Referência teórica e histórica da luta pela saúde pública, professora da UERJ pondera os avanços entre o movimento dos anos 80 que deu origem ao SUS e a nova articulação contra os modelos de gestão privatizantes
Por Camila Rodrigues da Silva, para o Desacato.info.
Militante histórica pela saúde pública, estatal e de qualidade, a professora e assistente social Maria Inês Bravo é crítica em relação aos velhos modelos e mostra otimismo em relação aos novos modelos de organização popular, que atuam por fora do Estado.
Bravo leciona na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é coordenadora de projetos de Política Públicas de Saúde, participa da coordenação do Fórum do Rio de Janeiro e integra o colegiado da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde que, segundo ela, conta com 20 fóruns estaduais, 14 fóruns municipais, além de sindicatos, entidades estudantis e outros movimentos sociais. “A autonomia da Frente é fundamental. Isso não quer dizer que não tenha partidos na Frente, mas devemos ter autonomia deles”.
Nesta entrevista, ela faz uma reflexão sobre o crescimento das Organizações Sociais da Saúde e contextualiza a recente articulação da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde a partir da Reforma Sanitária, movimento pela saúde pública construído nas décadas de 1970 e 1980.
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DESACATO – O que muda entre o movimento da Reforma Sanitária e a articulação da Frente Nacional em termos de estratégia e de sujeitos atuantes?
MARIA INÊS BRAVO – As bandeiras centrais de luta são as mesmas. Ou seja, o SUS não pode ser viabilizado sem estar articulado com a Reforma Sanitária. A Reforma Sanitária é muito mais ampla que o SUS, porque o conceito de saúde é um conceito amplo e envolve outras reformas sociais e envolve a interdisciplinaridade. Ou seja, a saúde é o resultado de melhores condições de vida e de trabalho, resultado do conflito capital trabalho. O debate da determinação social do processo saúde-doença foi muito importante no movimento sanitário dos anos 1980.
Berlinguer [Giovanni Berlinguer foi um dos inspiradores da reforma sanitária italiana e que influenciou a reforma sanitária brasileira] dizia que um dos fatores patogênicos maiores para a saúde é o capital.
O que muda? A gente considera o espaço do fórum inovador e fundamental. Porque antes havia a articulação entre diversas entidades, cada uma no seu espaço. Hoje, as entidades estão dentro do espaço dos fóruns e da frente. Acho que, com isso, a luta fica mais orgânica.
É um processo em construção. Ainda temos muito pouco tempo para realmente avaliar esse tipo de organização.
E sobre os sujeitos… Há mais acadêmicos e estudantes, mais articulados que há 30 anos. Não estão à frente entidades como Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva], Cebes [Centro Brasileiro de Estudos de Saúde], mas há outras entidades importantes, como a Andes, a Fasulbra (Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnicos-Administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil), além das executivas de estudantes de medicina, de farmácia, de serviço social, de enfermagem.
DESACATO – Os estudantes não participaram da Reforma?
MARIA INÊS BRAVO – O que acontece é que nos anos 1990, com o refluxo das entidades de esquerda, o movimento estudantil e as executivas de estudantes da saúde ficaram meio órfãos. Agora , eles têm encontrado um espaço para discutir sua formação com outros sujeitos, outras entidades, dentro de uma proposta crítica para a saúde.
DESACATO – Que erros da Reforma não poderiam ser repetidos pela Frente Nacional?
MARIA INÊS BRAVO – Acho que a gente não pode se atrelar a partidos nem a governos. A autonomia da Frente é fundamental. Isso não quer dizer que não tenha partidos na Frente, mas devemos ter autonomia deles.
Um segundo erro que a gente não pode cometer é se afastar dos movimentos sociais, como ocorreu em um determinado momento da Reforma.
Foi quando alguns atores acharam que através da ocupação apenas do Estado, conseguiriam fazer as reformas necessárias, esquecendo que se trata de um Estado capitalista…
A Reforma tem que ser por dentro do Estado e por fora do Estado. Não há condição de fazê-la só por dentro.
Uma terceira questão –que eu acho que é um desafio, é articular uma frente de esquerda suprapartidária – o que é muito difícil, mas que a gente está conseguindo…
Se há divergência entre as forças que fazem parte da Frente, a gente aprofunda a discussão e evita fazer votações, para que realmente as propostas da Frente sejam assumidas por todas as forças.
DESACATO – O que é preciso avançar em termos de controle social?
MARIA INÊS BRAVO – O controle social está muito combalido. Os conselhos são frágeis, e isso é reflexo da conjuntura. Defendi o controle social nos anos 1980, quando a conjuntura era diferente. Nos anos 1990, quando esses conselhos foram criados, eles não tiveram participação dos movimentos. Dessa forma, há conselhos muito cooptados. Por isso, a gente defende o controle democrático do controle social, ou seja, continuamos na luta pela democratização desses conselhos.
A Frente tem feito a defesa de participar dos Conselhos sem se inserir enquanto conselheira -e é isso que a gente tem chamado de controle democrático do controle social. De pressionar nas conferências, de tensionar, de democratizar as informações.
Não podemos perder esses espaços mas não podemos ignorar o que está acontecendo com eles.
DESACATO – Sobre a ação direta de inconstitucionalidade (ADI) das Organizações Sociais, ela é contemporânea à lei que autorizou a implantação das organizações sociais, ou seja, ambas são de 1998. Mas o processo de privatização avançou a despeito dessa ação. Quais foram as forças que enfraqueceram essa ADI e permitiram o avanço das OSs no nível em que elas já estão no Brasil?
MARIA INÊS BRAVO – A ação de inconstitucionalidade contra as OS foi aberta pelo PT e pelo PDT a época em que eram oposição ao governo. No momento em que o PT assume o governo, ele abre mão dessa ação de inconstitucionalidade.
Por isso reclamamos essa ação de inconstitucionalidade. Porque os partidos já não tinham mais interesse quando assumiram o governo, principalmente o PT, PDT, a base do governo, mas é uma base que não tem tanta força. Então, os partidos abandonaram…
DESACATO – Por que abandonaram?
MARIA INÊS BRAVO – Porque o PT começou também a defender as OSs. Não claramente, mas nos governos de composição você tem OSs, fundações… O governo primeiramente fez a proposta de fundação, mas não abandonando as OSs. Então, você tem hoje Organizações Sociais, você tem Oscips, você tem fundações, você tem Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), que realmente está extrapolando, não só os hospitais universitários. No Rio de Janeiro, nós estamos com problemas seríssimos: foi aprovada na câmara a EBSERH municipal e está sendo discutido a EBSERH nos hospitais federais do Rio de Janeiro e institutos. Então, o processo desses novos modelos de gestão que, para gente, são processos privatizantes, está crescendo.
DESACATO – Para finalizar: na sua avaliação, como os grandes capita-listas internacionais têm se apropriado da saúde como fonte de lucro no Brasil?
MARIA INÊS BRAVO – Eles têm se apropriado de diversas formas. Nós nunca conseguimos viabilizar nossa proposta inicial de nacionalizar a indústria farmacêutica, a indústria de equipamento médico, e hoje ambas estão nas mãos do grande capital. Há ainda os grande planos de saúde.
Sobre as OSs e esses novos modelos de gestão nós ainda não temos informações, ainda estamos encaminhando uma pesquisa que articula diversos Estados Sabemos que há uma articulação com o capital nacional e, como o capital nacional não existe isoladamente, é provável que haja ligações com o capital internacional.
Foto: Reprodução.