Texto e fotos por Solon Neto.
Sob a casa da família de Marielle paira um véu de dor e injustiça. O batente da porta de entrada é guardado por uma placa que diz “Marielle Presente”. A primeira coisa que se vê quando se entra é um conjunto de fotos da mulher que virou símbolo de luta.
Marielle criança, Marielle formada, Marielle vereadora, Marielle adolescente. Presente e ausente ao mesmo tempo.
A casa, um segundo andar típico de subúrbios, na Zona Norte do Rio de Janeiro, é simples e bem arrumada. O pai de Marielle, Antônio, está sentado na sala com a neta, Luyara. Eles assistem futebol na televisão e discutem, tiram sarro. Uma cena comum, mas em uma família rasgada pelo Estado. Ele é Fluminense e ela é Flamengo.
Pelos corredores da casa é impossível não saber onde se está, não se fica indiferente. Há fotos e homenagens a Marielle espalhadas por todos os cômodos.
Ele não cansa de dizer “Que falta faz a Marielle nessa casa”. Não cansa também de exaltar sua esposa, Marinete, pela criação da filha. O rosto do homem é terno, mas seu olhar guarda uma dor inenarrável, que só ele sabe sentir. Os olhos brilham de angústia.
Luyara nos chama até seu quarto. O lance de escada que nos separa do segundo andar não é suficiente para nos preparar. Sobre a cama da menina orfã paira uma imagem enorme da mãe, gigante. Em frente à sua cama outras dezenas de fotos da mãe, da tia, da família. Em todas elas sorridente, presente.
Luyara é espirituosa, mas durante nossa conversa permaneceu calada. Nos mostra seu quarto com carinho e dedicação, mas não fala sobre a morte da mãe.
Dona Marinete finalmente deixa seu quarto e se junta a nós quando a filha Anielle aparece. Anielle enche o ambiente, fala com firmeza, tem o olhar direto, postura e palavras poderosas. Ela se parece com a irmã fisicamente. Anielle, que dá aulas de inglês, já foi jogadora de vôlei e atuou fora do Brasil. Ela traz a mãe para a sala.
Sentados, com o futebol no mudo, Antônio, Anielle, Marinete e Luyara deslancham a nos contar o que sentem. Luyara fala pouco. A mãe fala o necessário: “A nossa mão, alguém vai querer segurar?”, diz. Antônio e Anielle tomam a frente. Estão indignados, se sentem esquecidos e ameaçados.
“O interesse é basicamente se aproveitar do sangue que Marielle derramou. Não porque ela quis, porque fizeram isso com ela covardemente”, lamenta Antônio.
Propostas indecentes abarrotam suas consciências. “Não nos dão o direito de sentir o luto”, disse a mãe. Contratos para livros, filmes, aparições, propagandas, politicagem. E em todas, oportunidades de tirar vantagem. “A gente hoje experimentou na própria pele a ingratidão das pessoas, o oportunismo das pessoas, a virada das costas das pessoas”, aponta Anielle, que a certa altura arremata: “Tem gente que hoje fala ‘Marielle vive, Marielle presente’ e eu tenho vontade de perguntar para quem? Porque para a gente, infelizmente, ela morreu”.
Luyara se recusa a falar e o avô explica que ela ainda sente muito. A filha de Marielle, estudante de educação física – alta, como a mãe e a tia – permanece no canto do sofá com os olhos molhados de lágrimas durante toda a conversa.
Marinete interrompe a entrevista e nos oferece pão, refrigerantes, sucos e mate. Ela é cuidadosa. Antônio diz que é ela a grande responsável pela criação de Marielle. Ele conta que para a mãe a ex-vereadora nunca levantou a voz ou disse palavrão. Era puro respeito, uma família de mulheres.
A família se acostumou com as entrevistas e a presença dos jornalistas. Quando pedimos para que segurem a placa de Marielle para uma foto, Anielle ironiza: “pelo menos vocês pedem, tem quem chega e vai simplesmente colocando a mão”. Em certos momentos eles mesmos nos dizem o que fazer. Apontam o que geralmente fotografam, os melhores ângulos.
Pedimos para que segurem cada um uma foto de Marielle para retratos. Eles aceitam. Antônio já sabia que teria que tirar a foto da filha da moldura para evitar o reflexo. Ele senta e tira a foto com cuidado. Pouco depois nos leva ao quarto que divide com a esposa. Quis nos mostrar que sobre a cama há um enorme estandarte com o rosto de Marielle. Não muito depois volta correndo para a sala com um livro de homenagens a símbolos do Rio. Mostra orgulhoso que a filha foi lembrada.
Quando vamos embora uma chuva forte cai e coroa o clima que preenchia a casa, ora de luta e força, ora de dor e resiliência. Na saída, Anielle nos dá carona até o metrô. Não muito longe da casa, no escuro, uma blitz repleta de fuzis fecha uma avenida sob a ponte.
Anielle nos deixa alguns minutos depois e avisa: “Cuidado, estamos na Zona Norte”. A chuva castiga o asfalto, estamos no Rio de Janeiro, a cidade que brinca de ser metrópole.