Por Winnie Bueno.
A história recente do movimento negro aponta para um fenômeno em que há uma materialização bastante concreta da noção de estética como política. Nos corpos negros essa conceituação fica absolutamente verificável em movimentos que vão desde o Partido dos Panteras Negras, passando pelas camisetas altamente politizadas “100% Negro” da década de 1990, que serviam como uma mensagem bastante explícita de resignação contra o mito da democracia racial veiculado na ideia de “somos todos iguais”, chegando a geração tombamento de cabelos coloridos, roupas estampadas, bastante influenciada pelo movimento “Afropunk” norte-americano. Ou seja, desde muito tempo pessoas negras têm resistido através de comportamentos estéticos a um estereotipamento que se situa no olhar do branco sobre nós. A tomada de consciência sobre a possibilidade de existir de formas outras que não aquelas emanadas pela branquitude é portanto repudiada pela mesma, é simples, o negro ao estabelecer narrativas próprias sobre si mesmo racializa o branco e o tira do lugar de sujeito universal.
Obviamente essas ações serão interrogadas, principalmente quando elas emanam de locais onde o branco não está ou não pode controlar diretamente. Os questionamentos geralmente são da seguinte ordem; Isso pode ser considerado política? É emancipatório ou é alienante? É colonizador? É uma mera assimilação estadunidense vazia de criticidade? Ao mesmo tempo é importante dizer que a própria branquitude se utilizou da estética e da moda como ferramentas de resistência. Como no movimento hippie dos anos 1960 por exemplo; e esse tipo de mecanismo é celebrado, não questionado.
Esses apontamentos todos partem de dentro e de fora, mas quando eles são discutidos a partir daqueles e daquelas que não tem condições de compreender a maneira com que a negritude é vivenciada, quando advém dos brancos, é que se torna incômodo. Enquanto essas discussões estão sendo pautadas entre negros e negras, numa perspectiva de aprimoramento da estratégia política, eu não me sinto nem um pouco inquieta. Mas quando essa arguição vem dos brancos, que pouco ou quase nada encontram óbices para organizar-se e reivindicar suas demandas, me vejo profundamente impelida a promover reflexões que sejam capazes minimamente de localizar os debates dentro de uma ótica menos racista. A pauta da “militância do lacre” é um exemplo. Porque está diretamente relacionada com uma forma de setores da juventude negra pautarem suas lutas e políticas (entendo aqui que esta é uma forma, existindo tantas outras).
Imagem via Winnie Bueno
A geração tombamento é um conjunto de pessoas negras, na maioria jovens, que se auto define e estabelece uma outra narrativa sobre si, uma que nega o conteúdo controlador estabelecido pela branquitude. Surge de uma necessidade de promoção de cultura e lazer, produzida por pessoas negras para pessoas negras, o que por si só já é altamente político e emancipatório. A geração tombamento e seus códigos estão localizados em um espaço de subversão. Rompe com a localização que o branco faz do negro, dos seus corpos, das suas ações. Logo, bancar uma estética negra em um mundo em que corpos negros estão sempre no lugar de subordinação é uma transgressão extremamente potente.
Bancar uma estética negra em um mundo em que corpos negros estão sempre no lugar de subordinação é uma transgressão extremamente potente.
Para aprofundar as reflexões que estão propostas nesse texto, aproximo as considerações do pesquisador Osmundo Pinho em um artigo em que ele avalia as performances identitárias de jovens negros em Salvador. Embora Osmundo esteja investido numa elucubração teórica sobre masculinidades negras, há considerações que são bastante ilustrativas para compreender essa abjeção que a intelectualidade branca imprime na militância estético-política da juventude negra periférica.
