Em artigo publicado no Justificando, o juiz titular da 2ª Vara do Trabalho de São Carlos, Renato da Fonseca Janon, afirma que a proposta do presidente provisório Michel Temer (PMDB) de reforma trabalhista viola, “por qualquer ângulo que se examine a questão, os direitos trabalhistas previstos” na Constituição e, portanto, “não podem ser suprimidos – nem mitigados” porque a Constituição “não se admite o retrocesso do avanço social”.
As propostas de reforma trabalhista que tramitam no Congresso Nacional, pretendendo a supressão de direitos dos trabalhadores, além de temerárias, são manifestamente inconstitucionais. Primeiro, porque os direitos sociais previstos no art.7º da CF constituem cláusula pétrea e, portanto, não podem ser abolidos nem reduzidos por emenda constitucional. Segundo, porque a supressão de direitos trabalhistas também afrontaria o princípio que veda o retrocesso de avanços sociais.
O art. 60, § 4º, do Estatuto Supremo de 1988 estabelece que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir, entre outros, ‘os direitos e garantias individuais’“.
Como ensina José Afonso da Silva, “o texto não proíbe apenas emendas que expressamente declarem: ‘fica abolida a Federação ou a forma federativa de Estado’, ‘fica abolido o voto direto…, …passa a vigorar a concentração de Poderes’, ou ainda ‘fica extinta a liberdade religiosa, ou de comunicação…, ou o habeas corpus, o mandado de segurança…’. A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da Federação, ou do voto direto, ou indiretamente restringir a liberdade religiosa, ou de comunicação ou outro direito e garantia individual; basta que a proposta de emenda se encaminhe ou ainda que remotamente, ‘tenda’ (emendas tendentes, diz o texto) para a sua abolição”[1].
Por sua vez, o conceito de “direitos individuais” não se restringe ao elenco do art.5º da Constituição, encontrando-se pulverizado pelo texto da Carta Magna, como deixou bem claro o Supremo Tribunal Federal . Assim, aqueles direitos contidos nos art.6º e 7º da Constituição, sob a nomenclatura “direitos sociais”, são também direitos individuais, à medida em que cada trabalhador, individualmente, deles se beneficia, e, por isso, não podem ser suprimidos ou reduzidos. Daí por que um projeto de Emenda com esta tendência não pode, sequer, ser objeto de deliberação[2].
O então Ministro Sepúlveda Pertence, em judicioso voto acolhido pelo órgão pleno do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1675-1, asseverou que “parece inquestionável – e sobre isso não houve controvérsia na Adin 1480 – que os direitos sociais dos trabalhadores, enunciados no art.7º da Constituição, se compreendem entre os direitos e garantias constitucionais incluídos no âmbito normativo do art.5º, § 2º, de modo a reconhecer alçada constitucional às convenções internacionais anteriormente codificadas no Brasil”.
Xisto Tiago de Medeiros Neto também defende que “os Direitos Sociais, ao se inserirem no rol dos Direitos e Garantias Fundamentais inscritos no Título II da Constituição da República de 1988, expressam, induvidosamente, a opção do legislador constituinte em instituir um Estado Democrático de Direito pautado na promoção e efetivação dos valores sociais e individuais à luz do princípio da dignidade da pessoa humana… os direitos sociais, em toda a sua extensão, abrangendo, inclusive, os direitos dos trabalhadores (art.7º. da Constituição Federal), constituem cláusula pétrea constitucional, não podendo ser atingidos pelo poder reformador derivado no sentido da sua alteração prejudicial ou extinção”[3].
Joaquim José Gomes Canotilho, ao discorrer sobre a relevância angular do princípio da dignidade da pessoa humana, ressalta a importância de reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Partindo dessa premissa, o ilustre constitucionalista português ensina que “o número essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios, traduzam-se, na prática, numa anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade do legislador tem como limite o núcleo essencial já realizado”[4].
