A terra não nos pertence: lição sustentável do Bem Viver de Evo Morales

Por Elissandro dos Santos Santana, de Porto Seguro, para Desacato.info.

Relendo as obras “Entramando Pedagogías Críticas Latinoamericanas” e “Sociedade da decepção”, inevitavelmente, fiz cotejos entre as discussões teóricas que são elaboradas nesses dois livros com a minha preocupação no tangente ao desmantelamento dos governos de esquerda da América Latina ecom as lições socioambientais apresentadas pela filosofia político-sustentável do “Vivir Bien” do governo de Evo Morales. As relações encontradas entre essas duas obras e o tema que pretendo discutir, indiretamente, consubstanciam o que seria o viver bem boliviano, a luta contra o consumo e a necessidade de valorizar os saberes locais, de nossa gente.

De imediato, sobre o bem viver de Evo, pode-se dizer que ele não dialoga com a lógica do consumo e se sustenta a partir das empirias de saberes do próprio continente latino-americano, ou seja, tudo isso possui relação quase que direta com o que Lipovetsky fala sobre consumo e decepção, decepção e consumo e, claro, também é interessante correlacionar o valor que Evo dá aos saberes dos povos tradicionais originários bolivianos com a pedagogia crítica do “Entramando Pedagogías Críticas Latinoamericanas”, já que no livro em bailao leitor pode refletir sobre a necessidade de pedagogias do Sul como alternativa para solucionar nossos problemas no continente.

Com base nas pontes possíveis, ampliarei as discussões que tenho feito acerca do que nos ensina o “Bem Viver” no governo sócio-ecológico do presidente indigenista boliviano, porque acredito que em tempos de crises políticas e econômicas como as que estamos vivendo no Brasil, para além da desesperança, é possível pensar a sustentabilidade como escapatória para outro design de produzir e viver, de forma que esta ultrapasse os domínios conceituais deturpados, quase que pétreos, da lógica capitalista no que tange ao vocábulo Desenvolvimento, pois, este, precisa sair dos liames da economia clássica. No que se refere a esse outro conceito de desenvolvimento, a Bolívia tem muito a ensinar ao Brasil e ao restante da América Latina tendo em vista que nos últimos anos cresceu não somente no campo do PIB como, também, e principalmente, na revolução cultural em torno de novas e necessárias arquiteturas mentais de pensar a Terra com toda a sua biodiversidade geradora de capitais naturais que propiciam recursos naturais desencadeadores de oferta de serviços naturais que possibilitam a poupança ecológica por meio da renda ecológica. O termo poupança aqui utilizado deve sobrepujar-se à noção de exploração dos aparelhos bancários do sistema capitalista e atingir os limites da economia solidária e criativa.

Continuando a discussão, externo que estou cônscio de que o Brasil, diante da crise, poderia repensar o modelo adotado ao longo de sua história de exploração da terra no qual se alicerça o neoliberalismo esfacelador da vida, como suporte que se esgotou, que não deu certo e nunca dará, pois onde há exploração, há explorados e, na existência desses, o que impera é o reino da injustiça socioeconômica, da cultura do viver melhor, egoísta, nas bases, em detrimento da noção do viver bem, justo e viável para todos, inclusive, para o Planeta, já que opera na vertente do sustentável, do respeito à Terra que tudo nos dá e permite nossa continuidade debaixo do Sol, é que trago para discussão a maior lição do documento “Vivir Bien”, o de que a Terra não nos pertence, que nós é que pertencemos a ela.

