A vida à margem do Nilo

Por Elaine Tavares.

É uma terça feira do inverno egípcio, um ano depois da revolta que levou as gentes para as ruas e derrubou o governo de Hosni Mubarak, que há trinta anos estava na presidência. Nas margens do rio Nilo, que corta todo o país, as gentes seguem com sua vida cotidiana, como faziam há milhares de anos. O sol já esquentou e cada família que vive à beira do Aur (nome antigo do rio que significa negro, por conta do barro que produz) cumpre sua tarefa diária. Desde o tempo dos faraós que o grande rio é sinônimo de vida para o Egito. Naqueles dias, eram as suas cheias que garantiam a comida e a fartura. O barro deixado nas margens depois da descida do rio tornava o lugar um espaço de grande fertilidade. Não foi sem razão que a maioria dos templos dedicados aos deuses mais amados acabou construída naquela estreita faixa entre os desertos escaldantes, assim como quase 90% da população esteja fincada em suas margens.

A primeira sensação que se tem ao chegar ao rio é a de assombramento. O rio é largo, mas ambas as margens podem ser avistadas sem problemas. E o que surpreende é a junção do verde esmeralda das palmeiras e das plantações com o dourado da areia. Parece impossível que aquele milagre se faça, mas ele se faz. É certo que com as represas – principalmente a grande represa de Aswan – os egípcios já não dependem mais das cheias para garantir a fertilidade das terras, mas também já não têm o barro negro que tanta fartura gerava. A obra feita com a ajuda do governo soviético na época do governo de Gamal Nasser (1968) garantiu que os agricultores pudessem ficar na margem, cultivando o ano todo, às vezes conseguindo até três colheitas, mas o barro milagroso não consegue passar pela represa. Ainda assim, com a irrigação artificial o vale do Nilo prospera no inverno e no verão, mesmo que as precipitações de chuva sejam bem pequenas.

Navegando para o sul, em direção a Aswan, pode-se ver a vida mesma, na sua imanência. Pequenas ilhas verdes acolhem o gado, que é levado pelos moradores nos barcos. Ali os animais ficam pastando e engordando numa cena que parece ter saído de algum papiro de cinco mil anos atrás. Enquanto observam o gado, os barqueiros também aproveitam para pescar, tocando a existência numa vagareza, típica do rio. Por todo o trajeto do caminho úmido veem-se as mulheres lavando suas roupas, cercadas de crianças que brincam com cachorros e cabras. Há vacas, carneiros, burros, cavalos, camelos, gatos, todos se fartando com o rio.

Na tarde quente, apesar de inverno, também se pode notar os homens e suas rezas. Enquanto o som do Corão ecoa da mesquita, eles ficam ali, na beira da água, curvando-se diante do seu deus, Alá. Os mais devotos rezam cinco vezes ao dia, como manda o livro sagrado, e a oração é feita de movimentos, sempre com a cabeça voltada para Meca. Pelos caminhos as mulheres vão e vem carregando grandes feixes de palha na cabeça, as carroças puxadas por burros circulam levando a produção, e as bombas de água sugam sem parar a bênção que é o Nilo, garantindo grandes plantações de arroz, palmeira, cana de açúcar e de banana.

Por toda a orla do rio pululam as casas simples, feitas de adobe com cobertura de palha. Como a chuva é pouca não há muito que proteger, a não ser do sol. Somente perto das cidades maiores se percebe grandes casas de gente rica ou empreendimentos turísticos. No geral as margens parecem pertencer a pequenos produtores que são donos de sua própria terra e vivem da agricultura de subsistência.  “As pessoas que vivem aqui não esperam grandes coisas da vida, nem querem. Gostam de viver do rio, fazer seu trabalho, estabelecer seu ritmo. Agora, com a revolução, tudo que anseiam é uma melhora na infraestrutura dos povoados, condições de juntar algum dinheiro para viajar à Alexandria, em férias. Somos um povo simples, com desejos simples”, diz Muhamad Mustafa, morador de Luxor.

