Por Rodrigo Martins.
Demitido da Mercedes-Benz em junho, o soldador Danilo Gritti Leite ainda alimenta a esperança de reaver o emprego. Afetado pelo corte de 500 operários anunciado pela montadora do ABC Paulista, ele topa ter a jornada e o salário reduzidos em 30% para ser incluído no Programa de Proteção ao Emprego, ação emergencial do governo para conter a sangria no mercado. Antes de ser dispensado, o metalúrgico passou 13 meses em regime de lay-off, suspensão temporária do contrato de trabalho para cursos de qualificação profissional, com remuneração reduzida. “Agora, não posso contar nem com o seguro-desemprego, pois a maior parte dos recursos foi usada na complementação da bolsa do lay-off”, diz Leite. “A crise atinge o mundo todo, mas não é justo deixar o ônus recair só sobre os trabalhadores.”
A variação negativa do PIB deste ano, prevista pelo Banco Central em 2%, mostra o efeito devastador da política econômica, com aperto fiscal e aumento dos juros. O Brasil fechou 345 mil postos de trabalho no primeiro semestre. Até o fim do ano, pode perder 1 milhão de empregos formais, estima o Conselho Federal de Economia. Diante desse cenário, o Executivo e o Legislativo deveriam atuar em sintonia para a superação da crise econômica. Deveriam, mas não o fazem. “Dilma está nas cordas, lutando para permanecer de pé, e tem aceitado todas as imposições conservadoras”, resume o deputado Ivan Valente, do PSOL, que também faz oposição ao governo, mas pelo campo da esquerda. “Os setores mais reacionários tomam proveito da crise para impor a sua agenda.”
Em meio à guerra entre governistas, rebelados e parlamentares da oposição, chovem propostas que acenam para o desmonte do Estado e da rede de proteção social ou apenas beneficiam corporações da máquina pública. Nem o Sistema Único de Saúde, gratuito e universal, como reza a Constituição, escapa dos ataques. Para acomodar os interesses de ruralistas, mineradoras e empreiteiras, investe-se contra os direitos dos povos indígenas e a legislação ambiental. A Consolidação das Leis do Trabalho, que sobreviveu desde a Era Vargas, também está na linha de tiro.
“Os ataques aos direitos trabalhistas não vêm de hoje, mas a crise criou o ambiente favorável para essas propostas avançarem”, lamenta Carlos Eduardo de Azevedo Lima, presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho. A principal ameaça é o projeto que libera as terceirizações. No fim de abril, após uma sessão comandada com mão de ferro pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, restou aprovado um texto que autoriza as subcontratações até mesmo para as atividades-fim, com o respaldo de campanhas patrocinadas pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo e pela Confederação Nacional da Indústria.
À época, o presidente do Senado, Renan Calheiros, assumiu o compromisso de não apreciar o tema de forma açodada, e despachou o texto para a análise de quatro comissões. Mas, em agosto, ao negociar uma trégua com o governo, o peemedebista incluiu o projeto em sua “Agenda Brasil”, o que deve acelerar a tramitação da proposta. Um dossiê preparado pela Central Única dos Trabalhadores, com a participação de técnicos do Dieese, revela que os terceirizados recebem salários 24,7% menores do que aqueles dos efetivos, permanecem no emprego pela metade do tempo, além de ter jornadas maiores.
Não é tudo. Recentemente, deputados desarquivaram propostas para reduzir a idade mínima do trabalhador de 16 para 14 anos. Sob a justificativa de aumentar a formalização do mercado de trabalho, o deputado Júlio Delgado, do PSB mineiro, reapresentou um projeto que flexibiliza as normas em micro e pequenas empresas. O PL 450/2015, conhecido como “Simples Trabalhista”, reduz o recolhimento do FGTS de 8% para 2%, permite o parcelamento do 13º salário em até seis vezes e o fracionamento das férias em três períodos, entre outras inovações. “Se a proposta vingar, criaremos trabalhadores de segunda categoria, sem os mesmos direitos que os demais”, avalia Lima, da ANPT. “É curioso ver como certos setores empresariais nunca pagam a conta da crise.
A Agenda Brasil contempla antigas reivindicações dos ruralistas e do setor de mineração, como os projetos que mudam as regras para a demarcação e o uso das terras indígenas. O objetivo é transferir para o Congresso a atribuição de homologá-las, além de permitir atividades agropecuárias e o garimpo nas reservas. “Isso trará danos irreparáveis à preservação da cultura dos povos indígenas. Nem mesmo seus territórios estarão protegidos, o que historicamente esteve associado à extinção de várias etnias”, alerta Cleber Buzatto, do Conselho Missionário Indigenista.
