Por The Tricontinental.
Introdução
O 7 de setembro é o dia da independência nacional no Brasil. No entanto, este dia nunca foi uma data de manifestações populares ou civis. Ao contrário, o feriado sempre foi marcado por desfiles militares. Porém, a agenda do presidente Jair Bolsonaro (Partido Liberal) tem sido marcada não apenas por seu discurso radical, mas também por sua maior participação em cerimônias militares – como ficou claro em 7 de setembro de 2021, quando convocou seus apoiadores a saírem às ruas e protestar contra o Congresso, o Poder Judiciário, a mídia e o Congresso Nacional, após semanas de tensão e especulação sobre um possível golpe. Orgulhoso de ter saído das fileiras militares, o ex-capitão sabe que as Forças Armadas foram o setor decisivo para sua conquista e permanência no poder.
Três anos antes desse episódio, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) liderava as pesquisas de opinião para a disputa eleitoral, mas encontrava-se condenado e impedido de disputar as eleições. Um habeas corpus seria julgado no Supremo Tribunal Federal (STF). Na véspera do julgamento, minutos antes do principal noticiário televisivo do país, o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, publicou uma nota no Twitter, escrita em comum acordo com o Alto-Comando do Exército, formado por 15 generais de quatro estrelas, onde ameaçava implicitamente o Tribunal. O habeas corpus foi negado por uma votação apertada (6 a 5) e Lula foi preso dias depois.
Durante a campanha eleitoral, dois ministros do mesmo STF foram aconselhados pelo então presidente da mais alta corte brasileira, o ministro Dias Toffoli, a não tomarem medidas mais duras contra o disparo ilegal e massivo de mensagens ou contra as fake news da campanha de Jair Bolsonaro para não desagradar aos militares. Na época, o acovardado presidente da Suprema Corte era assessorado pelo futuro ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva, por indicação do mesmo general Villas Bôas.
Na cerimônia de diplomação como presidente eleito, Jair Bolsonaro dirigiu-se diretamente à Villas Bôas, presente no ato, e o agradeceu como “responsável” por sua eleição por ter “influenciado os destinos da nação”. Portanto, muito antes da eleição de Bolsonaro, as Forças Armadas brasileiras já atuavam como um verdadeiro Partido Militar.
O Brasil possui hoje a segunda maior força militar das Américas, perdendo apenas para os Estados Unidos da América. Tem o maior efetivo da América Latina e de todo o Hemisfério Sul: 334.500 militares da ativa, em média 18 militares a cada 10 mil brasileiros. Entretanto, não é uma potência militar, não possuindo capacidades nucleares ou para o lançamento de mísseis balísticos.
O protagonismo assumido pelas FFAA no último período é determinante para compreender o retrocesso nos direitos sociais conquistados nos anos 2000 e a onda neofascista atual. Segmentos militares brasileiros conspiraram sorrateiramente no golpe contra a presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016, e são os pilares de organização política da coalizão militar-financeira-neopentescostal que levou Bolsonaro ao poder.
Este protagonismo encerra quase três décadas em que os militares estiveram ausentes dos holofotes políticos nacionais, desde o fim da ditadura militar (1964-1985). Um pequeno lapso de tempo para uma organização que esteve permanentemente presente na vida política brasileira.
A leitura de mundo do ambiente militar, agora expressa pelo governo federal, é formada por uma coesão ideológica conservadora e liberal que se caracteriza por:
- Corporativismo: o sentimento de pertença à corporação militar supera qualquer outro, até mesmo o sentimento nacional. O militar se percebe como superior aos civis e a corporação se considera a própria essência da nação, tendo como “destino manifesto” a “missão de salvá-la”;
- Visão de um Estado fiscal e ajustador de demandas dos interesses privados: o Estado forte é aceito apenas na área de Defesa e de segurança pública;
- Valores: orientados por uma crença no humanismo-cristão conservador, carregados de ideias do individualismo, a ética do sucesso e a noção de que os grandes se expandem. Consideram pautas identitárias (combate ao racismo, machismo, homofobia…) como divisionismo;
- Liberalismo-conservador: compreende que a Democracia é papel das elites, cabendo ao povo somente o voto, não necessariamente universal;
- Anticomunismo: o comunismo é visto como o inimigo histórico dos militares no Brasil e antagônico à ordem ocidental.