Quando mencionei que fiz pontes entre o “Vivir Bien” e as duas obras citadas acima, explico por que – no que concerne ao livro “Entramando Pedagogías Críticas Latinoamericanas”, logo nas epígrafes presentes na obra, de imediato, o leitor se vê obrigado a refletir sobre a tão imprescindível epistemologia do Sul, ou seja, pensar a América Latina por meio dela e por ela mesma, a partir de teóricos e movimentos sociais como Paulo Freire e sua noção “Si no hay sueño, si no hay lucha, si no hay esperanza, no hay educación, sólo hay adiestramiento instrumental”, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, MST e sua verdade sobre “Se busca por lo tanto la ocupación de otro latifundio: el latifundio del saber (…) Es preciso cortar la verja que lo protege, para que los pueblos puedan apoderarse de él, hacerlo productivo y transformarlo en un instrumento para conquistar formas más dignas y alegres de vivir”, de Gabriel Salazar  e seu pensamento“Si el derecho del pueblo a determinar su propio desarrollo es reconocido, entonces el derecho del pueblo a determinar su propia producción de conocimiento y su propio aprendizaje debe ser también reconocido. La educación debe ser un proceso de desarrollo de poder” e Orlando Fals Borda com a vertente“O ciencia rebelde, nueva, constructiva, o ciencia de segunda clase, imitativa y desadaptada”.

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Foto: ABI

Ao trazer a reflexão que se faz na obra acima, o faço consciente de que somente por meio da pedagogia crítica libertária, com bases em epistemologias do próprio sul, no qual a América Latina pense a própria América Latina, será possível mostrar ao Brasil a necessidade de se latino-americanizar, integrando-se aos demais povos do continente, aprendendo com as experiências dos irmãos latino-americanos, já que possuímos histórias de luta verossímeis. É nesse sentido que apresento o caso do bem viver boliviano sob a percepção da experiência político-ambiental de Evo, levando em consideração que, ali, assim como o Brasil com um governo de esquerda, no decorrer de 13 anos, que conseguiu tirar milhões da linha de pobreza, nos últimos anos, na Bolívia, sob o governo do presidente Evo, também milhões saíram da linha da miséria e ingressaram na classe média boliviana. Ocorre que os mesmos que mudaram de vida naquele país, em parte, agora repudiam as políticas ambientais que Evo tenta implantar na nação. Ao que tudo indica, parece que não aprenderam ao longo da história de exploração e começam a dar força aos discursos neoliberais de uma direita que surge sedenta por abrir ainda mais as veias de exploração das terras bolivianas a partir da indústria mineira para gerar desenvolvimento a qualquer custo. Nesse sentido, pode-se inferir que a luta por um país justo que se desenvolva a partir de meios sustentáveis de uso da terra parece ser o grande empecilho no governo de esquerda ecológica que começou a se desenhar a partir de Evo.

Já com o livro “Sociedade da decepção”, quando o correlacionei com o documento “Vivir Bien”, o fiz para mostrar que assim como na obra de Lipovetsky do caos pode surgir a esperança de que o amanhã é possível, pois, talvez, com as decepções, venha o desejo da mudança com a sociedade sendo obrigada a reinventar-se, no “Vivir Bien” temos essa esperança se materializando, pois na Bolívia atual, parece que, frente às crises, a sociedade de esquerda começou a perceber que um país melhor não será alcançado pela vertente econômica, mas pela própria mudança da sociedade em meio a todo o imaginário sobre o que seria crescer e se desenvolver. Ademais, assim como a obra de Lipovetsky é um convite ao leitor para que este pense as relações de desejo e consumo neste planeta cada vez mais vilipendiado por nossas crenças de desenvolvimento e consumo pelo viés da exploração da Mãe Terra, o “VivirBien” do presidente Evo desponta como obra imprescindível para que o mundo inteiro reveja suas lógicas de produção e relação com o planeta.

Assim como em “Sociedade da decepção” o filósofo da esperança nos mostra que na sociedade da decepção o vazio se preenche com consumo, sendo que este desencadeia outras decepções, já que não preenche os vazios da sociedade hipermoderna, no “Vivir Bien”, esse combate ao consumo, diria, é o discurso central do documento.

