Por Miguel Martins e Tory Oliveira
O baixo ritmo da economia e uma gestão leniente com as limitações orçamentárias levou a Universidade de São Paulo, a maior da América Latina, do superávit ao déficit em três anos. Financiada por uma cota fixa de pouco mais de 5% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, a instituição vivia momentos de bonança em 2011. Na esteira do crescimento econômico de 7,5% do PIB em 2010, novas obras e contratações eram viáveis para o então reitor João Grandino Rodas, na posse de recursos graúdos, 20% superiores aos do ano anterior. Segundo colocado em uma lista tríplice, formulada a partir dos votos da comunidade universitária, Rodas foi escolhido em 2009 pelo então governador José Serra, com a justificativa de que o tucano “não conhecia bem” o mais votado dos candidatos, o físico Glaucius Oliva. Polêmico, o ex-reitor ficou marcado pelo convênio firmado com a Polícia Militar para executar a segurança do campus, sob protestos de parte dos estudantes, e pela forma autoritária como tratava os opositores. Após o fim de sua gestão, em 2013, as consequências negativas de seu perfil centralizador, somadas a uma arrecadação mais tímida nos últimos dois anos, agora cobram a conta. Estima-se que há 1 bilhão de reais a menos nas reservas da universidade, avaliada em 3 bilhões no início de sua gestão.
Há fatores diversos para a escalada de gastos, aponta o relatório do novo reitor Marco Antonio Zago, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. A construção de prédios suntuosos, entre eles o da nova sede da reitoria e um edifício no Centro de São Paulo, contribuiu para elevar os investimentos de 3% do orçamento em 2009 para 8% em 2013. Não se trata, porém, da principal pressão sobre a receita. No primeiro ano da gestão de Rodas, a parcela destinada a cobrir as despesas com os salários, pensões e benefícios de professores e funcionários era de 83%. No ano passado, 100% dos repasses do governo estadual foram destinados a saldar as folhas de pagamento. Incluem-se nessas despesas os aumentos e as promoções concedidas aos 23 mil servidores, as bonificações (somadas custaram 40 milhões de reais à USP no ano passado), e a ampliação do auxílio-alimentação.
A estratégia de conceder aumentos e prêmios a professores e funcionários contribuiu para uma certa letargia dos sindicatos da universidade nos últimos anos. Não há greves dos servidores desde 2009. Tanto a Associação dos Docentes da USP quanto o Sindicato dos Trabalhadores concordam que a elevação dos salários médios levou a uma certa desmobilização. “Não houve arrocho salarial. Havia indignações, mas não fortes o suficiente para provocar uma greve”, afirma Francisco Miraglia, professor do Instituto de Matemática e Estatística e integrante da direção da Adusp.
Enquanto os ganhos médios dos professores cresceram 43% nos últimos quatro anos, os dos técnico-administrativos chegou a quase 75%, fruto principalmente da reestruturação da carreira iniciada por Rodas. Magno de Carvalho, diretor de base do Sintusp, garante, no entanto, que menos da metade dos funcionários foram promovidos. Divididas em três etapas, as promoções contemplaram cerca de 36% da categoria nas duas primeiras fases de sua implantação, entre 2012 e 2013. As chefias foram as principais beneficiadas, o que alimentou uma disputa interna. “A reestruturação da carreira nos dividiu muito. Quando chegava o momento da campanha salarial, o cara pensava: vou brigar para conseguir um aumento de 5%, quando posso obter 30%?”
Ao contrário de seu antecessor, Zago foi o mais votado entre os integrantes da lista tríplice. Em seus primeiros meses à frente da universidade, assumiu a missão de conter os gastos. Para reequilibrar as contas, anunciou um corte de 29,4% nas despesas com custeio e investimento em 2014. A redução é de 35% para as unidades de ensino, institutos especializados, museus e prefeituras. O orçamento para os projetos especiais, voltados para as áreas de pesquisa, graduação, pós e extensão, passou de 44,4 milhões de reais para 11,7 milhões. O principal objetivo de curto prazo é reduzir o compromisso com pessoal para menos de 85%. Debatido há alguns anos na Assembleia Legislativa, o aumento dos repasses estaduais também pode ser alvo de negociações. “A busca de recursos adicionais ou outras formas de financiamento podem ser debatidas, mas não com o objetivo de sanar o desequilíbrio atual”, afirma Zago. Outro alvo de críticas, os escritórios internacionais da USP em Cingapura, Londres e Boston, abertos em março do ano passado ao custo declarado de 400 mil reais anuais, serão fechados.
Foram suspensas as viagens de docentes e alunos para o exterior e a vinda de professores visitantes. O corte de gastos afetou o cotidiano dos estudantes. Aluno do curso de Lazer e Turismo da Escola de Artes, Ciências e Humanidades, mais conhecido como a USP Leste, Douglas Ribeiro teve um artigo científico aprovado para apresentação em um evento na Alemanha. A alegria transformou-se em dor de cabeça quando descobriu que a instituição não arcaria com a viagem. “Antes pelo menos pagavam a inscrição do projeto”, lamenta. A taxa de 300 reais foi bancada por sua orientadora. Aluna do mesmo curso, Tamiris Martins conseguiu emplacar dois trabalhos em uma universidade portuguesa, mas desistiu por conta do corte de verbas. “Fica uma situação de constrangimento.”
A interdição do campus da USP Leste é outra herança maldita da gestão de Rodas. Construída sobre um terreno contaminado por gás metano, altamente inflamável, a unidade está interditada judicialmente e sem aulas desde janeiro. Como não há previsão para a liberação do campus, os 4,5 mil alunos serão espalhados por outras unidades da USP no Butantã, em uma Fatec e em salas alugadas no prédio da particular Unicid. Tamiris, que atualmente mora perto da universidade, será prejudicada pelo deslocamento. “Vou precisar arcar com custos de transporte e alimentação, pois lá não teremos bandejão.”
Entre os professores, uma das principais críticas é o aparelhamento do Conselho Universitário, responsável por avalizar as decisões do reitor. Definida pela última reforma do estatuto, de 1988, a composição do conselho apresenta algumas distorções que incomodam a comunidade acadêmica. A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, uma das maiores da USP, tem direito a apenas um voto no conselho. Enquanto isso, há diversos integrantes externos à universidade, como representantes da Fecomercio e da Fiesp. Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia, critica a complacência do órgão em relação às decisões da antiga reitoria. “A USP foi administrada nos últimos quatro anos por uma gestão bonapartista, mas o conselho também foi conivente.” Procurado por CartaCapital, Rodas não atendeu aos pedidos de entrevista.
A ausência de consultas à comunidade acadêmica é criticada pelo professor Carlos Ferreira Martins. “Eu sou diretor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP de São Carlos e nunca fui chamado para discutir um plano plurianual de obras”, reclama. A nova reitoria afirma que na terça-feira 25 foram iniciados os debates para discutir a estrutura de poder e de governança na USP. A composição do Conselho Universitário e novas regras de transparência e responsabilidade fiscal estarão na pauta. Martins defende a realização de auditorias externas e independentes para fazer a devassa nas contas dos últimos anos. Para Braga, a sociedade paulista precisa assumir sua responsabilidade sobre a USP, algo possível apenas com o acesso ao orçamento. “Eu não tenho nada a esconder, o meu holerite é público. O que a universidade tem a esconder?”
Fonte: Carta Capital
Foto: Ilustração Carta Capital