A partir desses marcos ideológicos, é possível compreender melhor o comportamento das Forças Armadas. Da privatização de empresas públicas à subserviência aos EUA, da gestão política da pandemia à ocupação maciça de cargos públicos, dos privilégios expandidos das altas patentes ao aumento de sua distância material em relação às baixas patentes, da recuperação de seu papel político à reorganização de seus aparelhos de hegemonia no Estado, do alinhamento ao obscurantismo ao mito do “marxismo cultural”, os militares e suas organizações – burocráticas, políticas e sociais – vieram à superfície da política para disputar abertamente os rumos da sociedade brasileira.
Nesse dossiê temos o intuito de compartilhar um pouco do acúmulo que o Observatório da Defesa e Soberania do escritório Brasil do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social tem construído para entender quem são as Forças Armadas no Brasil, sua relação com o imperialismo estadunidense e como funciona a militarização de setores nacionais. Antes de entrar na atualidade, cabe um breve resgate histórico de seu funcionamento e desenvolvimento.
Breve panorama histórico
Em âmbito externo, o Brasil é historicamente uma nação pacífica que orienta suas relações internacionais pela diplomacia e pelo pragmatismo político comercial sem envolvimento em conflitos de natureza convencional com outros países – salvo como força auxiliar inglesa ou estadunidense ao final da Primeira e Segunda Guerra Mundial ao longo do século XX.
Ao contrário dos demais países sul-americanos, a independência brasileira não foi conquistada por meio de conflitos militares, mas da negociação com Portugal. A maior parte de seu território foi consolidado por acordos diplomáticos, com exceção da Guerra Cisplatina (1825-1828), em que perdeu o território do que hoje é o Uruguai, e a Guerra do Paraguai (1864-1870). É neste episódio – responsável por vitimar o maior número de brasileiros em guerras e praticamente dizimar toda população masculina adulta paraguaia – que o Brasil buscou, pela primeira vez, profissionalizar sua organização militar e estruturar materialmente suas Forças Armadas (GONÇALVES, 2009). Porém, no âmbito interno, a história militar brasileira é de constante participação política e diretamente voltada para a repressão de conflitos entre classes sociais e organizações políticas (SODRÉ, 2010). Durante o período colonial (1500-1815), mais de 30 conflitos armados ocorreram opondo povos originários e africanos escravizados, colonizadores portugueses, “luso-brasileiros” e de outras nacionalidades – especialmente Holanda e França. No período imperial (1822-1889), as forças armadas nacionais atuaram para reprimir esses movimentos sociais e manter o regime monárquico, oligárquico e escravocrata, combatendo dezenas de revoltas populares, com destaque para as insurreições da Cabanada (1832-1835), de Carrancas (1833), da Cabanagem (1835-1840), dos Malês (1835), da Sabinada (1837-1838) e da Balaiada (1838-1841). Ao mesmo tempo, enquanto militares de baixa patente eram submetidos ao disciplinamento, com uso da tortura como punição, os militares de alta patente foram integrados à elite monárquica, ocupando cargos no Estado e no parlamento.
A própria República foi instituída por um golpe militar liderado por generais do Exército aliados às oligarquias regionais, cuja aliança foi garantida pela repressão à revoltas liberais e insurreições populares de Canudos (1896-1897) e do Contestado (1912-1916).
Depois da Primeira Guerra Mundial, um movimento heterogêneo de militares de baixa patente – conhecido como “tenentismo” – se aliava com oligarcas e liberais opositores, assim como a incipiente organização de trabalhadores, para derrubar o regime oligárquico e promover a modernização nacional. A chamada “Revolução de 1930” liderada por Getúlio Vargas e militares egressos do tenentismo promoveu a centralização do poder estatal, amplas reformas sociais – com destaque para os direitos trabalhistas e a organização sindical – e a progressiva repressão política à oposição ao regime. Com o inicial impulso de industrialização e aberto o regime, o país passou por um período de governos eleitos por uma limitada participação popular.
