A queda do muro da favela do Moinho

Por Eduardo Roberto.

Fotos: Raphael Sanz.

muro favela

Domingão de sol rachando em São Paulo, pouca gente andando na rua, aquele clima de suspensão esperando a hora do jogo de futebol na televisão às 16h, esperando o fim de semana acabar.

No meio desse mormaço, nos limites do que se entende por centro de São Paulo, moradores de uma comunidade paupérrima se uniram por um fim comum. A marreta passou de mão em mão, as pedras foram sendo ejetadas uma a uma. Na Favela do Moinho, a única no centro da cidade, espremida entre duas linhas de trens metropolitanos, neste domingo 4 de agosto, caiu um muro.

Foi um ato político. Os moradores, junto de vários grupos de lutas sociais da cidade, se uniram para derrubar um muro construído pela Prefeitura após um grande incêndio na favela, em 22 de dezembro de 2011. Neste incidente, três pessoas morreram, várias ficaram feridas e cerca de 500 tiveram que deixar o local.

À época, a gestão do prefeito Gilberto Kassab justificou oficialmente a construção do muro como uma questão de segurança. O principal foco desse incêndio em 2011 foi em um prédio abandonado das antigas fábricas da Moinho Fluminense. Desde os 90, o prédio, em péssimas condições, era ocupado. No meio dessa década chegaram os moradores do Moinho. O muro, segundo a Prefeitura, visava isolar a área do prédio.

O incêndio deu à gestão Kassab a desculpa perfeita para a demolição da construção e, se possível, enfiar uma ou duas medidas para conter a expansão da favela. O prédio veio abaixo no primeiro dia de 2012, e a própriaimplosão causou problemas para Prefeitura, já que a construção não veio inteiramente abaixo. O prefeito justificou, afirmando que a implosão não foi total para preservar as linhas de trens. Ela custou R$ 3,5 milhões e deslocou mais de cinco mil pessoas de suas casas em pleno Réveillon.


Vídeo da implosão. 

A favela também fica no ponto central de um dos projetos de remodelagem urbana de Kassab, a demoliçãodo Elevado Costa e Silva (Minhocão) e a construção de um parque linear entre o Brás e a Lapa, onde hoje correm linhas de trens.

Após a implosão, o muro de oito metros de altura construído com concreto armado e que atravessa lateralmente a favela continuou lá, deixando os moradores com somente uma saída para o “asfalto”. Caso outro grande incêndio ocorresse, a população de lá, com cerca de 500 famílias, teria uma única rota de fuga, debaixo do viaduto Orlando Murgel. Esse era o objetivo primário para pleitear a derrubada do muro.

No último dia 12 de julho a comunidade conseguiu algo inédito em sua história: um canal direto de comunicação com o prefeito. Fernando Haddad recebeu uma comissão de moradores e se comprometeu a enviar uma equipe para elaborar um plano sobre a derrubada e a constituição de rotas de fuga. A visita à favela ocorreu no dia 16 e contou com membros da Secretaria de Relações Governamentais, Corpo de Bombeiros e Subprefeitura da Sé, mas, segundo os moradores, nenhum prazo para a solução do problema foi estipulado.

Munidos de um laudo feito pelo Corpo de Bombeiros e uma liminar judicial emitida em abril que obrigava a Prefeitura a derrubar o muro por questões de segurança, os moradores pegar suas ferramentas.

A tarefa foi árdua. A parede de concreto armado resistia firmemente às incessantes porradas de marretas proferidas pelos moradores, que se revezavam nas pancadas, furadeiras, serras elétricas e um ou outro copo de cerveja.

O muro fica no fundo da favela, bloqueando a avenida principal da comunidade e formando um beco sem saída. Para o ato da derrubada, foi montado um esquema de festa, com aparelhagem de som, apresentação de grupos de hip-hop, discursos sobre o choque social urbano e como os políticos só trabalham pela elite, funk para a criançada e umas brejas para os adultos.

Mas, se até protesto na avenida Paulista com imprensa cobrindo, transmissão ao vivo na internet e gente branca a polícia desce o cassetete, imagina dentro de uma favela. Ainda mais em uma favela que já tem histórico de confrontos. Portanto o clima, no domingo, era de festa, mas daquelas que os convidados já ficam esperando os vizinhos chamarem a polícia para cortar a brisa.

Durante a semana, a polícia, como quem não quer nada, deu as caras por lá. Segundo a moradora e líder comunitária Alessandra Moja, já na segunda-feira (29) o Batalhão de Choque apareceu. “Nós estávamos voltando de uma reunião com a Prefeitura e vimos as viaturas entrarem a toda velocidade na favela. Já começamos a gravar e perguntamos para eles qual era o motivo da visita. Eles disseram que ‘estavam fazendo uma vistoria de rotina’. Mas como poderia ser rotina se o Choque nunca veio aqui?”, questionou Alessandra. Segundo a líder, eles pararam as viaturas no meio da comunidade, desfilaram com armas em punho por dez minutos e foram embora.

Outras visitas foram feitas pela Polícia Militar no sábado à noite e no domingo de manhã, ao meio-dia, pouco antes do horário marcado para o ato. Cerca de 30 homens da PM, vindo por dentro da favela e pelo outro lado do muro, cercaram o lugar onde ocorreria o ato e pressionaram para que não fosse feita a derrubada. Depois de alguma conversa e da verificação dos documentos que autorizam a derrubada do muro, eles foram embora. À tarde, outra tropa, agora da Guarda Civil Metropolitana, também interrompeu o ato para verificação, também sem grandes consequências.

