Por Matheus Magenta.
Reisi Liao se vê quase em uma “prisão domiciliar” com o filho pequeno. Indira Mara Santos sente medo por não saber a dimensão real do surto. Heros Martines tenta contornar o tédio e a incerteza sem aulas com séries, notícias, conversas e tarefas domésticas. Calebe Guerra passou a fazer exercícios físicos onde mora e ensinar o cachorro a urinar em casa enquanto lida com o confinamento. Tomás Alvarenga não sai de casa há duas semanas.
Após semanas de solidão, medo, tédio, cansaço e apelos de resgate, ao menos 29 brasileiros devem chegar ao Brasil neste sábado (8), um dia após deixarem a cidade de Wuhan, epicentro do surto de coronavírus que matou 490 pessoas e atinge 26 países.
No trajeto até o Brasil, que deve começar na sexta-feira (7), o grupo viajará em duas aeronaves da frota presidencial brasileira, com escalas em três países (Espanha, Polônia e China). Eles ficarão em quarentena na base aérea de Anápolis, em Goiás, por mais 18 dias, sem direito a visitas. Quem apresentar sintomas no período será encaminhado ao Hospital das Forças Armadas, em Brasília.
Desde que a doença surgiu em dezembro, Wuhan passou a ser alvo de medidas cada vez mais restritivas para tentar conter o avanço do coronavírus. Escolas fechadas, ônibus e metrôs parados. Em 23 de janeiro, a cidade foi submetida a uma quarentena completa.
Dos quase 70 brasileiros que vivem em Wuhan, cerca de metade conseguiu sair antes da proibição à entrada e saída de pessoas.
Aqueles que ficaram, incluindo sete crianças, passaram a lidar com uma espécie de cidade-fantasma enquanto cobravam o governo brasileiro um resgate de quem quisesse sair dali — mais de dez pessoas preferiram ficar.
Uns decidiram deixar o país, mesmo se sentindo seguros, principalmente para acalmar os parentes brasileiros. Outros temiam acabar infectados. Havia aqueles que não conseguiram mais lidar com os obstáculos logísticos e psicológicos do isolamento. Outros que não viam sentido continuar sob uma quarentena sem um fim à vista.
Ao longo do tempo, a rotina de estudantes, professores e famílias, na maioria, se transformou completamente. Apenas alguns mercados e farmácias continuaram abertos, e cada saída à rua é repleta de máscaras, higiene reforçada e agilidade.
“Como muitas outras pessoas, corri ao supermercado e estoquei uma boa quantidade de comida no dia em que a cidade entrou em quarentena”, relatou Alvarenga, 28, professor paulistano que ensina na Universidade de Hubei há um ano e meio.
Ele contou que no início ficava “especialmente ansioso com a imprevisibilidade da situação”, mas passou a ficar mais tranquilo à medida que as notícias sobre o surto foram surgindo — a maioria dos brasileiros ouvidos pela reportagem elogiou medidas e transparência do governo chinês, apesar das revelações de que autoridades do país tentaram abafar o surto.
“Eu me sinto seguro porque estou seguindo as recomendações das autoridades chinesas, tenho ficado dentro de casa e não me falta alimento nem comida, a universidade também está sempre em contato conosco e nos fornece máscaras caso precisemos sair”, afirmou o estudante Heros Martines, de 23 anos.
Resgate de brasileiros
Desde que a quarentena foi decretada, foi crescente a pressão de cidadãos estrangeiros em Wuhan para deixarem a cidade. Após dias de negociação, países como Estados Unidos, Japão e Austrália montaram operações próprias para transportarem seus cidadãos para fora da China.
Todos foram submetidos a novas quarentenas em seus países, mas cada governo adotou sua própria estratégia. O governo australiano, por exemplo, colocou centenas de pessoas isoladas na pequena ilha de Christmas, a quase 1.700 km da costa australiana usada como centro de detenção para imigrantes.
Enquanto cidadãos de diversas nacionalidades eram retirados de Wuhan, o governo brasileiro rejeitava qualquer medida semelhante com diversos argumentos: falta de legislação específica para quarentenas, risco à saúde coletiva no país e custo (estimado em quase R$ 2 milhões). A decisão naquele momento do governo despertou críticas e apoio nas redes sociais, termômetro importante para decisões do Planalto.
A situação mudou quando um grupo de brasileiros residentes em Wuhan chinesa produziu um vídeo, revelado pela BBC News Brasil no sábado (1º), no qual fazia um apelo ao presidente Jair Bolsonaro. Horas depois, o país decidiu retirar os cidadãos de lá.
Nesta quarta-feira, dois aviões da frota presidencial saem do Brasil em direção à China. Com escalas em Fortaleza, Las Palmas (Espanha), Varsóvia (Polônia) e Urumqi (China), devem chegar a Wuhan na sexta-feira (7).
A previsão é que as aeronaves com os brasileiros deixem a China no sábado, com mesmo trajeto. Ninguém até agora, segundo as informações disponíveis, apresentou qualquer sintoma.
Para voltarem, precisaram aceitar mais de dez condições feitas pelo governo brasileiro. A exemplo, todos serão submetidos a exames por uma equipe médica basileira em Wuhan e não poderão embarcar se apresentarem sintomas.
Nenhum caso suspeito da doença foi confirmado até agora no Brasil. Há, no momento, 13 casos sob análise.
O sonho chinês acabou?
Todos os brasileiros que vivem em Wuhan entrevistados pela BBC News Brasil afirmaram que voltarão à cidade assim que for possível — o governo brasileiro deixou claro que não vai bancar o retorno deles à China.
“Vou ficar muito feliz quando tudo estiver bem. A economia está paralisada e penso que vai ficar um trauma para todos, que espero superar junto com eles. O sonho chinês está só começando, e superar isso é provar o ponto”, afirmou José Renato Peneluppi Jr., que atua com a atração de professores estrangeiros para faculdades da província de Hubei, onde fica Wuhan.
Para um estudante brasileiro, que pediu para não ser identificado na reportagem, o “sonho chinês” ficou ainda maior. “Deu para ver que é um país organizado, que muito controle para lidar com isso do que muitos outros países. Os estudantes como eu que estão indo para o Brasil vão voltar depois, precisamos terminar nossos estudos.”
“Tanto que algumas pessoas decidiram nem voltar para o Brasil, né”, resumiu ele.