Vargas foi destituído após a Segunda Guerra Mundial, por pressão popular e com participação das Forças Armadas, sendo sucedido pela eleição de um general, Eurico Gaspar Dutra. O retorno de Getúlio Vargas à presidência, em 1950, ocorreu em um cenário de Guerra Fria e de disputa entre dois projetos. O projeto de Desenvolvimentismo Nacional tutelado por Vargas conflitava com a subordinação política militar e econômica incondicional aos EUA, defendida pelos oficiais militares e pela oligarquia empresarial. A maior ou menor participação popular também estavam implícitas nestas disputas.
Este conflito resultou, além do suicídio de Vargas em 1954, em constantes tentativas de golpes contra presidentes eleitos em 1955, 1961 e, finalmente, o golpe empresarial-militar de 1964, apoiado política e materialmente pelos EUA. A ditadura brasileira seria modelo e suporte para as demais ditaduras que se instalariam a partir dali nas Américas do Sul e Central, atuando diretamente para a instalação de ditadores no Chile, na Argentina, no Uruguai e na Guatemala.
Liderado por generais do Exército, foram impostas uma série de reformas no Estado e na sociedade, visando neutralizar as organizações sindicais e dizimar as organizações revolucionárias, sobretudo as guerrilhas de resistências à ditadura (1965-1974). Além disso, o golpe de 1964 aprofundou a dependência brasileira aos EUA, sobretudo ideológica e econômica, com um gigantesco aumento da dívida externa, severo arrocho salarial, aumento da pobreza e hiperinflação (RAPOPORT, 2000). Vinte e um anos depois, a mobilização popular por eleições diretas e a crise econômica levaram ao final da Ditadura. Porém, a transição foi tutelada pelos militares que não apenas asseguraram a posse de um aliado civil na presidência, José Sarney (1985-1989), como preservaram sua autonomia institucional – notadamente nas áreas orçamentária, judiciária, educativa e de inteligência militares; privilégios burocráticos; a impunidade de suas lideranças face ao terrorismo de Estado e a imunidade aos mecanismos democráticos na nova Constituição de 1988.
Mais do que isso, sustentaram a manutenção de uma função permanente de tutela das instituições políticas com a possibilidade de atuação doméstica para a garantia da lei e da ordem, mantendo uma força auxiliar do Exército como responsável pelo policiamento ostensivo de cada estado federado – as chamadas Policias Militares. Em momentos de crise, como no 7 de setembro de 2021, o comportamento de seus membros pode ser determinante em ameaças ou tentativas de golpes.
Dessa forma, observamos que as Forças Armadas brasileiras sempre dirigiram sua atuação para o ambiente domiciliar, considerando organizações e forças populares como inimigos internos em potencial a serem “neutralizados” de forma permanente conforme sua capacidade de ação política (LENTZ, 2022).
Golpe de 2016 e o retorno a cena política
As relações entre civis e militares experimentaram um período de relativa estabilidade durante o governo Lula (2003-2011). As FFAA mantiveram-se mais restritas a participar politicamente apenas nas questões que, no entendimento delas, traziam dilemas para a segurança nacional, como segurança pública, demarcação de terras indígenas e nas políticas da área de Defesa. Nem Lula adotou medidas que confrontassem a corporação, nem a subordinação das Forças Armadas ao poder civil foi testada, como um pacto de coexistência pacífica.
As relações se deterioram paulatinamente no governo de Dilma Rousseff (2011-2016). Ter uma comandante-em-chefe mulher e ex-guerrilheira, que lutou contra a Ditadura de 1964, foi entendido como uma afronta aos valores militares. Para além do machismo e do anticomunismo, os militares rejeitaram a criação da Comissão Nacional da Verdade, garantindo coesão discursiva em torno de um inimigo comum (a esquerda), que estaria em busca de cobrar os crimes cometidos durante a ditadura. Este ponto era decisivo para a identidade política-cultural das Forças Armadas, pois representava a prestação de contas de um passado há décadas glorificado. Além disso, em várias democracias, este mecanismo antecede reformas organizacionais na instituição militar.
Também contribuíram para reorganizar politicamente e coesionar as FFAA a sua participação na MINUSTAH (Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti) entre 2004-2017; a expansão da presença militar na Amazônia; as operações de Garantia da Lei e da Ordem; e a atuação nos megaeventos esportivos no Brasil, como a Copa do Mundo e Olimpíadas.
