Por Gabriel Murga.
Na atual legislação penal brasileira, portar ou fazer uso de qualquer tipo de substância como são as chamadas “drogas ilícitas” –maconha, cocaína, crack e outras– é sujeito a uma pena de até 15 anos de prisão em regime fechado. A última mudança legislativa ocorreu em 2006, e o texto não define com precisão deixando de forma subjetiva a autoridade policial como responsável por definir se houve apreensão de algum “usuário” ou “traficante”, mas chegou-se a pensar que isso levaria a descriminalização das drogas.
Entretanto, após 10 anos da aprovação desta legislação, o encarceramento quase dobrou –passou de 401.200 pessoas presas para 726.700 pessoas presas em 2016, segundo dados do Ministério da Justiça. Atualmente, um terço dos presos no país responde por crimes relacionados às drogas, segundo levantamento do G1 com dados do Infopen. O estudo aponta que os crimes ligados as drogas respondem por um terço da população carcerária do Brasil. No caso das mulheres, a situação é ainda mais grave: 60% da população carcerária feminina no Brasil está presa por algum crime relacionado às drogas.
É importante lembrar que antes mesmo das políticas proibicionistas globais de Nixon, no Brasil –e no Rio de Janeiro mais especificamente– já havia a repressão ao uso de maconha. Uma lei de 1830 proibia o uso do “pito do pango”, como era conhecido o “baseado”, para “negros, mestiços e outros vagabundos” –mais uma prova de como o racismo está adensado nas questões sociais do país há décadas. A própria palavra “maconha” é um anagrama de cânhamo, fibra retirada da planta. Com o avanço da repressão ao uso do cânhamo, as pessoas passaram a chamar o santo por outro nome e surgiu a expressão maconha.
Voltando um pouco ao passado, havia uma lei no Brasil, chamada de Lei da Vadiagem, na década de 1930, onde as pessoas eram obrigadas a estar com sua carteira de trabalho ou seriam presas. Assim, isso funcionou como uma cortina de fumaça, uma vez que também esta legislação foi utilizada como uma ferramenta racista, tendo como objetivo público, a criminalização da maconha, da capoeira e do samba, frutos da cultura das pessoas negras sequestradas vindas de países da África e que foram escravizadas no Brasil.
Hoje o samba e a capoeira são patrimônios culturais brasileiros e mundialmente conhecidos e reconhecidos como parte da vida das pessoas, seja caminhando enquanto volta do escritório onde trabalha ou com o som que vem pela janela nas tardes de domingo. Contudo, não houve mudanças significativas com relação à maconha, que segue criminalizada e proibida, especialmente para as pessoas negras e para os moradores das favelas e periferias que sofrem todos os dias com tortura, tiroteios, desaparecimentos forçados e os assassinatos que, em 2017, chegaram a mais de 63 mil pessoas, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em contraponto, a realidade da população de classe média carrega uma grande quantidade de privilégios sociais, seja com relação ao uso pessoal/recreativo, seja com os que precisam utilizar maconha medicinal. Existem na cidade do Rio de Janeiro mais de 900 favelas, e as pessoas que fumam um cigarro de maconha perto de suas casas em um destes lugares, caso sofram uma “dura” ou batida policial, a primeira coisa que acontece é uma agressão, seja verbal ou física por parte do agente de segurança. Nos locais frequentados pela classe média, o máximo que acontece é pedir que se apague o seu baseado, e em alguns minutos tudo volta ao normal.
No caso dos cultivadores, seja para uso como medicina ou para romper sua ligação com as facções que “traficam” maconha, a realidade segue por ruas diferentes para as quase 2 milhões de pessoas que vivem nas favelas da segunda maior metrópole da América Latina e que têm as mesmas necessidades.
Dos 18 projetos apresentados sobre o tema no Congresso Nacional, apenas quatro apontam uma posição favorável pelo fim da guerra às drogas e rumo à regulamentação da maconha. Nesta quarta-feira, 21 de novembro, por pouco não foi votado o projeto de iniciativa popular que regulamenta o uso terapêutico da maconha pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado. A votação do projeto, que descriminaliza o semeio, o cultivo e a colheita de Cannabis sativa para uso terapêutico pessoal, em quantidade não maior que a suficiente ao tratamento, e que teve parecer favorável da relatora Marta Suplicy (MDB-SP), acabou adiado para a semana que vem por um pedido de vista.
