A revolução bolivariana no futebol

Duas horas se passaram após Hugo Chávez Frías sair da vida para entrar na história, e o treinador da seleção venezuelana de futebol, César Farias, chamava atenção no Twitter para o jogo que estava em curso. O Deportivo Lara enfrentava o Olimpia em Asunción e conseguia arrancar um empate, pela Copa Libertadores. Mais tarde, o Caracas entrou em campo e não resistiu aos galáticos do Grêmio: levou quatro. Farias foi lacônico ao falar da morte de Chávez – “dividiu poucos momentos, todos muito emocionados pelos êxitos da Seleção” – mas poderia ser menos: desde que Chávez assumiu o poder, o futebol venezuelano alcançou um patamar jamais imaginado.

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Hugo Chávez assumiu o poder na Venezuela em 1999. Naquele mesmo ano, uma Copa América foi disputada no Paraguai: a seleção venezuelana marcou um gol, levou 13, e só ficou na história por ser sparring do primeiro golaço de Ronaldinho pela equipe profissional. O primeiro jogador a ser driblado por Ronaldinho foi Jose Manuel Rey, que estava no empate em Assunção ontem, com a camisa do Deportivo Lara.

Rey é testemunha de chuteiras da evolução ocorrida no futebol venezuelano no governo de Hugo Chávez. O país sempre foi ligado ao beisebol e seu líder não poderia ser diferente: jogou na infância nos Criollitos, e sempre que podia aparecia com um taco, uma luva e uma bola na mão.

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Porém, Chávez sabia da importância do futebol para a popularidade do seu governo – e especialmente, seus aliados sabiam. Houve um ponto de virada: em 2004, em pleno estádio Centenário, a equipe vinotinto humilhou o Uruguai por 3×0 nas eliminatórias para a Copa do Mundo. O Uruguai, treinado por Carrasco, tinha nas suas fileiras Sorondo, Recoba e Diego Forlán. A Venezuela venceu com Urdaneta, Arango e González.

O ponto de virada é este segundo Nicolás Fedor, em entrevista à jornalista Marina Terra no Opera Mundi.
“Nesse dia houve uma mudança de mentalidade, vimos que era possível ganhar desses times”, disse. Antes ligado à influência colombiana – também por isso o Deportivo Táchira, de San Cristóbal, era o maior time do país – e a bolsões isolados de imigração, como os que formaram o Deportivo Italia, o futebol venezuelano começou a caminhada para ter seu potencial explorado como esporte de massa, tal qual no mundo inteiro.

O Centenariazo ocorreu três anos antes da Copa América de 2007, que seria sediada pela Venezuela. Hugo Chávez já era líder global: destacado pelos seus furiosos discursos contra George W. Bush, exercia influência sobre a política latinoamericana e era o baluarte maior do socialismo. Um longo discurso seu, carregado de conteúdo motivacional contra o complexo de vira-lata sul-americano, encheu o ginásio Gigantinho em um Fórum Social Mundial – eu estava lá, e passei calor.

Para a Copa América, nove estádios foram usados – três construídos, seis totalmente reformados – , em sedes bastante espalhadas pelo país: Barinas, Barquisimeto, Maturín, Mérida, Maracaibo, Caracas, San Cristóbal, Puerto Ordaz e Puerto La Cruz. O governo venezuelano especulava um investimento de 900 milhões de dólares na competição – claramente exagerado, mas muito superior a qualquer edição de Copa América anterior. A Venezuela classificou-se em primeiro no grupo, mas acabou eliminada pelo Uruguai, que devolveu o Centenariazo de 2004 com um 4-1 em San Cristóbal: Forlán, presente na tragédia do Centenário, fez dois.

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O ponto de partida, porém, já havia sido dado. A Liga Venezuelana cresceu de 10 para 18 times. As equipes, que tinham muitas dificuldades em resistir pelo baixo público e pela falta de investimento, começaram a receber vultuosos patrocínios estatais, como o Deportivo Anzoátegui, o Deportivo Lara, o Caracas (através da PDVSA), o Unión Atlético Maracaibo, o Zamora – que é de um irmão de Chávez – entre outros. Esses investimentos chegavam através das empresas estatais ou dos governadores de Estados, que utilizavam o futebol para divulgar seus governos – alguns governantes foram presidentes de clubes, como no caso do Maracaibo. O futebol, portanto, era mais um veículo dos chavistas que de Chávez, que só se manifestava quando jogava a seleção Vinotinto.

Também os altos investimentos da Venezuela no esporte contribuíram para isso. Pela primeira vez desde 1968 a Venezuela teve uma medalha de ouro individual em uma olimpíada, e foi na ESGRIMA. Os investimentos estatais no esporte aumentaram 35 vezes, e foram capilarizados, com “missões” em bairros pobres e programas de competições nas periferias. Tudo isso contribuiu para o aumento da qualidade dos talentos futebolísticos venezuelanos, uma vez que o futebol, na sua essência, favorece aquele que não tem outros equipamentos para disputar o jogo que não sejam seus pés e uma bola.

Tim Vickery, em uma profética coluna publicada anteontem, disse que esse crescimento da Venezuela é paradoxal: aumenta a qualidade da seleção nacional, mas faz com que o país se torne mais um exportador de jogadores e perca qualidade nos quadros locais. É verdade que nenhum time venezuelano repetiu a façanha do Caracas, que foi eliminado pelo Grêmio nas quartas de final de 2009 – e provavelmente, esse feito não se repetirá tão cedo. Porém, os resultados dos últimos anos já são melhores em relação a toda a história.

Cristão e socialista, feroz e amoroso, “populista” e libertador, Hugo Chávez deixa a presidência da Venezuela morto e sendo o símbolo maior das contradições presentes no continente. Entre essas contradições, está o futebol: ao mesmo tempo em que ele só cresceu graças ao forte investimento estatal, com estádios e estrutura, esse investimento financeiro atraiu o gosto das pessoas na linha da pobreza por um esporte que pode ser jogado nas ruas e nas praças sem recursos, aumentando o número de torcedores e a possibilidade de talentos. Segundo o Opera Mundi, 17% dos venezuelanos praticaram futebol em 2011 – 29% entre os mais jovens. Ainda que os recursos venham a diminuir com um eventual arrefecimento do chavismo, a semente está plantada, e dificilmente o futebol venezuelano voltará a ser marginal e mambembe como nas outras décadas. Essa, também, é uma conquista que pode ser debitada na conta de Hugo Chávez Frías.

Até a vitória,
Luís Felipe dos Santos

Fonte: http://impedimento.org/2013/03/06/a-revolucao-bolivariana-do-futebol/#.UTeJP5r-baM.twitter

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