O golpe contra Dilma foi uma articulação empresarial, parlamentar e judiciária. Publicamente os militares se mantiveram discretos, mas nos bastidores expressaram sua concordância aos conspiradores. O governo que sucedeu o de Dilma, Michel Temer (2016-2018), foi tutelado pelas Forças Armadas, que mantiveram as instituições continuamente sob pressão, como nos episódios citados sobre o poder Judiciário.
Assim, a eleição de Bolsonaro em 2018 foi produto da confluência das crises política, social e econômica, que abriu uma janela de oportunidades para a extrema-direita. Segmentos militares organizaram a candidatura e estiveram presentes desde a transição, apresentando-se como uma ala técnica – a “ala militar” – capaz de moderar os arroubos do presidente.
Entretanto, do ponto de vista ideológico, não existem tensões de conteúdo entre os segmentos militares e neopentecostais que dão sustentação ao governo, pois ambos se consideram representantes da “família tradicional brasileira”, na definição emprestada por eles mesmos. O mesmo ocorre com os segmentos neoliberais no governo. Diferente do que pensa parte da esquerda brasileira, que atribuía aos militares um suposto nacionalismo econômico, não tem ocorrido qualquer oposição militar às privatizações levadas a cabo pelo governo. As tensões com grupos fisiológicos do centro político em torno da divisão do espólio do Estado brasileiro têm sido contornadas pragmaticamente, sem transtornos morais.
O Brasil não tem um governo de militares, pois estes não ocupam o Estado enquanto pessoas físicas, mas como parte de uma mesma corporação apartada do restante da sociedade. Como também, ao contrário da Ditadura de 1964, não são as Forças Armadas quem escolhe seus representantes conforme a hierarquia e disciplina. Ocorre um híbrido, um governo militarizado, em que um Partido Militar, onde se forjou ao longo de décadas Jair Bolsonaro, coordena o atual bloco no poder. O Partido Militar tem um projeto de poder de longo prazo, e deverá seguir na cena política brasileira.
O que é observado nesse avanço das forças militares na cena política é um processo de militarização do Estado e da sociedade brasileira. A militarização no Brasil ocorre em múltiplas dimensões (PENIDO, MATHIAS, 2021a). A primeira dimensão da militarização é a crescente ocupação de cargos no sistema político, sejam eles de forma eletiva ou por indicação. Esta presença cria uma correia na qual os interesses militares são transmitidos para todo o sistema político. O elemento factual mais recente é a nomeação do general do Exército, Azevedo e Silva – ex-ministro de Defesa do Bolsonaro ligado ao grupo de militares que atuaram no golpe de 2016 – para ser o diretor geral do Tribunal Federal, responsável pelo processo eleitoral em todo o território nacional. Além disso, as Forças Armadas foram incluídas como observadores internos da integridade da urna eletrônica – ferramenta eleitoral anteriormente apontada como fraudulenta.
Uma segunda dimensão da militarização do Estado é transpor doutrinas formuladas pelos militares – portanto, pensadas para a guerra – para outros ambientes por meio de políticas governamentais. É isso que historicamente ocorre na área de segurança pública, na qual a doutrina do inimigo interno orienta as polícias militares – responsáveis pelo policiamento ostensivo e preventivo – e se expande às instituições civis de segurança pública. Neste caso, aumenta-se a punibilidade dos pobres, a população carcerária, a vigilância eletrônica, as execuções sumárias, as prisões arbitrárias e outras graves violações aos direitos humanos. São extensões da guerra por outros meios, no interior da cidade.
Uma terceira maneira é transferir valores militares para a administração. Nisso consiste a proposta de militarização das escolas, com valores de ordem, valorização das matérias exatas em detrimento das humanas, conservadorismo comportamental e exclusão dos considerados “menos capacitados”. Uma quarta dimensão é a de militarizar todo e qualquer problema, incluindo aqueles que dizem respeito a outras esferas do Estado, como o enfrentamento à pandemia da Covid-19, que não tem componentes bélicos, e sim de saúde pública.
