Por Douglas F. Kovaleski, para Desacato. info.
No texto dessa semana, continuamos a discutir a Reforma Sanitária Brasileira (RSB), pois recuperar a história é fundamental para projetar as lutas do futuro e de hoje. Apesar de vivermos em um constante ataque aos direitos sociais e políticos da população brasileira, é preciso ter a clareza de que, a depender da mobilização da classe trabalhadora, todas essas derrotas podem ser revertidas em favor de melhores condições de vida para a classe trabalhadora.
Para alcançarmos algum aprendizado histórico a partir da RSB é preciso voltar ao contexto em que se vivia no Brasil nas origens desse movimento. Em meados de 1970, o país já bastante violentado e humilhado pela ditadura começa a produzir novos sujeitos sociais capazes contrários à ditadura: estudantes, professores, setores populares e entidades profissionais de saúde passaram a defender mudanças na saúde. Destaca-se dentre esse conjunto de sujeitos o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES), sobre o qual dedicarei texto específico dada a importância que ele reúne para a RSB. A conquista da democracia em 1985 possibilitou a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) em 1986. Nessa conferência, reafirmou-se algo até então inédito no Brasil: a saúde como um direito de todos e dever do Estado, recomendando a construção de um sistema único, descentralizado com atribuições claras para municípios, estados e governo federal; e democrático por meio de intensa participação da sociedade na formulação das políticas, fiscalização, acompanhamento e avaliação das mesmas.
A partir da 8ª CNS, considerada um grande marco na construção do SUS, a sociedade brasileira passou a dispor de um conjunto de proposições políticas aprovadas em caráter amplo e democrático que apontavam para democratização da vida social e para uma reforma democrática do Estado brasileiro. Esse processo de democratização cunhou o nome Reforma Sanitária, pois inspira-se na reforma sanitária italiana, mobilização semelhante ao processo brasileiro e que teve pensadores de peso influenciando aqui no Brasil. A 8ª CNS foi marcada por forte participação popular, reunindo mais de 5.000 delegados em Brasília, sendo antecedida por inúmeras conferências municipais e estaduais que envolveram direta ou indiretamente parcela significativa da população brasileira.
Numa fala de Sérgio Arouca, grande expoente do Movimento de Reforma Sanitária Brasileira, durante a 8ª CNS, fica evidente a necessidade de: “…discutir a Reforma Sanitária nos seus aspectos ideológicos, conceituais, políticos e institucionais, é tarefa fundamental de todos aqueles que, em diferentes países como Brasil ,Portugal, Itália, Bolívia, Espanha, estão comprometidos com a democratização das estruturas políticas e a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. Esta tarefa mais que fundamental, torna-se imprescindível para nós que buscamos construir as bases do socialismo democrático que almejamos para o Brasil.”
Daí decorre um primeiro e importante desafio para a RSB: discutir teoricamente este movimento para direcionar mais adequadamente a luta. Tarefa que recebeu esforços qualificados de autores brasileiros e de profundidade reconhecida internacionalmente. Movimento esse que dá origem ao campo da Saúde Coletiva, que é originário do Brasil e atualmente influencia muitos outros países com seus conceitos de integralidade, conceito ampliado de saúde, determinação social do processo saúde-doença, equidade em saúde, determinantes sociais, clínica ampliada, entre outros. Apesar de o campo da Saúde Coletiva em alguns lugares ainda ser confundido com a Saúde Pública, eles tem origens e objetivos diversos, pois o segundo associa-se com aspectos apenas estatais, enquanto o segundo provem da base social, dos movimentos reivindicatórios e alcança o Estado em uma concepção de Estado ampliado, ou seja, que serve aos interesses das classes subalternas e assenta-se essencialmente no referencial proposto por Antônio Gramsci.
É pena que as contribuições mais marcantes da RSB no Brasil e fora dele, ainda remontem apenas à saúde, pois ela pretende uma democratização da vida e da forma da vida em sociedade. No entanto, com o aumento das contradições produzidas pelo capital e a gradual piora das condições de vida da classe trabalhadora, exacerbadas por outra vigorosa crise do capital que se aproxima, coloca a RSB e a Saúde Coletiva como alternativas e acúmulos úteis para a classe trabalhadora lutar, sonhar e construir um mundo livre da exploração do capital.
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Douglas Francisco Kovaleski é professor da Universidade Federal de Santa Catarina na área de Saúde Coletiva e militante dos movimentos sociais.
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