Por Thamires Coutinho.
É unanimidade no campo das Relações Internacionais a trivialidade de se pensar e teorizar o Estado na tentativa de se compreender a dinâmica do mundo globalizado. Desde a teoria mais ortodoxa às mais críticas, se pensar o Estado se configura como a base elementar de qualquer estudo da área.
Desta forma, subentende-se que entender as Relações Internacionais é, inexoravelmente, ter um conhecimento prévio do que se entende por Estado.
Apesar do número de produções recentes sobre o Estado ser de extrema qualidade e de relativo volume, acredito ser essencial ressaltar o papel das Teorias Clássicas do Estado, mais especificamente as produções de Thomas Hobbes e Max Weber, como marcos inaugurais para o entendimento de Estado que norteiam majoritariamente as Ciências Sociais como a conhecemos até os dias atuais.
Resgatando os escritos de Thomas Hobbes, ainda em 1651, extraímos de sua obra a atenção chamada para o fato de que uma sociedade estruturada em uma luta de todos contra todos necessita fundamentalmente de uma instância de poder localizada fora desta disputa para a sua autopreservação. Já em Max Weber, localiza-se a máxima de que o surgimento do Estado Moderno e o capitalismo estão intrinsicamente conectados. Ainda segundo a sua concepção, a característica decisiva deste processo se encontra no monopólio da força física legitimada exercida pelo Estado. Sendo capaz de gerir, assim, a institucionalização do poder e desempenhar um papel fulcral no surgimento do Estado-Nação burguês.
Contudo, não é no mainstream das Ciências Sociais que encontraremos o pulsante aos autores por mim futuramente privilegiados neste texto, ao qual conseguem, de fato, alcançar um patamar mais complexo e elaborado entre a relação do Estado e das relações internacionais. É na Teoria Marxista do Estado que se localiza o terreno crítico ideal capaz de transcender a interpretação das conjunturas políticas e fincar um entendimento robusto das estruturas do capitalismo e o subsequente papel do Estado.
Essas reflexões partem da leitura do próprio Marx com suas teses fundamentais do materialismo histórico, da dialética e a luta de classes (Marx, 2017). Desde os seus escritos da juventude, até a “A Ideologia Alemã” de 1846, mais explicitamente na retratação da França revolucionária em “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” de 1852, até sua obra derradeira, “O Capital” em 1867; Marx inaugura o que se tornaria o arcabouço irrefutável para a problematização do capitalismo, suas formas e estruturas. Possibilitando que posteriormente autores como Lênin celebrem obras mais diretas na teorização do Estado e do Imperialismo. É a partir deste entendimento de Estado que se situa o que iremos discutir.
Na literatura marxista clássica é recorrente a limitação do entendimento de Estado à simples instrumento de dominação burguesa, o que até faz sentido na lógica prática da Revolução Proletária, mas que não condiz com a materialidade complexa do Estado. Neste sentido, Gramsci é o primeiro a superar a concepção economicista de relação automática entre base e superestrutura definida pelos autores marxistas clássicos, abrindo o debate de orientação marxista tanto para uma teorização independente do Estado, quanto para uma compreensão de contingência histórica (Hirsch, 2017).
Movendo a reflexão em torno do Estado para a contemporaneidade, na frutífera produção em torno das concepções marxistas, Hirsch faz com a Ciência Política um movimento semelhante ao que Pachukanis fez com o direito, ou seja, franqueia novos rumos de compreensão. Inspirado nas pistas legadas pelo jurista soviético sobre o Estado, Hirsch alcança na teoria materialista a força motriz necessária ao preenchimento das lacunas teóricas deixadas pelas Teorias do Estado até aqui produzidas.
Ao se propor pensar uma teoria do direito marxista, Pachukanis expõe elementos para a compreensão do Estado em si, publicando em 1924, na sua obra mais importante, a “Teoria Geral do Direito e Marxismo”, o conceito chave que inquieta e incita as reflexões mais profundas. Leia abaixo:
“Por que o domínio de classe não permanece tal como ele é, ou seja, a sujeição real de uma parte da população por outra? Por que ele assume a forma de uma dominação estatal oficial ou, por que o aparelho de coerção estatal não é criado como um aparelho privado da classe dominante, mas, pelo contrário, se separa desta e assume a forma de um aparelho impessoal de poder público, saído da sociedade? ” (Pachukanis, 2017, p.143)
A partir da exaustiva pesquisa em torno da prerrogativa pachukaniana e da retórica já lançada por, dentre outros, Gramsci, Althusser e Poulantzas; é que autores como Joachim Hirsch desenvolvem um olhar mais crítico e complexo acerca da teoria materialista do Estado, sua relação com a sociedade e a manutenção do capitalismo. Somando-se ao movimento de retomada dos conceitos do Volume I d’O Capital de Marx, é possível desenvolver o argumento de que pensar o capitalismo em fases é um erro, pois o capitalismo é um só. Por definição, já nasce internacional e somente através da figura institucionalizada do Estado tem a sua prática possibilitada (Bonefeld, 2013; Hirsch, 2010).