Uma quinta dimensão é a militarização do orçamento do Estado. Além da manutenção de algumas indústrias de defesa e das condições profissionais das Forças Armadas – que receberam aumento salarial durante a pandemia, enquanto os outros servidores públicos tiveram seus salários congelados (PENIDO, MATHIAS, 2021b) – os militares controlam 16 das 46 estatais, incluindo a Petrobras e a Eletrobras que, contabilizando as subsidiárias (49 e 69, respectivamente), deixam sob comando militar 61% das empresas direta ou indiretamente ligadas à União, uma ocupação dez vezes maior do que no governo anterior de Michel Temer (BRAGON, MATTOSO, 2020; MONTEIRO, FERNANDES, 2020; CAVALCANTI, 2020; SEABRA, GARCIA, 2021).
Cabe esclarecer que a militarização não ocorre apenas no Executivo, mas também no Legislativo e no Judiciário. Apenas entre 2010 a 2020, mais de 25 mil militares e policiais concorreram a cargos eletivos, sendo 87% por partidos de direita e 1.860 foram eleitos (FBSP, 2021). Um de seus efeitos é a tramitação de um Projeto de Lei Contraterrorista que criminaliza a luta popular (PENIDO, SAINT-PIERRE, 2021).
E a militarização não está apenas na estrutura do Estado. Na combinação de paz externa e guerra interna, o Brasil é exemplo ímpar: externamente pacífico, o país concentra 17 das 50 cidades mais violentas do mundo (34%) (SJP, 2019). Isso sem falar na já histórica violência no campo e contra as populações tradicionais. Soma-se a isso a violência como traço determinante da formação social brasileira, marcada pela escravidão. Em suma, o Brasil ocupa hoje o segundo lugar na lista de lugares mais perigosos do mundo para defensores de direitos humanos (TD, JG, 2021).
O aspecto mais visível da militarização é a presença física intensiva das forças de segurança (Forças Armadas, polícias civis e militares, guardas municipais) e mesmo uma enorme rede de segurança privada nas ruas. Além destas, segundo dados oficiais, a política governamental de incentivo ao armamento da população dobrou o número de armas registradas em circulação – de 637 mil em 2017, para 1,2 milhão em 2021, segundo registros da Polícia Federal, órgão regulador. Já nos Clubes de Colecionadores, Atiradores desportivos e Colecionadores (CAC’s), regulados pelo Exército brasileiro, o número de armas registradas saltou de 225mil em 2019, para 496 mil em 2020. Em Brasília, capital do país, esse aumento foi de mais de 500% – de 25 mil em 2017, para 227 mil em 2020 (FBSP, 2021).
Neste cenário armado, soma-se fortes vínculos entre o presidente Jair Bolsonaro e sua família com as chamadas milícias, grupos paramilitares associados à grupos de extermínio formados em sua maioria por agentes da segurança pública com atuação no mercado criminal que dominam territórios no estado do Rio de Janeiro, berço político da família Bolsonaro. Nesse sentido, é fundamental apontar que Bolsonaro tem em sua base segmentos armados e motivados para um golpe de Estado, embora sem condições suficientes para fazê-lo.
A dimensão mais profunda da militarização está guardada na promoção de valores, atitudes e marcos identitários militares na cultura e nos costumes da sociedade em geral, como a centralização de autoridade, a hierarquização, a xenofobia (disfarçada no cultivo de símbolos pátrios), a agressividade, a lealdade aos pares, a ideia de que os mais fortes sobrevivem etc.
O Imperialismo e seus vassalos
Existe uma divisão internacional do trabalho também na área de defesa. Nessa organização hierárquica do mundo, as Forças Armadas dos países centrais atuam no cenário geopolítico principal mundial, configurado atualmente pela disputa entre EUA e China. Às FFAA dos países periféricos caberia a atuação num cenário secundário, que é o ambiente doméstico dos Estados nacionais. Nesse cenário, sua função é controlar a ordem social, como o foi durante a Guerra Fria, reprimindo o inimigo interno, a sociedade contestatória; ou cumprindo funções policiais, como o combate ao narcotráfico em fronteiras (PENIDO, ARAÚJO, MATHIAS, 2021). No caso de países de semiperiferia alinhados, como é o caso do Brasil, as FFAA também cumpririam tarefas secundárias na área de segurança internacional, como as chamadas missões de paz.