Na Câmara e no Senado, os lobbies de outros setores avançam a passos largos. Criada para investigar violações aos direitos humanos, a CPI do Sistema Carcerário, para citar um exemplo, terminou com a espantosa recomendação de privatizar os presídios. “As empresas do setor foram convidadas para as audiências públicas e tiveram espaço privilegiado para defender suas teses. As declarações foram literalmente incorporadas pelo relatório”, critica o deputado Edmílson Rodrigues.
Outro projeto, do senador José Serra, pretende acabar com a obrigatoriedade de a Petrobras ter participação mínima de 30% nos campos do pré-sal. O tucano argumenta que a estatal está com problemas financeiros, sem condições de realizar os investimentos necessários. “É balela. No primeiro trimestre de 2015, a Petrobras teve lucro líquido de 5,33 bilhões de reais”, rebate o senador petista Lindbergh Farias. “O pré-sal foi descoberto com investimentos em pesquisa feitos pela própria Petrobras. Para quem entrar no negócio agora o risco é zero. Todo mundo sabe onde estão os campos, o quanto cada um deles pode produzir. O que querem, na verdade, é abrir as portas para as petroleiras estrangeiras.”
Os planos de saúde, por sua vez, encontraram em Eduardo Cunha um poderoso aliado. Beneficiário de vultosas doações de campanha do setor, o deputado relatou, em 2013, a Medida Provisória 627, que anistiava a dívida das seguradoras com o SUS em 2 bilhões de reais. O estrago só não se concretizou em decorrência do veto de Dilma Rousseff. À frente da presidência da Câmara, ele evitou a instalação de uma CPI para investigar abusos das operadoras de saúde, que lideram os rankings de reclamação de consumidores. Patrocinou, ainda, a PEC 451, que obriga todas as empresas a pagar planos de saúde privados aos seus empregados. Dessa forma, o número de clientes da saúde suplementar saltaria dos atuais 50 milhões para 71,5 milhões. Segundo os críticos, a medida não leva em conta o direito à saúde universal e pública garantido pela Constituição.
Na Agenda Brasil de Renan Calheiros aventou-se até a possibilidade de cobrar da população por procedimentos do SUS. “É como pegar uma máquina do tempo e voltar para o período anterior à Constituição de 1988, quando os mais abastados tinham planos privados, os empregados dependiam da assistência do extinto Inamps e o resto da população ficava à mercê da caridade”, critica o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão. “No discurso, todos os parlamentares dizem defender a saúde pública, mas as iniciativas em curso só visam enfraquecê-la.”
No Parlamento mais conservador desde o fim da ditadura, a supressão de direitos não se restringe aos interesses econômicos. Principal aliado da chamada “Bancada BBB”, do Boi, da Bala e da Bíblia, Eduardo Cunha também ataca pelo campo dos costumes. Recuperou, entre outras medidas, a anacrônica proposta do Estatuto da Família, que restringe a concepção de núcleo familiar à união entre um homem e uma mulher, para dificultar a adoção de crianças por casais gays. Na avaliação de Majú Giorgi, do movimento Mães pela Diversidade, trata-se de uma reação a recentes conquistas, como o reconhecimento da união civil entre indivíduos do mesmo sexo pelo STF. “O que mais preocupa, na verdade, é essa confusão entre política partidária e a causa LGBT. Nas últimas manifestações contra o governo, fiquei estarrecida com esse discurso de ‘ditadura gay’, implantada por ‘ateus’ e ‘petralhas’, como se não existissem homossexuais de direita e dos mais variados credos.
Apesar do turbulento cenário político, seu filho, André Giorgi, mantém o otimismo. Alvo de numerosos ataques homofóbicos, ele reuniu políticos, artistas e outras personalidades em um ensaio fotográfico, com mensagens contra o preconceito. A mostra “50 Vozes contra a Homofobia” passou pelo saguão da prefeitura de São Paulo, pelo Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, e agora está nas estações do Metrô. “Fiquei assustado quando recebi a notícia de que os cartazes viraram alvo de pichações. Saí de casa enfurecido, achando que eram ataques. Mas não, eram só manifestações de apoio e carinho”, conta. “Apesar de toda essa campanha de ódio movida por certos setores, estamos vencendo a batalha cultural. A maioria se solidariza com a nossa dor.”
Pode até ser, mas o fato é que, na atual “guerra política”, a maior vítima é a sociedade civil.
*Reportagem publicada originalmente na edição 865 de CartaCapital, com o título “Vítimas da Guerra”