de “quebra da quarta parede”, o novo dono da vila resolveu por si próprio demitir a plateia que estava “assistindo” a paródia. Logo depois, volta atrás e pede para “deixarem uma meia dúzia aí”, em alusão à troca de funcionários públicos e ocupantes de cargos de confiança, natural em qualquer governo, mas que anda meio confusa na gestão Bolsonaro, com intenções anunciadas de “despetização” do governo e membros de diversas áreas entrando em confronto ou corrigindo seus superiores.

Por fim, ainda houve tempo de referenciar indiretamente o famoso ex-assessor de Flávio Bolsonaro, citado como “o motorista” que o filho do capitão “o emprestou”. Evidentemente, como aconteceu duas vezes na convocação para prestação de depoimento feita pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, ele também “não pode vir” até a vila. Se a paródia tivesse sido realizada pelo SBT, quem sabe…

O programa “Tá no ar” parodiou até mesmo a música “Aí vem o Chaves”, produzida por Mário Lúcio de Freitas em um disco lançado em 1989 e exibida pelo SBT há 30 anos como tema de abertura nacional da série “Chaves”. Em entrevista ao UOL, o próprio Mário Lúcio aprovou a letra, que transformou o clássico verso “todos atentos olhando pra TV” em “todos atentos no tocante ao tá OK”, em alusão a uma forma característica de Bolsonaro falar.

Ao longo da semana, a “Vila Militar do Chaves” viralizou e recebeu elogios por parte do público geral e também críticas por parte de diversos eleitores de Bolsonaro. Em redes sociais, comentários de vídeos e portais de notícias, alguns espectadores tiveram certa dificuldade em interpretar o esquete, avaliando-o como “patético”, “falta de respeito”, “apelação”, “lixo”, “perseguição a Bolsonaro”, “porcaria”, “decadência” e outros termos. Alguns foram contrários à livre expressão e julgaram que o “Tá no ar” “estragou” a série “Chaves” ao realizar esta paródia de pouco mais de três minutos. Houve até quem torceu para Adnet “perder o emprego” ou “mudar de profissão”, ultrapassando o direito que todo telespectador tem de não gostar do que assistiu.

Nestes comentários, alguns leitores aproveitaram para misturar outras variáveis ao assunto em questão e manifestar ódios que já guardavam dentro de si em relação à Rede Globo, avaliando que a maior emissora do país, “desesperada por audiência”, teria pedido a gravação desta paródia por ter “inveja do SBT”. Um leitor do portal UOL chegou a evocar a Lei de Segurança Nacional, considerando que a sátira pode ter caluniado ou difamado o senhor presidente.

O curioso é que grande parte, se não todos, destes eleitores mais radicais de Bolsonaro sonham com um Brasil “livre do mimimi” e do “politicamente correto”. Num gesto a este eleitorado, em seu primeiro discurso com a faixa presidencial, Bolsonaro se comprometeu a “libertar” o Brasil do “politicamente correto”. É bastante contraditório que seguidores de um governo que se declara contra o “politicamente correto” procurem condenar uma livre manifestação humorística, feita em forma de paródia/sátira.

No próprio esquete, o “capitão” questionou a “geração pipipi, mimimi dos vermelhos”. Para alguns, a validade deste conceito parece ser bastante relativa. Defendem a liberdade de crítica, inclusive feita sob a forma de humor, a qualquer político… menos ao “mito” que adotaram. Este estaria acima de qualquer suspeita, não podendo ser questionado nem humoristicamente, num comportamento bastante idolátrico por parte de seus eleitores.

A tradição de ‘zoar’ presidentes da República não é nenhuma novidade e faz parte até mesmo da cultura política brasileira. Caricaturas do chefe do Poder Executivo são criadas há décadas. O uso do humor é uma boa forma de se destacar determinadas características e até mesmo questionar atitudes e falas de nossos políticos. Apenas para citar exemplos recentes, quem não se lembra de Tom Cavalcante imitando Michel Temer, Gustavo Mendes imitando Dilma ou Alexandre Porpetone fazendo o Presidente Gula, digo, Lula?

Aqueles que já foram Presidente da República no Brasil, nosso atual presidente e os futuros postulantes a este cargo não estão acima de qualquer crítica. Encarar seus mandatos de olhos fechados, como “soldados” que seguem o “mestre” não é nada saudável. Aqueles que cumprem esta posição importantíssima estão sob os holofotes do momento e devem sim ser questionados e criticados sempre que necessário. O uso do humor em torno destas figuras públicas não deve ser desestimulado por aqueles que os seguem.

Devemos, tendo votado ou não em Bolsonaro, acompanhar criticamente as decisões de nossos governantes eleitos, cumprindo nosso papel de cidadãos. Bom será se também possamos ter a maturidade de rir juntos de sátiras bem-humoradas feitas à personalidade deles. “Isso daí” vale mais do que idolatrar pessoas e deslegitimar questionamentos, tá ok?

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