A maior parte do mundo adota uma mesma estratégia de defesa, o que leva a um processo de uniformização das Forças Armadas e aprofundamento da dependência dos países do Sul Global. Mesmo perdendo todas as últimas guerras (Vietnã, Afeganistão, Iraque, Síria…), os EUA venderam uma “receita de sucesso”, qual seja: armamentos em maior quantidade e tecnologias cada vez mais avançadas vencem guerras. Entretanto, esse tipo de armamento exige investimentos massivos de capitais (WENDT, BARNETT, 1993), algo que não está disponível para os países do Sul Global, com toda natureza de carências mais urgentes para resolver no que diz respeito à qualidade de vida das suas populações (PENIDO, STÉDILE, 2021).
O problema é que quando um país não tem recursos para desenvolver esse tipo de equipamento, e é dependente estrategicamente, ele procura os produtores para comprar esses sistemas de armas. Só que junto com as armas, compra-se uma doutrina sobre como e contra quem usá-las. Assim, os inimigos e aliados destes países são definidos de maneira exógena, por aqueles que possuem o monopólio das armas de fato, o imperialismo estadunidense.
O paradoxal disto é que o armamento que deveria garantir a soberania e a autonomia da decisão política, pelo contrário, a compromete. Do mesmo modo, o militar, sujeito ativo da liberdade estratégica, pela dependência instrumental e doutrinária, é agente da subordinação estratégica (SAINT-PIERRE, 2021). As ameaças são construções psicológicas, formadas a partir do nosso modo de experimentar o mundo. Os países dependentes passam a observar ameaças construídas pelos países centrais como uma ameaça a si mesmos (SAINT-PIERRE, 2011). Por exemplo, as técnicas de tortura da ditadura de 1964 foram inspiradas na doutrina francesa de combate às guerras de libertação nacional, portanto, de luta pela descolonização na África. É sob a mesma lógica que um país formado por migrantes, como é o caso do Brasil, passa a observar as migrações provenientes de países de periferia (como o próprio Brasil) como possíveis novas ameaças.
Em suma, as Forças Armadas brasileiras, mas em geral as da América do Sul, são disputadas por dois tipos de atuação. De um lado, existe a doutrina impulsionada pela Organização dos Estados Americanos (OEA-EUA) que identifica “novas ameaças” em ambientes internos aos estados nacionais, como migrações, corrupção, crime organizado, terrorismo e o narcotráfico. Nesse caso, caberia às forças militares atuarem como forças policiais, combatendo o inimigo interno, nos moldes das doutrinas de segurança nacional comuns às ditaduras do Cone Sul dos anos 1960. No caso brasileiro, mesmo após a transição política em 1985, essa doutrina continuou existindo e sendo adaptada para os regimes de democracia limitada em razão da ausência de reformas e prestação de contas que segue produzindo efeitos estruturais no comportamento das FFAA no Brasil (LENTZ, 2021).
De outro lado, existe o conceito de cooperação dissuasória – adotado pelo Conselho de Defesa Sul Americano, órgão multilateral vinculado à União das Nações Sulamericanas (UNASUL), sem a participação dos Estados Unidos – que indica a necessidade de construir, junto aos demais países latino-americanos, uma política de cooperação regional que desestimule invasões de potências extra-continentais. O objeto a ser defendido regionalmente seriam especialmente os recursos naturais; no caso brasileiro, especialmente a Amazônia Verde e a Amazônia Azul (longa faixa litorânea, onde se localiza, por exemplo, a exploração petrolífera brasileira). Embora essa visão não ocorra na prática, ela é prevista nos documentos de defesa brasileiros.
Desde o golpe contra a presidenta Dilma, em 2016, a influência estratégica dos EUA sob as Forças Armadas brasileiras se transformou em subordinação estratégica. No lugar de aproveitar o estremecimento global provocado pela transição hegemônica em curso, o Brasil abraça a superpotência decadente, restringindo suas possibilidades de atuação global, atuando para atender aos interesses dos EUA no continente (SAINT-PIERRE, 2021).