Para Osmundo o brau (que é uma performativade negra específica do contexto soteropolitano) desafia o racismo de forma mais ou menos contundente através de sua estética e da sua forma de se colocar nos espaços sociais. A geração tombamento também desafia a moral e os costumes brancos saindo da cartilha do preto militante de esquerda que está no “passo certo” da direção política branca. Propõe uma resistência e uma mobilização que independe da aprovação do coletivo universitário “plural” dirigido só pelas apostas políticas brancas da esquerda. Existe inclusive de maneira independente e muitas vezes antagônica a estes. Logo, parte do incômodo da branquitude com jovens negros imbuídos em ter e manter uma boa autoestima pode ser reflexo do “medo branco”, pois os mais cultos destes sabem lá no fundo de suas consciências que todos os processos de afirmação estética da negritude resultaram em grandes movimentos políticos centralizados pela população negra no qual os brancos não eram centrais, nem ao menos necessários, vide o Partido dos Panteras Negras anteriormente citado.
O que é lido primeiramente como um modismo estético na verdade se constitui enquanto uma manifestação político-cultural urbana bastante profícua para ser um espaço de transformação social. Ainda, um lugar onde se escancare as hipocrisias e contradições das organizações de esquerda, que relutam em refletir sobre os processos permanentes de silenciamento e controle dos seus pares negros. A despotencialização de símbolos que apresentam uma significação importante para a negritude não é exatamente uma novidade nesse campo. Ela se constitui quase como estratégia inclusive, uma contra-narrativa.
A própria interpretação do termo “lacre” por parte significativa dos comentaristas brancos dos movimentos sociais é feita a partir do senso comum. Interpretam lacre do lugar de onde eles mesmos utilizariam esse termo e suas implicações. Não compreendem que lacre não tem um significado reto nas dinâmicas sociais da juventude negra. Lacre, como bem Juliana Borges apontou em um texto publicado em sua coluna no site Justificando, apresenta uma significação referente a uma resistência identitária. O lacre aparece como forma de reforço da autoestima, mas também, numa percepção coletiva, é uma forma de reconhecimento da potencialidade de um igual. Quando uma mulher negra diz para outra mulher negra, no contexto das redes sociais por exemplo: “mana, você lacrou”, ela o está fazendo num sentido de elogio, de incentivo, de empatia, de solidariedade. Não quer dizer, com isso, que não há mais nenhuma possibilidade de debate, ou que o argumento apresentado está encerrado em si mesmo. O “lacre”, portanto, tem muito menos a ver com a arrogância e o egocentrismo que algumas concepções querem localizar nele. É o extremo contrário da arrogância, sendo uma forma de agência das novas gerações.
A forma com que os comentaristas brancos abordam o “lacre”, especialmente na esquerda, está diretamente relacionada com a irrelevância que relegam ao papel da negritude nos processos sociais, ou como Osmundo Pinho reflete: “a ilusão objetiva aqui presente se refere à irrelevância da dimensão racial nos contextos analisados e à dificuldade de se identificar fatores raciais na produção de identidade.”
O “lacre” e o “tombamento” também se relacionam com a noção de protagonismo e cidadania para essa geração de jovens negros . Outro fator que a branquitude também tem dificuldade de compreender vez que nunca foram eivadas dessas duas coisas que são fundamentais para a percepção de humanidade. Logo, facilmente atacável pelos brancos. Quando garotas negras, em uma festa ou mesmo nas redes sociais, se colocam enquanto sujeitas prioritárias de suas próprias ações, há um fortalecimento e um auto reconhecimento dessas mulheres, principalmente em locais em que o acesso aos serviços mais básicos de saúde, cultura e lazer não chegam. As festas da geração tombamento geralmente ocorrem em lugares onde o Estado não atua. Praças abandonadas, viadutos precarizados, vielas e ruas onde não há iluminação. A própria juventude organiza esses espaços, reurbaniza os mesmos e, não raro, a branquitude vem a reboque utilizar os mesmíssimos espaços que até então não tinham vida nenhuma.
Em Porto Alegre, que é a cidade onde eu moro, ocorreu exatamente dessa forma. A juventude negra passou a organizar festas embaixo de um viaduto na cidade. Sem apoio público nenhum, nem ao menos sanitários eram disponibilizados. Após o sucesso de público e o compartilhamento massivo de sorrisos negros em rostos absolutamente belos, festas e mais festas organizadas pela juventude branca de classe média passaram a ocorrer no mesmo local, aí então com a devida iluminação e os recursos sanitários esperados para realizar uma festa na rua. Obviamente, sem o reconhecimento devido aos negros e negras que redescobriram o potencial do espaço.