Em “Sociedade da decepção”, o autor apresenta que “Ao fim e ao cabo, o mau uso dos bens públicos desperta mais indignação do que o uso de bens particulares. Com efeito, de que os consumidores se queixam mais frequentemente? Dos engarrafamentos de trânsito, das praias superlotadas, do processo de descaracterização da paisagem natural por obra das construtoras de edifícios ou da invasão de turistas, da repugnante promiscuidade nos transportes coletivos, do barulho dos vizinhos, etc. Em outras palavras, o que gera decepção não é tanto a falta de conforto pessoal, mas a desagradável sensação de desconforto público e a constatação do conforto alheio.

Não surpreende, portanto, que seja no âmbito dos serviços, baseado no relacionamento entre as pessoas, que a decepção é mais frequente. Manifestações de crítica são muito comuns contra o corpo docente das instituições de ensino, contra o mau funcionamento da Internet, contra o despreparo da classe médica…

Mas, em outra perspectiva, entretanto, convém não esquecer que, diferentemente do que ocorria no passado, os elos entre as pessoas e a esfera do consumo estão cada vez mais entranhados. Muito daquilo que compramos, não o fazemos com a finalidade de granjear a estima deste ou daquele, mas sobretudo visando a nós mesmos, isto é, tendo como objetivo aperfeiçoar os nossos meios de comunicação com o semelhante, melhorar o desempenho físico e a saúde do corpo, buscar sensações vibrantes e variadas formas de emoção, vivenciando experiências sensitivas ou estéticas. É nessa acepção que o espírito de consumo em benefício do outro, típico das antigas sociedades de classe, retrocede, dando lugar ao consumo para si. Em resumo, o consumo individualista emocional assume agora a dianteira em relação ao consumismo ostentador de classe. Simultaneamente, a tendência dominante é aceitar com maior naturalidade que outros possuam algo que não temos, porque a atenção de cada indivíduo está hoje mais voltada para a sua própria experiência íntima do que para o desempenho dos demais. Ao contrário dos primórdios da era democrática, que muito contribuiu para a disseminação do sentimento de inveja, na atual fase do hiperindividualismo consumista, muito mais raramente nos deparamos com aquele indivíduo que se dilacera interiormente por falta de poder aquisitivo para comprar o mesmo automóvel de alta qualidade do vizinho. A inveja provocada pelos bens não-comercializáveis (amor, beleza, prestígio, êxito, poder) permanece inalterável, mas aquela provocada pelos bens materiais diminui.” No “Vivir Bien” tem-se que por meio de outra relação com a Terra, teremos a dignidade da vida e isso se fará com a guerra ao consumo, o grande mal do planeta.

Para prosseguir com a discussão em torno do “Vivir Bien” de Evo, propriamente dito, cabe mencionar que em outros textos já publicados no Portal Desacato apresentei algumas das lições que a esquerda brasileira pode aprender com a tentativa de socialismo ecológico praticado na Bolívia e, hoje, tangenciarei a discussão em torno de outras lições que o referido projeto político-ambiental boliviano pode ensinar ao Brasil. No entanto, antes de qualquer luz acerca do tema em análise, julgo necessário colocar que para aqueles que estão sob a égide do conceito de “desenvolvimento” nos limites das semânticas do Capitalismo, a discussão parecerá desnecessária ou até idiota; para esses, só resta-me respeitar-lhes e desejar-lhes que ampliem campos de visões e intelecções para além de nossas empirias capitais de concepção do mundo como mercadoria. Também não posso olvidar daqueles que só se informam a partir da mass media tradicional brasileira, fortemente comprometida com os valores, princípios e pressupostos do neoliberalismo, e, por isso, arvoram todo o imaginário sobre países como Bolívia, Venezuela e Cuba com os atravessamentos da ideologia da direita a partir da episteme equivocada de que o socialismo é algo a ser combatido, pois, para esses, a discussão que faço é, no mínimo, uma sandice.

         Enfim, no documento “Vivir Bien” a noção em torno da ideia de que a terra não nos pertence, pois somos nós que pertencemos a ela, ocorre da seguinte forma: para avançar na estratégia de reconstrução do “vivir bien” e defesa da Mãe Terra iniciada com “Os Dez Mandamentos”, a Bolívia conseguiu que as Nações Unidas declarem o Dia Internacional da Mãe Terra a celebrar-se a cada 22 de abril.