Algumas medidas são tão relevantes que impactam toda a América Latina, e merecem ser aqui descritas. A primeira é a nomeação, em 2019, de um general brasileiro como subcomandante de interoperabilidade do Comando Sul dos EUA, unidade militar responsável por defender os interesses estratégicos estadunidenses na América do Sul, América Central e Caribe. O Comando Sul é peça central da estratégia estadunidense para restringir a influência chinesa no Atlântico Sul. No caso de uma agressão militar dos EUA contra Cuba ou Venezuela, por exemplo, essa seria a provável unidade militar empregada. Atualmente, tem-se um oficial brasileiro em situação de dupla subordinação hierárquica: aos Exércitos brasileiro e estadunidense.
A segunda é o acordo relativo à Base de Alcântara, firmado entre Brasil e EUA. A Base de Alcântara é uma base militar brasileira estrategicamente posicionada para realizar lançamentos longos, potencialmente para o espaço, próxima da foz do rio Amazonas. O Brasil ainda não possui a capacidade de lançar autonomamente satélites, o que limita a soberania do país, por exemplo, no controle das comunicações e informações de brasileiros. O acordo firmado não prevê nenhuma transferência de tecnologia para o Brasil (como de praxe os EUA impõem) e, pelo contrário, estabelece limites sobre com quais países o Brasil pode negociar para usar a Base. A China, por não ser signatária do MCTR (acordo internacional que trata do regime de controle de mísseis), não poderia fechar nenhum acordo com o Brasil (signatário do tratado) nessa matéria. Países que tenham recebido sanções por parte de um único membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas (como o Irã, por exemplo), também estariam vetados.
O acordo prevê ainda a existência de áreas restritas para a circulação exclusiva de pessoas autorizadas pelos EUA e com entrada controlada por eles (em pleno território nacional), bem como controle e fiscalização do que entrará em território nacional (SAMORA, 2019). Isso tudo sem mencionar as famílias quilombolas que habitavam a região e foram arbitrariamente removidas. Em alguma medida, trata-se de um enclave estadunidense no território brasileiro.
Desdobramentos e saídas no Brasil
As manifestações da base social de Bolsonaro em 7 de setembro de 2020 foram grandes, mas menores do que previsto. E notoriamente não houve a adesão esperada de militares que evitaram comparecer ou manifestarem-se publicamente. Bolsonaro foi obrigado a recuar temporariamente em suas intenções golpistas. Mas isso não significa que foi abandonado ou traído pelos militares. Significa que Bolsonaro pertence ao Partido Militar, mas o Partido Militar não pertence a ele. E que o projeto militar busca alternativas para sua permanência, independente de quem ocupe a presidência da República.
Os desdobramentos internos da militarização podem ser observados por algumas dimensões. A primeira é a naturalização da violência armada como um mecanismo para a resolução de conflitos, num crescente belicismo, expresso pelo apoio popular a liberação irrestrita do porte de armas. Essa naturalização tem impactos externos, quando alternativas que envolvem o emprego da força têm maior propensão de uso, contando com respaldo popular; e tem impactos domésticos, pois quando as forças de segurança são questionadas, podem responder repressivamente, identificando compatriotas como inimigos.
O belicismo também impacta nas diferentes formas de violência como, por exemplo, a violência de gênero, que se torna mais letal. Essa é a segunda reflexão que a militarização da sociedade impõe: a do reforço ao patriarcado. Uma sociedade militarizada tende a apoiar medidas contrárias à agenda de direitos humanos internacional, como aquelas políticas de inclusão com recorte de gênero e raça. Entre 2009 e 2019, assassinatos indígenas cresceram 21,6%. A violência contra homossexuais e bissexuais subiu 9,8% desde 2018. Houve um aumento de 6,1% dos feminicídios (homicídios de mulheres dentro de casa). Em todos os cenários, o perfil geral é racial: em 2019, 77% das vítimas de homicídio no Brasil foram de pessoas negras; 70% desses assassinatos foram cometidos com armas de fogo (CERQUEIRA, 2021).
Outra dimensão é a cultural. Não se trata apenas das grandes marchas militares ou rememoração de datas e personagens simbólicos. A militarização ocorre pela literatura, moda, cinema, jogos bélicos, etc., no cotidiano e na coloquialidade. É por meio da linguagem que se constrói o consentimento social favorável à militarização, pois ela serve como veículo de propaganda. Em um mundo com tanta informação disponível e com o predomínio das redes sociais (SPAGNUOLO ET AL., 2021), a hegemonia calcada na ideologia é mais eficiente e barata que aquela baseada estritamente na força.