Outra proposta, o projeto de lei 10.549/2018, foi apresentada em julho pelo deputado Paulo Teixeira (PT-SP) com o objetivo de atualizar a legislação com um viés para o direito individual e o respeito pelos direitos humanos em geral. Aprovado o projeto, a posse, o cultivo, o transporte e o consumo de maconha ficariam descriminalizados, sendo possível portar até 40 gramas de maconha por mês e cultivar em casa até seis plantas femininas com buds/camarões. A nova legislação prevê associações para o cultivo coletivo, além do cultivo individual seja para uso medicinal ou pessoal.
Conversei com o deputado Paulo Teixeira sobre o projeto.
Gabriel Murga – Que impacto o projeto terá sobre a situação das pessoas presas por estarem carregando quantidades pequenas de maconha?
Paulo Teixeira (PT-SP) – Acredito que terá um grande impacto. Existem muitas pessoas presas por tráfico, sendo elas réus primários, havendo atuado sem violência e portando baixa quantidade de ‘droga’, sendo uma delas a maconha. No sistema prisional tem muita gente com este perfil, um perfil que na minha opinião não deveria estar ali. A lei penal retrocede para beneficiar o réu, sendo assim essa lei beneficiaria de forma importante as pessoas que foram presas com pequena quantidade (de maconha). E terá um grande impacto também porque a lei estabelece que não se pode encarcerar pessoas primárias, com bons antecedentes e que não tenham atuado com violência. Esta lei não vai ser boa apenas para as pessoas presas, mas também para impedir novas prisões de pessoas com este perfil.
GM – Quando o projeto estará pronto para ser votado?
PT – Essa legislatura não quis enfrentar a questão, e por isso demorei para protocolar, porque havia uma promessa de que eu seria o relator deste projeto, o que nunca aconteceu. Por isso que protocolei perto de terminar essa legislatura. Então, será após essa legislatura e espero que seja uma melhor que a que temos agora.
GM – O que o senhor pensa da falta de acesso das pessoas mais pobres ao uso medicinal da maconha, enquanto os remédios importados são inacessíveis pelo seu custo?
PT – É um paradoxo que o Brasil importe remédio a base de maconha; é um paradoxo em primeiro lugar que pessoas tenham que entrar na justiça para obter remédio para essa procedência. E um paradoxo maior é importar princípios ativos que já existem no Brasil e que poderiam ser sintetizados ou não. Muitas pessoas poderiam ser curadas obtendo a planta e fazendo seu uso direto. Então, na minha opinião, vai baratear o remédio e vai ampliar o uso da planta diretamente, que é muito útil para várias funções. Terá um impacto muito positivo se aprovado no Congresso.
GM – O que podem fazer as pessoas que desejam essas mudanças?
PT – Em primeiro lugar, conhecer o projeto e dar o seu apoio. Em seguida, pressionar o Congresso para que o vote.
Na última semana de julho deste ano foi lançada uma ação chamada Droga é Caso de Política, da Plataforma Brasileira de Políticas sobre Drogas, grupo que reúne 50 organizações que atuam pela redução da violência e os danos ocasionados pelo proibicionismo. A ação tinha como objetivo central esclarecer quem eram os candidatos que apoiam a descriminalização, o autocultivo de maconha, ou apenas o uso medicinal, independente de partido ou ideologia política partidária. Se inscreveram mais de 250 candidatos à presidência, aos governos estaduais, deputados e senadores. Destes, foram eleitos dez deputados federais, onze estaduais e um distrital.
Para o coordenador de relações institucionais da PBPD, Gabriel Elias, “nos últimos anos aconteceram avanços sobre a reforma da política de drogas na sociedade. Apesar disso, temos dificuldade de que o debate chegue ao Congresso. Por isso nós decidimos criar o site para que os eleitores possam levar isso em consideração no momento de definir seus votos”.
Ele faz coro com a fala do deputado Paulo Teixeira. “Os projetos não deram um passo à frente nas suas tramitações porque existe uma maioria que impede qualquer debate sobre o tema no Congresso”, pontua. “Além do projeto mais recente, existem dois apresentados desde 2014, na Câmara dos Deputados, e o que chegou ao Senado por sugestão popular. Acreditamos que na próxima legislatura mais parlamentares eleitos com um compromisso de mudar a política de drogas no Brasil”, que ressalta também o aumento de 20% para 32% para o apoio da descriminalização da maconha, segundo o Datafolha, nos últimos cinco anos.