         Neste caminho, a Bolívia propôs aos 192 governos das Nações Unidas que cheguem a um consenso de uma Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra, declaração que deve ser baseada nos seguintes princípios:

  • O direito à vida, que significa o direito a existir. Os humanos temos que reconhecer que também a Mãe Terra e os outros seres vivos têm direito a existir;
  • O direito à regeneração de sua biocapacidade. A atividade no Planeta e o desenvolvimento não são infinitos. Que Consumindo e desperdiçando mais do que aquilo que a Mãe Terra pode substituir e recriar, estamos matando lentamente o nosso lar;
  • O direito a uma vida limpa, o que significa o direito da Mãe Terra para viver sem poluição;
  • O direito à harmonia e equilíbrio com todos e entre todos e tudo. É o direito de ser reconhecido como parte de um sistema em que tudo e todos são interdependentes. É o direito de viver em harmonia com os seres humanos.

A partir do documento “Vivir Bien” apresentado às Nações Unidas, o governo de Evo deu uma lição ambiental ao mundo, aliás, não somente ambiental como, também, social.

No “Vivir Bien”, temos o seguinte: mais importante que falar de direitos da Mãe Terra, o mais crucial é assumir nossa responsabilidade com Ela, com o equilíbrio da natureza, com a capacidade de autorregulação da grande mãe (superorganismo dotado de inteligência), da vida, de assegurar e manter em equilíbrio as condições de existência e a harmonia do Planeta. Sendo parte da natureza, sendo os filhos, os uywas da Mãe Terra, sendo irmãs e irmãos com o vento, as estrelas, as plantas, a pedra, o orvalho, as colinas, os pássaros, os pumas, para nós seres humanos, toca-nos ir além de apresentar os supostos direitos do Planeta, de assinar convênios, de elaborar constituições ou leis do homem, nos toca cumprir as Leisda Natureza, fortalecer a vida harmônica entre homem e natureza, cuidar de Pachamama.

A partir dessas noções, Evo está conseguindo mostrar aos bolivianos que outra vertente de desenvolvimento é necessária, urgente e possível, tudo isso fora da ótica do consumo, apresentando alternativas de sustentabilidade nos eixos de produção e relação com o Planeta. Com seu governo, sócio ecológico, ele promove a inclusão, justiça social e, principalmente, a justiça ambiental, já que esta é imprescindível para qualquer práxis em torno da justiça e reparação das injustiças sociais provocadas pelo capitalismo que só existe para defender o capital e nunca o trabalhador, ou seja, o bicho homem.

Por fim, é necessário dizer que se o Brasil parasse de ser vira-lata externo e xenófobo interno, começaria a dar valor a experiências como essa da Bolívia, de Cuba e de muitos outros países latino-americanos, com vistas àconstrução e elaboração de outra lógica de política, sustentável, plural e de respeito à Mãe Terra e a seus filhos. Somente assim, haveria o desenvolvimento em perspectivas plenas neste país que, infelizmente, em vez de progredir, retrocede, a cada dia no pós-golpe, afundando-se em valores conservadores, reacionários e fundamentalistas negadores da pluralidade e da diversidade como molas do progresso e dos elementos necessários para o bem viver no século XXI, mundo de mudanças climáticas e desequilíbrios que precisam ser mitigados o quanto antes para que, assim, seja possível o Brasil visualizar perspectivas de futuro, aliás, não somente o Brasil, mas todo o globo, em rede.

Referências utilizadas para a construção do texto

O documento “Vivir Bien”, elaborado pelo Ministério das Relações Exteriores da Bolívia.

O livro “Sociedade da decepção”, de Lipovetsky.

O livro “Entramando Pedagogías Críticas Latinoamericanas”, de Fabian Cabaluz Ducasse.

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