O Estado, portanto, sob essa perspectiva, não é mero instrumento de dominação da classe burguesa, ao passo que também não é ente neutro sob o modo de produção capitalista. O Estado é o instrumento que, a partir da separação formal entre as classes economicamente dominantes e a classe política, promove a legitimidade e institucionalização das relações de classe. Sendo atravessado pela necessidade de assegurar o processo socioeconômico capitalista de reprodução (Hirsch, 2010).
Desse modo, o capitalismo é intrinsicamente internacional (Marx, 2017), sendo o mercado internacional a base, a premissa e o resultado da reprodução contínua das relações capitalistas (Bonefeld, 2013) e o Estado a instituição capaz de legitimar, através da sua autonomia relativa, a organização social classista burguesa, possibilitando a reprodução das práticas produtivas. O mercado internacional e o Estado são, portanto, representações específicas e complementares do mesmo modelo organizativo: o capitalismo.
Absorver e verdadeiramente repensar as Relações Internacionais à luz dessa nova perspectiva de Estado nos coloca diante de um desafio elementar. Primeiro por ir de encontro à função atribuída originalmente às Relações Internacionais, que é a de entender a dinâmica do mundo para então garantir a sua preservação tal como ela se apresenta. Em segundo lugar, por sugerir um rompimento epistemológico aceito e difundido no campo das Relações Internacionais sobre a História do desenvolvimento do Estado-Nação e do capitalismo (Teschke, 2016). E em terceiro lugar, o ponto que nos é mais sensível, o de reconhecer a disciplina enquanto uma tradição teórica incapaz, até o dado momento, de transcender o que é proposto dentro do capitalismo, ou seja, assentir as Relações Internacionais como um campo de pensamento que, por apenas compreender a linguagem do Estado, desempenha ao longo dos anos meramente o papel de manutenção do status quo, do capitalismo e das suas contradições.
Exercitar esses três pontos sem, consequentemente, descartar o papel fundamental das Relações Internacionais para a compreensão e superação das contradições tradicionalmente capitalistas é a grande interrogação colocada a quem não se sujeita ao papel de mero reprodutor das teorias tradicionais das RI e do Estado. A resposta para essa grande reconsideração teórica não pode ser dada em poucas linhas, tendo este texto apenas as bases teóricas para a provocação e consequente confusão que a referida reflexão nos traz. Cabe a nós, os confusos, a responsabilidade de fazer do campo das Relações Internacionais tudo o que ela não foi até agora: um instrumento crítico capaz de viabilizar a mudança.
*Thamires Coutinho é graduanda em Relações Internacionais na UFRRJ
Referências
BONEFELD, Werner. “Más allá de las relaciones internacionales: acerca del mercado mundial y el estado-nación”. IN: KAN, Julián; PASCUAL, Rodrigo (comps.). INTEGRADOS (?) Debates sobre las relaciones internacionales y la integración regional latino-americana y europea. Buenos Aires: Imago Mundi, 2013, p. 43-70.
HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. São Paulo: Revan, 2010.
HIRSCH, Joachim; KANNANKULAM, John; WISSEL, Jens. A teoria do Estado do “marxismo ocidental”. Gramsci, Althusser, Poulantzas e a chamada derivação do Estado. Tradução de André Vaz Porto Silva. Revista direito e práxis, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 722-760, 2017.
KARL, Marx. O 18 de Brumário de Luis Bonaparte. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2017.
KARL, Marx. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2017.
PACHUKANIS, Evguiéni B., Teoria geral do direito e marxismo, São Paulo: Boitempo, 2017.
TESCHKE, Benno. Repensando as relações internacionais: uma entrevista com Benno Teschke. Entrevista realizada por George Souvlis e Aurélie Andry. Outubro Revista. Edição 27. Novembro de 2016.
Fonte: Lavra Palavra.