A ressaca da UPP

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O próprio governo estadual admite a estagnação do programa.

Por Chico Alves.*

Há 41 anos morador de Camarista Méier, na zona norte do Rio de Janeiro, André Luiz Bezerra encheu-se de esperança quando foi instalada na favela uma das 38 Unidades de Polícia Pacificadora. Sonhava com duplo benefício: mais segurança para o lugar por tanto tempo dominado pelo tráfico e a chegada de serviços básicos. Mais de um ano depois da implantação da UPP, resta a frustração. “Muitos pontos da comunidade continuam sem saneamento e água encanada”, lamenta. A paz, promessa inscrita no próprio título do programa do governo fluminense, também não foi restabelecida completamente.

Em outras comunidades que receberam UPPs em seis anos, a realidade é a mesma: pequena melhora dos serviços públicos e ressurgimento do clima de medo. Aos poucos, a rotina volta a ser bem parecida com aquela do passado. Voltaram as trocas de tiros, os trechos controlados por traficantes e a lei do silêncio. Na segunda-feira 10, criminosos agrediram o jornalista Henrique Soares, do site G1, nas proximidades do Complexo do Alemão, em episódio que reacendeu na memória o assassinato do também jornalista Tim Lopes, ocorrido há poucos quilômetros dali, em 2002.

Dias antes, o próprio secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, admitiu nas entrelinhas a estagnação do projeto considerado inovador ao ser adotado em 2008. Ao anunciar sua permanência no cargo na gestão do governador Luiz Fernando Pezão, Beltrame falou em mudanças no chamado processo de pacificação: “Estamos terminando um diagnóstico, um redimensionamento”. Diante da frustração crescente dos moradores depois da enorme expectativa criada com as UPPs, a correção de rota não será tarefa fácil.
Se procurar sugestões de estudiosos em segurança para a tal remodelação, Beltrame ouvirá críticas bastante contundentes. “Esse é um projeto de mera ocupação militar, não de pacificação”, define a socióloga Vera Malaguti, secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia. Segundo ela, as UPPs são uma ideia imposta de cima a baixo, sem levar em conta as peculiaridades de cada comunidade. “Não acredito que o povo das favelas precise de mais repressão da polícia que dita seus horários e controla suas vidas.” A especialista ataca ainda a implantação prioritária de unidades perto das vias de circulação dos turistas. “Por isso há um grande apoio midiático”, acredita.

Avaliação parecida consta do recém-lançado livro Os Donos do Morro, dos pesquisadores Ignacio Cano, Doriam Borges e Eduardo Ribeiro. Para os autores, a implantação das UPPs privilegiou principalmente localidades com maior Índice de Desenvolvimento Humano e roteiros de visitas turísticas, não aquelas com maiores taxas de criminalidade. “O critério deveria ser justamente o oposto. Áreas de maior ocorrência de crimes, como a zona oeste do Rio e a Baixada Fluminense, não receberam UPPs”, afirma o sociólogo Ignacio Cano.

O projeto, admite Cano, alcançou objetivos importantes. “Ele diminuiu drasticamente o número de homicídios, especialmente aqueles praticados por policiais, e de roubos nessas comunidades.” Além disso, locais antes inacessíveis voltaram a ser frequentados pelos moradores. Isso proporciona muitos benefícios, entre eles a instalação de empresas. Esperava-se também, diante de maior segurança, a chegada de mais serviços públicos, o que aconteceu parcialmente.

Um complicador foi a multiplicação apressada dessas unidades, o que torna mais difícil administrá-las. E militarização é um mau sinal, diz Malaguti. “Se para tudo ficar tranquilo é necessário encher as ruas das comunidades de soldados, isso é indício de que nada está tranquilo.” O programa mobiliza 9.453 policiais, número considerado pelo governo estadual abaixo do necessário. Pezão, eleito governador, pediu à União para estender até o início de 2015 a permanência do Exército no complexo de favelas da Maré.

A atuação das Forças Armadas é um capítulo à parte nos impasses das UPPs. Pela Constituição, os militares federais não poderiam atuar em policiamento de rotina. Para atender ao pleito de Pezão, o Ministério da Defesa criou, há oito meses, a Diretriz Ministerial número 09, com o objetivo de dar amparo legal à intervenção. “Não se pode dizer que a atuação do Exército seja ilegal, pois foram criadas leis. Mas é inconstitucional”, aponta o advogado João Tancredo, presidente do Instituto Defensores de Direitos Humanos.

O malabarismo jurídico não garantiu à comunidade a paz esperada. São frequentes os confrontos entre traficantes da Maré e soldados do Exército. Segundo informações da “Força de Pacificação”, em mais de sete meses foram presos 390 suspeitos, além de 150 menores, e realizadas 241 apreensões de drogas. A truculência continua a ser uma das reclamações dos moradores. Há duas semanas, uma reunião serviu para denunciar esse tipo de violência. O Exército informa que nenhum desvio de conduta de seus soldados foi comprovado.

Conhecida por manter um projeto pedagógico no Complexo da Maré, a artista plástica Yvonne Bezerra de Mello lamenta que a decantada “pacificação” não se verifique na prática. Em um dos tiroteios acontecidos em 3 de novembro, ela fez com que seus alunos se jogassem ao chão para se proteger. “Vejo várias formas de violência, mortes… A lei ali não vale nada.” Enquanto for assim, a paz não passará de uma palavra a embalar uma promessa.

*No Carta Capital

Fonte:  Geledés

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