Paulo Bonavides leciona que “em obediência aos princípios fundamentais que emergem do Título II da Lei Maior, faz-se mister, em boa doutrina, interpretar a garantia dos direitos sociais como cláusula pétrea e matéria que requer, ao mesmo passo, um entendimento adequado dos direitos e garantias individuais do art.60” [5].
Não custa lembrar que o então professor de Direito Constitucional e hoje Ministro da Justiça de Michel Temer, Alexandre de Moraes, sustentava que: “… a grande novidade do referido art. 60 está na inclusão, entre as limitações ao poder de reforma da Constituição, dos direitos inerentes ao exercício da democracia representativa e dos direitos e garantias individuais, que, por não se encontrarem restritos ao rol do art. 5º, resguardam um conjunto mais amplo de direitos constitucionais de caráter individual dispersos no texto da Carta Magna (…)”.
O atual ministro da Justiça continua: Importante, também, ressaltar que, na citada Adin nº 939-07/DF, o Ministro Carlos Velloso referiu-se aos direitos e garantias sociais, direitos atinentes à nacionalidade e direitos políticos como pertencentes à categoria de direitos e garantias individuais, logo, imodificáveis, enquanto o Ministro Marco Aurélio afirmou a relação de continência dos direitos sociais dentre os direitos individuais previstos no art. 60, § 4º, da Constituição Federal”[6].
Assim, não resta a menor dúvida de que uma Emenda Constitucional pode padecer do vício da inconstitucionalidade e de que os direitos sociais assegurados no art.7º. da Carta Magna também constituem cláusula pétrea e, portanto, não podem ser abolidos pelo legislador, nem mesmo pelo Poder Constituinte Derivado.
Há de se considerar, ainda, que, além da impossibilidade de se suprimir cláusulas pétreas, a proibição de se mitigar os direitos sociais assegurados pelo Constituinte originário também decorre do Princípio da Vedação do Retrocesso Social, o qual, no dizer de Ingo Wolfang Sarlet, significa: “a garantia de intangibilidade desse núcleo ou conteúdo essencial dos direitos sociais, além de assegurar a identidade do Estado brasileiro e a prevalência dos princípios que fundamentam o regime democrático, especialmente o referido princípio da dignidade da pessoa humana, resguarda também a Carta Constitucional dos “casuísmos da política e do absolutismo das maiorias parlamentares”[7].
Luís Roberto Barroso, ministro do STF e professor de Direito Constitucional da UERJ, defende que o princípio da vedação do retrocesso social deve incidir mesmo quando se trata de uma norma que dependa de regulamentação infraconstitucional. Diz o ilustre constitucionalista: ‘o fato de uma regra constitucional contemplar determinado direito cujo exercício dependa de legislação integradora não a torna, só por isso, programática. Não há identidade possível entre a norma que confere ao trabalhador direito ao “seguro-desemprego” em caso de desemprego involuntário (CF, art. 7º, II) e a que estatui que a família tem especial proteção do Estado (CF, art. 226). No primeiro caso, existe uma verdadeiro direito. Há uma prestação positiva a exigir-se, eventualmente, frustrada pelo legislador ordinário. No segundo caso, faltando o Poder Público a um comportamento comissivo, nada lhe será exigível, senão que se abstenha de praticar atos que impliquem na desproteção da família. A ideia aqui expressa também tem sido designada como proibição de contrarrevolução social ou de evolução reacionária”.
Barroso conclui seu pensamento: “Com isto se quer dizer que os direitos sociais e econômicos (ex. direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez alcançados ou conquistados, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo”[8].
Ou seja, por qualquer ângulo que se examine a questão, os direitos trabalhistas previstos no art. 7º da Carta Magna não podem ser suprimidos – nem mitigados – por Emenda Constitucional, seja porque constituem cláusula pétrea ou porque não se admite o retrocesso do avanço social.
Fonte: Justificando.