A vida paradoxal de Maria Montessori, criadora do método de ensino para crianças pobres que virou modelo para ricos

Maria Montessori tinha 28 anos quando visitou o hospício que a inspirou a criar seu famoso método de ensino. Foto: Getty Images

Por Irene Hernández Velasco, BBC.

Maria Montessori, a criadora do famoso método pedagógico que leva seu nome, era uma mulher de caráter enérgico.

Essa brilhante italiana, cujo nascimento completou 150 anos em 31 de agosto de 2020, projetou seu revolucionário sistema educacional para ajudar crianças confinadas em hospícios, crianças presas em reformatórios, as crianças mais pobres e desfavorecidas.

Só num segundo momento ela começou a adaptar sua metodologia para crianças em geral.

Hoje, paradoxalmente, as beneficiadas com seu método são principalmente famílias ricas, capazes de arcar com as altas despesas para seus filhos estudarem em uma das 65 mil escolas montessorianas que existem no mundo e que recebem uma educação exclusiva e potencialmente melhor do que a tradicional.

Um fato é que os criadores da Amazon (Jeff Bezos) e Google (Sergey Brin e Larry Page), todos eles hoje multimilionários, estudaram em escolas que seguem o método Montessori.

No entanto, a ideia de Maria Montessori não era essa.

Solução para desfavorecidos

Montessori tinha 28 anos quando, em 1898, começou a visitar um hospício em Roma e contemplou, horrorizada, como os pequenos internados naquela instituição eram tratados de forma absolutamente desumana, praticamente como animais. Alguns romanos iam ao local para atirar comida para as crianças, como faziam com animais do zoológico.

Vestidas com aventais sujos e esfarrapados, deixadas à própria sorte, essas crianças eram chamadas de “retardadas”, “deficientes” ou simplesmente “idiotas”. Entre elas estavam crianças com deficiência mental, epilépticas, cegas, surdas e autistas, que eram vistas como incuráveis.

Portanto, o terrível destino dessas crianças era o confinamento para o resto da vida dentro das paredes do hospício.

Montessori, como os italianos logo começaram a chamá-la, decidiu que isso era intolerável. E começou a trabalhar.

Ela já havia visitado bairros pobres de Roma como médica voluntária (ela foi a terceira mulher em Roma a se formar em Medicina). Também havia ido ao reformatório, e ficou tão escandalizada quanto no hospício quando viu o abandono das crianças confinadas.

Ela chegou à conclusão de que a educação deve ser uma técnica de amor e respeito. “A criança é uma fonte de amor: quando você a toca, você toca o amor”, disse.

Método revolucionário

Com base nisso, ela moldou um método didático revolucionário para a época. Um método baseado em confiar nas crianças.

Os pequenos, disse Maria Montessori, não devem ser perseguidos, forçados ou dirigidos. Nem recompensados, nem punidos, nem mesmo corrigidos. Devem ser respeitados e, sem interferência, liberados em um ambiente em que tudo (espaço, móveis, objetos) esteja sob medida.

“Sigmund Freud descobriu o inconsciente; Albert Einstein, a relatividade; e Maria Montessori, a criança. Seu pensamento inaugurou uma nova era e muitas das coisas que consideramos naturais hoje, como respeito pelas crianças e escola democrática, são fruto das suas ideias”, diz à BBC News Mundo Cristina de Stefano, autora daquela que é possivelmente a mais rigorosa e documentada biografia de Maria Montessori até agora.

“Foi ela quem explicou que a criança é uma criatura com um cérebro muito poderoso, capaz de se concentrar muito e até se autoeducar, desde que seja respeitada desde o início e tenha permissão para trabalhar, tanto na família como na escola, no seu próprio ritmo”, acrescenta De Stefano.

A biografia, intitulada Il bambino è il maestro: Vita di Maria Montessori (A criança é a professora: Vida de Maria Montessori, em tradução livre), levou cinco anos de pesquisa.

