A terceira e violenta votação do Plano Diretor

marceloPor Elaine Tavares.

Tem sido assim desde as primeiras formações humanas. Quem tem o poder numa comunidade e o exerce para benefício próprio, fatalmente terá medo das gentes. A “malta”, a “raia miúda”, aqueles que ficam fora do círculo do gran senhor, sempre estarão tensionando o poder, exigindo direitos, buscando um lugar no banquete da vida. E é contra esses, no geral a maioria, que os senhores formam exércitos. Muito mais do que para atacar outros povos, é para defender seu poder. Foi assim nas antigas civilizações, e continua nos tempos atuais. Não é à toa que, hoje, existem as polícias militares. Não são grupos para defender o cidadão, embora até cumpram esse papel vez em quando. Existem para proteger o poder, seja ele do estado ou dos ricos. É por isso que as PMs veem qualquer mobilização popular como uma ameaça, e os manifestantes como inimigos. Não pode ser diferente. Essas corporações treinam assim os seus membros.

Nesse dia 6 de janeiro, mais uma vez essa realidade se expressou. Diante da presença de um grande números de pessoas, protestando contra a aprovação de um Plano Diretor para a cidade, que os vereadores mostraram sequer conhecer, as forças policiais cumpriram seu papel de tratar as gentes como inimigas mortais.

Tudo começou bem antes da sessão iniciar. As portas da casa foram fechadas, numa clara alusão de que, desta vez, a população não poderia entrar. Não importa que a Câmara de Vereadores seja chamada de “casa do povo”. Isso é uma ilusão num sistema que se diz democrático, mas que não resiste a uma mínima pressão. A democracia só se sustenta se há um manso rebanho. Qualquer rugosidade na “paz” do poder, e a democracia mostra sua cara torta. Os guardas municipais fizeram um cordão e avisaram. “Só vão entrar 80 pessoas. É a lotação da casa. Só pode ficar sentado”. Ora, a rua estava cheia de gente que queria acompanhar a votação, ver de perto a canalhice anunciada.

O argumento dos guardas era de que os bombeiros instruíam para não deixar entrar mais gente do que permitia o plenário, com pessoas sentadas. “Mas como é que para outras votações pode ter gente em pé?”, perguntavam. “As regras mudaram”, diziam os guardas. E o medo bailava nos rostos constritos. Gente demais, povo demais. Medo demais. Os que estavam dentro pressionaram para abrir a porta, os que estavam fora também. Estabeleceu-se o impasse e o empurra-empurra. Nessa hora, a força assoma, vestida com as armas do poder. Cassetete, arma de choque, gás de pimenta. Os jovens, armados só de coragem, gritavam. E o medo na cara dos guardas fazia com que se valessem da força artificial. Dentro da Câmara, as armas de choque reluziram, afastando o povo das portas.

Do lado de fora a Polícia Militar fazia um cordão, igualmente armada. Ainda assim, por muito tempo as gentes arremeteram contra a porta, sem contudo rompê-la. O fuzuê se estendeu por quase uma hora, tempo suficiente para que, lá dentro, no plenário, os vereadores realizassem a absurda votação, surdos à gritaria. Era para ser apreciado o texto final do projeto, que não existia na votação do dia 30. O vereador Afrânio havia pedido vistas. Não era possível que uma casa legislativa legislasse sobre um texto que nem existia de fato. Pois no dia de hoje tampouco havia o texto. Ainda assim, enquanto lá na porta do plenário, a polícia e a guarda municipal impediam a entrada das gentes, a maioria dos vereadores aprovava o texto inexistente.

Como das outras vezes, apenas três votos contrários: Pedrão (PP), Afrânio (Psol) e Lino (PT).

Terminada a sessão, as portas se abriram. Saíram os manifestantes para a frente da garagem, onde pretendiam esperar a saída dos vereadores. De novo, o poder militar se interpôs diante daqueles que se manifestavam contra a ilegalidade da votação. No rosto dos militares a expressão vazia de quem atravessa o outro, porque é inimigo. Nenhum vestígio de empatia, afinal eles também são moradores da cidade e sofrerão as consequências do que foi votado.