Quem também tem essa visão é Daiene Mendes, jornalista carioca que já escreveu para o jornal britânico The Guardian e faz parte do Movimentos, um grupo de jovens de várias favelas e periferias do Brasil que acredita que uma nova política de drogas é urgente. Daiene mora no Complexo do Alemão, bairro com mais de 120 mil moradores segundo dados de organizações locais como o Data Favela. Os números são diferentes dos dados que oficiais de 2010, que apontam cerca de 69 mil moradores segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE.
“Historicamente as pessoas da favela, os pobres, os negros, sempre estiveram excluídos de todos os lugares de decisão. É difícil imaginar como poderia haver uma mudança no cenário, contribuir para mudança ou para a formação política de algo, se as pessoas nunca se viram inseridas dentro de nenhuma política pública. Nunca se viram em nenhum desses espaços. Isso começa a mudar um pouco no governo do ex-presidente Lula, quando vêm as obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e as pessoas começam a ter uma noção de governo, do Estado, dentro da favela”, pontua Daiene Mendes.
O Complexo do Alemão abriga uma região que tem 15 bairros em seu entorno e que sofre diretamente com os conflitos armados, execuções, assassinatos e violações de direitos fundamentais como o acesso ao saneamento básico, saúde e educação, já que as escolas e unidades de saúde, são fechadas em casos de tiroteios. É uma área com grande potencial cultural e musical, como as rodas de rima, slams que acontecem com autonomia dos moradores e sem apoio governamental.
“A favela é o território do conservadorismo. Então tem muita gente que acredita que todas as lajes da favela vão poder plantar pés de maconha, que as pessoas vão viver com a produção que está em seu terraço e isso não é real. A favela está conectada com preceitos religiosos, eu sempre digo que existem muito mais igrejas que pontos de vendas de drogas nas favelas. A partir daí temos a noção desse cenário, deste contexto que a gente está falando”, afirma a jornalista.
No ano passado, o Rio de Janeiro teve apenas 14 dias em que as 1573 escolas municipais funcionaram em sua totalidade, ou seja, sem nenhuma escola ou creche fechada por tiros; nos outros 184 dias, ao menos uma unidade escolar deixou de funcionar por conta da violência armada, segundo dados da Secretaria Municipal de Educação. Isso é um perverso reflexo da suposta “guerra às drogas”, que no Rio de Janeiro e outras cidade do país afeta a população que tem menos acesso aos seus direitos por parte do Estado, exceto no caso do braço armado que está presente. Apenas entre fevereiro e junho de 2018 foram assassinadas 609 pessoas na cidade em decorrência de confrontos motivados pela apreensão de drogas e armas.
Para o advogado e consultor jurídico Emílio Figueiredo, da Reforma, não existe um bom caminho sem que se pense em reparação histórica para os moradores das periferias. “Não há como regulamentar a maconha sem fazer reparação histórica. Qualquer modelo que eu pense hoje é um modelo que vai privilegiar os pontos tradicionais de venda, as pessoas afetadas pela violência. Não é possível pensar em legalizar excluindo essa realidade. Eu prefiro atrasar a regulamentação e fazer um modelo coerente com a realidade do Brasil do que correr e fazer um modelo de qualquer jeito como muitos querem por aqui”, aponta Emilio.
Apenas em junho foram assassinadas 155 pessoas em confronto com a polícia e outros agentes de segurança, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Durante o mesmo período foram assassinados 12 agentes de polícia, sendo 11 militares e um civil.
“Agora, por que estes espaços têm essa percepção digamos ‘maligna’, sobre as drogas? Porque as pessoas estão mais próximas dos efeitos negativos da política de drogas que dos efeitos positivos que elas podem nos proporcionar. Há uma percepção sobre as drogas por experiência muito próxima de pessoas que usam drogas e têm problema com o abuso da droga, a referência é sempre negativa”, opina Daiene Mendes.
Desde fevereiro, a cidade do Rio de Janeiro se encontra sob intervenção militar na segurança pública por meio de um decreto do governo federal, mas a situação não melhorou, pelo contrário. Em média, uma pessoa foi assassinada a cada oito horas na capital carioca em confrontos com as forças policiais no último ano, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública.
Com certeza o assunto é de grande importância e merece ser revisado o quanto antes.
“…enquanto volta do escritório onde trabalha” – Esta citacão está pouco adequada. A maioría dos que escutam as músicas oriundas dos apartamentos/casas não trabalha em escritório, ao contrário trabalha em diversas atividades e em menor escala em “escritórios”…