O lacre, ainda que apenas na linguagem, retira o branco do centro.
Outro aspecto importante a respeito do incômodo dos brancos com o “lacre” diz respeito a imagem de subordinação que estes fazem dos negros e negras. Logo, no fundo, a inquietação se dá exatamente na interpretação equivocado do “lacre” como um “cala boca”. E quando jovens negras dizem que estão “lacrando” o que a branquitude escuta é um “cala boca”. É lido, portanto, como insubordinação, e por isso é tão indigesto para aqueles e aquelas que estão tão confortavelmente localizados no lugar imaginário de dizer todas as verdades, da construção do saber hegemônico inquestionável, do ponto de conhecimento não problematizado em que tudo se diz e nada se questiona. O lacre, portanto, incomoda e é teorizado dessa maneira que os brancos estão acostumados a produzir teoria, sem pensar como suas próprias reflexões também estão inscritas a partir do lugar onde eles mesmos estão localizados no mundo. A forma com que a branquitude está acostumada a ler o negro é num lugar de subordinação; quando o próprio negro se nega a esse lugar, há uma inquietação que se manifesta de várias maneiras, e uma delas é através do desprestígio daquilo que o negro está protagonizando.
Por fim, sabendo que os espaços de cultura e lazer como os clubes negros foram espaços fundamentais para a ação política da população negra no contexto global, tendo em mente que espaços festivos e religiosos se configuram enquanto espaços seguros (Hill Collins) onde a população negra, especialmente as mulheres, podem promover uma ação política voltada para a sua própria emancipação, com ferramentas que passam tanto por um simbólico quanto por uma prática de reconhecimento e auto-definição, é bastante simples compreender porque incomodam tanto esta geração e seus signos. A despotencialização desta experiência social da juventude negra está inscrita dentro de uma lógica de aniquilação desta juventude, que se dá tanto de maneira material com fuzis e ações policiais, quanto de maneira simbólica, com controle de narrativas e apagamentos sistemáticos.
Batekoo. Imagem: Estadão
Nada exatamente novo, nada que não saibamos. Basta fazer um esforço na análise que está posta, e que aparece em vários momentos da história, com contornos diferentes, mas com a mesma intenção. O potencial político que existe na Batekoo, em bailes charme, nas festas e nas estéticas da juventude negra brasileira contemporânea não precisa ser designado como algo que não é. A própria enunciação do que jovens negros e negras estão fazendo nessas produções culturais é constitutiva desse tempo e tem suas próprias características, que devem ser respeitadas e reconhecidas, não esvaziadas de conteúdo como se tem feito.
O “lacre” não significa o não diálogo, o lacre significa apenas que a juventude negra irá, dentro das suas possibilidades, controlar a própria narrativa e não mais permitir ser interpelada como sujeito minoritário. O lacre, ainda que apenas na linguagem, retira o branco do centro. Não é uma linguagem por ele dominada, não é um signo por ele compreendido. Logo, é não aceitável e desvalorizado.
É possível conviver e aprender com isso ou a branquitude seguirá tentando ditar as regras sobre quem são os negros e o que eles podem ser? Há uma disposição em refletir para fora da estrutura de dominação racial ou os privilégios nela encerrados impossibilitam compreender outras formas de vivência e definição?
Que a branquitude seja capaz de frear a constante decomposição dos corpos e das formas de viver dos negros, é convidada ao lacrar também, a partir de um exercício de alteridade e reconhecimento das multiplicidades de vivências e experiências que não são as suas. A hegemonia branca roubou nosso direito ao próprio corpo, a própria narrativa, a própria definição. Vamos, a duras penas, tentando reconstituir nossas próprias narrativas nesse complexo contraditório de buscar nossas própria definição, nossa própria trajetória, um lugar para ser o que somos antes dos outros dizerem quem somos. Já nos suprimiram isso tudo no decorrer da história, não roubem da juventude negra o lacre também.
Fonte: Casa da mãe Joanna
Imagem destacada: Afropunk Festival 2015,por Driely Schwartz, via mequetrefismos.com