O ato seguiu tarde adentro, com incessantes marretadas. Aos poucos a população da favela recebeu muita gente de fora e o grupo cresceu. O muro foi caindo, mas lentamente, já que o trabalho era difícil. Somente na segunda-feira a passagem foi efetivamente liberada.

Durante todo o ato, o pessoal de vários grupos de apoio aos movimentos sociais, e que trabalha junto com a favela há algum tempo, como o Mães de Maio, fez uma transmissão ao vivo e online dos acontecimentos. Por volta das 14h pintou por lá um cara se declarando representante da autointitulada “Mídia Ninja” [a nova aposta do projeto de poder Fora do Eixo após alguns reveses na área cultural na qual se criaram]. Como já havia um link ao vivo no ato, ninguém conseguiu entender direito qual era a proposta dele. Ele disse que era alguma coisa sobre “chegar e somar”. Quando perguntado sobre a relação deles com o coletivo Fora do Eixo, ele se embananou, gaguejou, e mudou de assunto. Ele usava um boné do Movimento Sem-Terra (MST). Os organizadores pediram para que eles não entrassem na favela com equipamentos, já que a relação do Moinho com o Fora do Eixo e similares não é das melhores, para se dizer o mínimo.

HISTÓRICO

Conversamos com a Alessandra sobre o surgimento da Favela do Moinho. Ela tem 29 anos e mora ali há 18; foi uma das primeiras pessoas a ocupar o terreno onde funcionou até os anos 80 o Moinho Central, o maior do tipo na cidade. Ela morava embaixo do viaduto Orlando Murgel, junto com outras famílias. Com a paulatina e incessante expulsão dos moradores de baixa renda da região do centro, a favela do viaduto foi crescendo e ocupando o espaço abandonado do Moinho, que também estava aos poucos virando moradia.

“A gente mesmo começou a limpar o terreno e a construir. Aqui, antes, era um cemitério clandestino da polícia. Quando eu vim para cá em 95, tudo era um matagal, só tinha o prédio mesmo. Então eles aproveitavam isso para desovar cadáver e colocar a culpa na gente. Em 1999 houve um incêndio, duas crianças morreram queimadas. Em 2000, começamos a expandir de novo, de uma vez. A maioria do pessoal morava na rua mesmo, pelo centro. Embaixo do viaduto era muito pequeno, um barraco em cima do outro. Quando fizemos a expansão, foi até o prédio e além”, conta Alessandra.

O relato segue: “no dia do incêndio criminoso do prédio, em 2011, eu estava grávida de sete meses. Eu morava perto do campinho de futebol aqui da favela, então minha casa não foi atingida. Fiquei o dia inteiro ajudando o pessoal que sofreu e, à noite, fui para o hospital dar a luz. Em setembro do ano passado teveoutro, embaixo do viaduto. Uma pessoa morreu e 100 barracos foram destruídos. Ainda rolaram outros focos depois desses, mas nós mesmos conseguimos apagar”.

Depois do incêndio de 2011, conta Alessandra, a pressão para extinguir a Favela do Moinho aumentou, já que a população de lá foi reduzida pela metade. “A gente enfrentou a GCM depois do incidente, tomei bala de borracha, gás de pimenta, meu corpo tem marcas das bombas ainda. Batemos de frente porque eles queriam entrar para nós sairmos. Mas a gente não ia sair, então eles teriam que atirar mesmo”. No ano passado, o ex-prefeito Kassab afirmou que as famílias que continuavam vivendo na favela estavam sendo convencidas a sair de lá e aceitar o auxílio-aluguel. Foram cadastradas no programa 810 famílias, segundo a liderança comunitária. Mas muita gente retornou para o Moinho, alegando que os 400 reais não são o suficiente para se morar em lugar nenhum de São Paulo (muito menos na região central), ou que tiveram o benefício cortado.

O prefeito Fernando Haddad, durante sua campanha, prometeu que iria lutar muito pela reurbanização do local, que inclusive visitou. Porém, a Prefeitura já tem outros planos para o terreno. Segue trecho da reportagempublicada no Estadão em 12 de julho: “Em maio, a Secretaria Municipal de Habitação informou os moradores que uma das possibilidades era construir dois empreendimentos habitacionais no centro, para remover as famílias, já que o governo estadual pretende construir no local onde está a favela a futura estação Bom Retiro da CPTM”.

“Estamos pressionando a Prefeitura para ocuparmos oficialmente o terreno. Nós já temos um liminar de usucapião daqui. O escritório de arquitetura Pea Biru está nos ajudando a construir um projeto de moradia popular chamado Plano Popular Urbanistico e Cultural da Favela do Moinho, com esquema de mutirão. Estamos negociando com a prefeitura, então montamos grupos de trabalho. O primeiro, emergencial, vai discutir as questões de saneamento básico como água, esgoto e luz. Depois vamos pautar a ocupação organizada do terreno, e no fim a posse dele”, arremata Alessandra. “Dono, na verdade, é quem está morando.”

Fonte: Vice

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