O tensionamento seguiu, embora não houvesse nada a guardar. Não havia vereadores, não havia carros, não havia nada. Só um portão, tapado pelos soldados. Os manifestantes cantavam e gritavam palavras de ordem. Então, toda a tensão explodiu. Irritados com alguns jovens que brincavam com spray de espuma, os soldados partiram para cima, tentando arrancar o spray. Foi o que bastou. Explodiu a massa. Um garoto foi preso, arrastado para o camburão. Outros receberam pauladas na cabeça e sangravam, uma garota, já dominada por um PM levou spray de pimenta na cara. Aturdidos e irritados com a resposta desproporcional da polícia contra jovens desarmados, as pessoas começaram a jogar coisas. Lixeiras, cones, pedaços de pau. Correria e comoção. Brutalidade e violência por parte da polícia.

Terminava de forma lacônica a votação do Plano que vai desenhar a cidade pelas próximas décadas. Um plano desconhecido pelos vereadores, mas não pelas gentes. Sabe-se muito bem que algumas áreas da cidade serão adensadas de maneira absurda, que espaços de preservação serão liberados para construção, que o cimento tomará conta do verde, que a ilha – hoje com 350 mil habitantes – será preparada para receber mais de um milhão de moradores. Tudo isso sem qualquer planejamento no que diz respeito ao abastecimento de água, de energia elétrica e de saneamento. O que a “turma do cimento” quer é erguer prédio. Não importa se não haverá estrutura, ou se as pessoas não conseguirão se mover. Afinal, um apartamento em Florianópolis hoje, em áreas nobres, está entre 700 mil reais e um milhão. É dinheiro demais. O que vale é vender. Os moradores, depois, que se virem.

Por três vezes seguidas, os vereadores votaram em propostas não discutidas com a comunidade. Muitas delas incorporadas ao Plano por pedido de seus “patrocinadores”, e pela própria prefeitura, através do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis, o IPUF. Na primeira votação aprovaram em bloco, sem conhecer o conteúdo das mais de 600 emendas apresentadas, 300 delas. Na segunda votação se recusaram a discutir o fato de que haviam sido quebradas várias regras do regimento interno e do Estatuto da Cidade. Patrolaram. Nesse dia 6, em terceira votação, repetiram a dose. Alheios ao desejo das gentes que queriam entrar para acompanhar o processo, aprovaram o texto final, igualmente desconhecido por eles.

O que se viu em Florianópolis foi expressão viva do que é a “democracia” do capital. Um legislativo dominado, insensível, atuando de forma irregular, sem levar em conta o clamor popular. Sem considerar um trabalho comunitário de sete anos e a construção de um Plano Diretor participativo. O projeto aprovado é completamente diferente do que foi desenhado pelas comunidades. Para defendê-lo, a força bruta da polícia. Com medo, mas sem vergonha, os vereadores usaram a PM para sua proteção e para a proteção da proposta daqueles que verdadeiramente mandam na cidade.

Enquanto isso, em algum lugar dos Estados Unidos – alguns dizem que na Disney – o prefeito da cidade, César Souza Junior, aproveitava suas férias, completamente blindado da turbulência popular que ocupou a frente da Câmara. O “bom moço” voltará em alguns dias e poderá vetar ou aprovar o Plano. Alguns, inocentes, ainda acreditam que ele possa vetar algumas emendas, como as que reduzem os espaços de proteção ambiental. Mas, o certo é que se houver veto, será para beneficiar algum empreendimento. Há ainda uma certa esperança na Justiça, uma vez que o processo de votação está eivado de irregularidades e há uma ação em andamento. Mas, sabe-se que a Justiça também está do lado dos poderosos.

Então, resta a luta nas ruas. Só o povo unido e em ação pode mudar o plano. Só as gente em movimento são capazes de provocar o medo aos que se encastelam no poder. Eles tem a força da polícia, é certo. Mas, momentos há, em que essa “raia miúda” que eles desprezam tanto, assoma com tanta força que ninguém pode detê-la.

Fonte: Palavras Insurgentes.

Foto: Alexandre Back.

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