A reinvenção da ação social no Quebec

Por Peter Marin.

Foto: Reuters / Olivier Jean

Coalizão com 137 organizações une-se ao movimento estudantil para parar o país e exigir muito mais do que educação gratuita.

Logo no início, a greve dos estudantes do Quebec adotou o slogan “Isto é uma greve de estudantes e uma luta popular” (em francês, “la grève est étudiante, la lutte est populaire”). E durante o desenvolvimento dessa paralisação, sem precedentes na história do país, o slogan tornou-se de fato realidade, com pessoas de todos os setores da sociedade se juntando aos estudantes em oposição ao governo neoliberal de Jean Charest e ao seu partido Liberal.

No momento que este texto é escrito, comitês de bairro estão sendo formados em Montreal e protestos diários, incluindo os agora famosos protestos casseroles (com potes e panelas), continuam acontecendo por todo o Quebec, repercutindo em pequenas cidades e regiões não conhecidas por ações de militância. A legitimidade do governo e a sua força policial estão sendo questionadas por dezenas de milhares que desafiam a “lei especial 78”, utilizada para criminalizar manifestações espontâneas, entre outras medidas. (Na foto, 300 mil nas ruas de Montreal)

A greve estudantil tem de fato se tornado uma luta popular. Embora ninguém pudesse ter imaginado que o movimento poderia se espalhar por toda a sociedade, essa relação já podia ser prevista nas lutas recentes. E essa previsão é melhor exemplificada pela Coalizão contra as Taxas de Utilização e Privatização do Serviço Público (em francês, Coalition Opposée a la Tarification et Privatisation des Services Publics).

Criada na primavera de 2010 em resposta ao orçamento de austeridade do governo Charest, a Coalizão possui 137 membros, incluindo organizações comunitárias (antipobreza e em prol da saúde e habitação), o movimento estudantil, grupos feministas e vários sindicatos locais e distritais de conselhos de trabalhadores.

Os grupos comunitários são uma das duas forças motrizes que impulsionam a Coalizão. Esses grupos, cujos integrantes são na maioria brutalmente afetados pela austeridade, possuem um histórico de militância que não é encontrado em qualquer outro lugar do Canadá.

Os estudantes, organizados pela Associação por uma Solidariedade Sindical Estudantil ou ASSÉ (Association pour une solidarité syndicale étudiante) – federação estudantil que lidera o movimento de greve -, têm sido a segunda principal força motriz da Coalizão.

Como a maioria das federações sindicais do Quebec optou por não fazer parte da Coalizão – em razão de sua incapacidade para dirigir o processo efetivamente – e os membros de sindicatos locais em grande parte estão cumprindo um papel secundário na mobilização, sobrou para a ASSÉ e ao movimento estudantil mobilizar um grande número de pessoas por trás das ações da Coalizão. De acordo com Nicolas Phebus, que trabalha para a Front d’action populaire en réaménagement urbain (FRAPRU), a ASSÉ “tem feito o trabalho pesado”, levando milhares de estudantes às ruas e somando força para as ações da Coalizão, o que os grupos comunitários sozinhos não seriam capazes de fazer.

Depois que a Coalizão percebeu que o movimento sindical não realizava um trabalho sério para organizar uma greve social aos moldes dos Dias de Ação de Ontário – “tornou-se claro que este era um sonho”, afirma Phebus – a Coalizão optou por uma estratégia de escalada das ações diretas, incluindo numerosas ocupações agressivas de escritórios do Parlamento. A mão de cor vermelha que emergiu como o símbolo da Coalizão surgiu depois que membros começaram a mergulhar as suas mãos em tinta vermelha e deixar suas marcas nas paredes dos escritórios.

A Coalizão também bloqueou escritórios do governo, como a sede do Hydro Quebec, e mais recentemente fecharam a Bolsa de Valores de Montreal (enquanto acontecia a greve dos estudantes).

O agora infame protesto de Victoriaville fora da Convenção do Partido Liberal, quando policiais quase mataram manifestantes com balas de borracha, também foi organizado pela Coalizão. Essa estratégia de escalada de distúrbios econômicos foi a última adotada pela ASSÉ, e tem sido efetivamente empregada durante a atual greve.

De acordo com Phebus, os membros da Coalizão – especialmente os grupos comunitários e feministas e alguns dirigentes sindicais liberados do setor público – alcançaram uma real radicalização ao longo desses dois últimos anos e no curso dessas ações, e isso se manteve durante a greve dos estudantes. “Nós estamos vendo no Quebec uma reinvenção da ação social”, afirma Phebus. “A ação direta passou de um slogan para a prática de uma massa que deseja a ruptura econômica. Ela está na agenda de uma forma real e existe um sentimento que isso pode ser feito. Nós mudamos de ter instituições e organizações sociais para ter agora um movimento social verdadeiro”.

Essa recém-descoberta militância pode ser vista nas reivindicações levantadas pela Coalizão, que saiu da luta por demandas defensivas – contra os cortes – para a discussão de ideias ousadas, como a educação gratuita, novas habitações sociais, e a substituição do bem estar social por uma renda garantida. “O que antes eram vistas como exigências radicais agora aparecem como uma questão de escolha política”, acrescenta Phebus.

Por não ser corporativista, ou seja, não focar suas ações apenas nos interesses de seus próprios membros, a ASSÉ e, por extensão, o movimento estudantil como um todo, tem recebido a solidariedade de outros setores sociais. E o fato de o governo de Quebec “não estar sendo capaz de isolar a ASSÉ é, em boa parte, por causa de seu trabalho [na Colizão]”.

Segundo Phebus, é provável que mesmo após a greve estudantil, a revolta social provocada pelos estudantes vá continuar – com a Coalizão na linha de frente. “O próximo ataque do governo virá na forma de aumento das taxas de água e terá como alvo direto as comunidades de base da Coalizão”.

Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/9793

Foto capa: Rogerio Barbosa / AFP / Getty Images

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