Ele conta que apesar de toda a exploração dos governantes de plantão, no Egito nunca se soube de alguém ter morrido de fome. O povo muçulmano é muito solidário e pratica a caridade, jamais permitindo que um familiar ou um vizinho passe necessidade. “Faz parte da prática religiosa que um muçulmano doe 10% de tudo que ganhou no ano. Essa doação ele tem de fazer em segredo, ninguém pode saber, e geralmente a gente ajuda os que estão próximos e precisam mais”, conta Zizo, que é devoto e praticante.  Mais de 40% da população ainda vive na área rural e tudo o que querem é ter um bom hospital, uma boa escola e poder cuidar da família em paz.  Foram essas necessidades que levaram mais de 70% da população a comparecer às urnas nas eleições legislativas. Eleição era coisa que ninguém mais dava bola, mas, depois da revolta de janeiro de 2011 que colocou Mubarak para correr, a política renasceu. O desejo de participar e mudar as coisas moveu as gentes. “É certo que o sistema eleitoral ainda é precário, pois os partidos novos, o povo da revolução, não teve dinheiro para fazer uma campanha nacional. Não há propaganda gratuita e só os partidos mais organizados ou quem tem muito dinheiro pode chegar a todos os lugares. Daí que foi meio óbvia a vitória da irmandade muçulmana. Eles estão organizados desde há anos e tem a ajuda dos imãs (sacerdotes)”.   De qualquer forma o Egito vive tempos de grandes câmbios e mesmo isso pode mudar. Vai depender dos rumos dos movimentos sociais.

Já para os ribeirinhos que vivem na capital do país, o Cairo, o rio Nilo perdeu parte do seu valor. A vida citadina tem outras demandas e as margens do rio estão espremidas pelos prédios. O alto nível de contaminação não permite que se use o rio para a pesca, há muito lixo e esgoto, tornando as águas mais escuras do que são. Em alguns lugares a falta de cuidado é gritante e uma das reivindicações da juventude insurgente é com o saneamento. Essa é uma área que precisa de muito investimento no Egito moderno.

A revolução de janeiro de 2011 colocou muitos pontos de interrogação para a população egípcia. O novo governo, hegemonizado no parlamento pela irmandade muçulmana, é esperado com franca satisfação. As últimas gerações – dos anos 60 em diante – não conseguiram lograr tempos de paz, vivendo conflitos armados com Israel, e tampouco vida boa para a maioria, nos tempos de Mubarak. Agora, eles se armam de esperanças e apostam em mudanças substanciais. No geral, o turismo é visto como uma coisa boa, e há uma estrutura bem montada para receber os visitantes que vêm em busca da cultura milenar. No caminho do rio pode-se ver os cais bem estruturados para a navegação e paragem de mais de 280 barcos que fazem os passeios pelo Nilo. Há também uma bem montada rede de distribuição das verbas do turismo. Ao que parece todo mundo ganha um pouco com os viajantes. Os barcos grandes, os barcos pequenos, as falucas, os carroceiros, os donos de camelo, os vendedores de badulaques, os moradores do vale. “O turismo abriu um pouco a cabeça desse povo que vive aqui na margem. Sempre foi uma gente muito conservadora, e, agora, com o contato com gente de várias partes do mundo, vai se modernizando”, conta Zizo, que também é originário de um pequeno povoado da beira do Nilo.

Agora, na última semana, voltaram a ocorrer conflitos de rua na capital e também em Port Said, onde dezenas de pessoas morreram num confronto no estádio de futebol. O descontentamento assomou, até porque os jovens que protagonizaram a revolução querem a saída imediata dos militares que ainda estão no comando do país através da junta militar. Poucos são os que aceitam esperar até junho para as eleições. A mudança tem de ser já. O processo iniciado em janeiro de 2011 ainda não se cumpriu. E mesmo na lenta existência dos que habitam as margens do Nilo, assoma agora a pressa, a vontade de que o Egito inicie uma nova era, uma espécie de segunda República. Isso significa que ainda há muita água para rolar debaixo dessa ponte da revolução. 

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