Paradoxos

Foi em 1907 que Maria Montessori abriu em San Lorenzo, então um dos bairros mais pobres de Roma, sua primeira escola: a Casa das Crianças. A partir daí, em alguns anos, seu método daria a volta ao mundo e a tornaria uma pessoa famosa.

Hoje, entretanto, muitas escolas Montessori estão em áreas abastadas e custam uma fortuna.

“É uma contradição. Um método que nasceu em um bairro pobre de Roma e que foi pensado com base na inclusão, para ajudar as crianças em dificuldade, tornou-se um método para os ricos”, disse Cristina de Stefano.

“Sem dúvida é um paradoxo. Mas também é preciso dizer que nos países em desenvolvimento o método montessori é usado para ajudar, por exemplo, crianças que passaram por guerras. Ainda há pessoas que continuam aplicando seu método para ajudar crianças em dificuldade”, complementa.

Mas essa não é a única incongruência relacionada a Maria Montessori. A mulher que dedicou sua vida às crianças, que nos ensinou a respeitá-las e valorizá-las, não foi a responsável por criar seu próprio filho.

Ela havia iniciado um relacionamento amoroso com um colega médico, Giuseppe Montesano. Era uma relação livre, sem vínculos.

A ideia do casamento não entrou nos planos de Montessori porque ela não acreditava na instituição do casamento e porque naquela época uma mulher casada não podia trabalhar fora de casa sem a autorização do marido.

Mas um dia, no final de 1897, Montessori descobriu que estava grávida de Montesano. Ela sabia que um filho fora do casamento encerraria sua carreira.

As duas famílias concordam que ela daria à luz em segredo. E quando em 31 de março de 1898 nasceu um menino, Mario, eles o registraram como filho de pai e mãe desconhecidos e o entregaram a uma enfermeira para criá-lo em Vicovaro, a 45 quilômetros de Roma.

“Na vida privada, Maria Montessori teve a ousadia de manter uma relação amorosa livre com um colega, Giuseppe Montesano, em seu tempo. Ela engravidou e se recusou a casar para manter as aparências”, diz De Stefano.

Montesano e Montessori concordaram que os dois cuidariam da criança à distância. E também concordaram que nenhum dos dois jamais se casaria. Ela manteve o acordo, mas ele, não.

“Quando Montesano se casou com outra mulher e reconheceu a criança perante a lei como seu filho, Maria perdeu todos os direitos sobre a criança, que tinha 3 anos na época”, afirma De Stefano.

Colaboração fascista

Montessori não viu seu filho até o menino completar 15 anos. Mas a partir daquele momento ela lutou para recuperá-lo, mais uma vez desafiando as regras da época.

E ela conseguiu: nunca mais se separou dele, embora quase até o fim de seus dias, em público, o apresentasse como seu sobrinho.

A emocionante biografia de Montessori tem outro ponto obscuro: sua colaboração, por exemplo, com o regime fascista de Benito Mussolini.

Mussolini ascendeu ao poder em 1922, iniciando um regime que desmantelou instituições democráticas italianas e se converteu em totalitário em 1925. Ele fora professor durante a juventude. E sonhava em fazer das escolas italianas uma fábrica de pequenos fascistas, de jovens disciplinados e obedientes.

Montessori, por sua vez, sonhava em ver seu método pedagógico implementado nas escolas do país.

Ela e Mussolini se encontram várias vezes e começaram uma estranha colaboração que durou dez anos. Até que, em 1933, profundamente decepcionada ao ver que Mussolini não cumpriu suas promessas de transformar as escolas italianas de acordo com seu método pedagógico, Montessori decidiu romper qualquer relação com o fascismo.

Mas essa mancha em sua biografia cobrou seu preço: ela foi indicada três vezes ao Prêmio Nobel da Paz, mas nunca ganhou. Muito provavelmente, por causa dessa relação com o fascismo.

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