Por fim, as estruturas militares geram em seu seio identidades unificadas e totalizantes, sem espaço para a divergência (que é inclusive castigada), e pautadas pela delimitação do outro como inimigo para justificar-se a si mesmas.
A tendência, ao menos para o curto e médio prazo, é de que esse processo não seja de fácil reversão, mesmo com a saída de Bolsonaro e dos militares da direção política nacional. Os militares voltaram explicitamente para o poder no Brasil, e não há nenhum indício de que dele se afastarão. No contexto das eleições presidenciais de 2022, os militares militantes estão unidos contra o nome de Lula (PT), mas divididos entre duas candidaturas à direita, particularmente entre a reeleição do Bolsonaro e a candidatura de Sérgio Moro, ex-juiz responsável pela Operação Lava Jato e prisão injusta de Lula.
No caso da Instituição militar, ela está bem posicionada para emitir avaliações quanto à lisura das eleições, ou para nelas interferir, uma vez que está entre os responsáveis pela segurança do processo. Em caso de intensa desestabilização social provocada por segmentos armados antes ou depois das eleições, cenário possível caso Bolsonaro seja derrotado, as Forças Armadas podem atuar simplesmente não fazendo nada, e posteriormente se apresentando como os novos viabilizadores da estabilidade nacional, num processo similar ao ocorrido na Bolívia com o golpe de 2019.
O multilateralismo foi durante a maior parte do tempo eixo orientador da política externa brasileira, notadamente durante os governos petistas, que aprofundaram a cooperação Sul-Sul, particularmente com a América Latina. Até mesmo parte das elites brasileiras veem a China como principal parceira geopolítica há algum tempo, em virtude dos ganhos econômicos aferidos. Na contramão global, os segmentos militares aprofundam sua dependência do império estadunidense em decadência. Em algum momento, esse desencontro de leituras de mundo virá à tona, com graves consequências.
Diante desse cenário, muitos desafios se colocam para o campo popular. O primeiro deles, sem dúvidas, é a eleição de Lula para a presidência, e em um novo cenário, rediscutir qual deverá ser a postura do Brasil no mundo, qual a política de defesa capaz de sustentar esse novo projeto de país, e só então quais as Forças Armadas necessárias para isso. A política militar deve estar subordinada a um Projeto de país sob estrito controle popular, que pense como engajar o Brasil no Plano Para Salvar o Planeta, um programa elaborado por uma Rede internacional de Institutos de Pesquisa para enfrentar os dilemas do nosso tempo.
A segunda tarefa é incluir o controle popular sobre os instrumentos de força do Estado como algo central para um projeto de país, o que inclui o controle das Forças Armadas, das polícias militarizadas e dos armamentos que circulam em território nacional. Defesa e segurança são pautas de poder, e para trabalhá-las, é preciso praticar educação popular em defesa, incluindo o tema nas discussões com o povo.
Por fim, a terceira tarefa é com a memória, pois sem acertar as contas com o passado escravocrata e ditatorial, não é possível construir um futuro democrático em que as Forças Armadas estejam subordinadas integralmente à soberania popular e suas instituições, assim como destinadas exclusivamente para a defesa externa e não mais contra seu próprio povo. Isso também passa por rediscutir os crimes cometidos durante a ditadura de 1964, mas essencialmente sobre o legado autoritário na estruturação do Estado nacional e da cultura política que seguiu presente mesmo com o final do regime dos generais. A ressignificação dos símbolos pátrios, como a bandeira brasileira, precisa fazer parte desse processo. Em última instância, devemos também questionar a ideia de que a preparação para a guerra é necessária para a construção da paz. Pelo contrário: construir a paz passa por priorizar um programa que tenha como foco o bem-estar da humanidade e do planeta, eliminando a fome, garantindo moradia segura, saúde de qualidade para todos e todas e defendendo o direito a uma qualidade de vida digna. Se você quer paz, você deve se preparar para a guerra, dizem. Na verdade, se você quer a paz, você deve se preparar, construir, educar e se dedicar à sua construção.
Bibliografia
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