A política na literatura e a narrativa das gentes

Por Elaine Tavares.

Foram três dias de muita efervescência intelectual na XI edição das Jornadas Bolivarianas que esse ano teve por tema a literatura e a política na América Latina. De maneira bastante original cada um dos convidados foi traçando o paralelo entre as obras literárias de importantes autores latino-americanos e a vida real, o cotidiano nada mágico da grande Abya Yala (as três américas).

No primeiro dia, Victor Moncayo trouxe a obra de Gabriel Garcia Márquez, que, afinal, nada tem de realismo mágico. Toda temática narrada por Gabo, bem como seus personagens, estão completamente inspirados na realidade. A solidão retratada no “Cem anos de solidão” ou no “Ninguém escreve ao coronel” é a típica solidão que acomete o indivíduo premido pelo sistema capitalista. A dura realidade colombiana, o colonialismo que ainda perdura na América Latina, tudo é concreto e cotidiano.

Tânia Ramos trouxe aspectos da vida e da obra de Jorge Amado que foram encontrados escondidos numa velha mala deixada para trás no seu autoexílio em Montevidéu. Esquecida por lá, foi guardada pela sua anfitriã e agora veio parar nas mãos da professora catarinense. Dentro dela, mais de 1.500 documentos e um livro inédito. Cartas aos amigos e editores que mostram a sua ligação com o Partido Comunista e suas inquietações quanto à realidade brasileira. Um achado que ainda renderá muitos trabalho e análises.

Fábio Lopes traçou um paralelo entre os que narraram o ultraje vivido durante a segunda grande guerra pelos judeus, ciganos e comunistas e os que narram hoje a vida dos desgraçados. Lembrou que os que conseguem colocar à luz a dor e o sofrimento vivido em situações tão violentas, são os que ficaram na “zona cinzenta”, ou seja, os que, ao sobreviverem não viveram até o fundo a dor. Mas, ainda assim, e por isso mesmo, conseguem contar de todo o terror.

Luis Alvarenga apresentou o poeta salvadorenho Roque Dalton, um escritor que abriu a consciência da nação ao trazer para sua poesia aspectos da cultura e da história que os governantes buscavam manter escondidos. Ele inaugura em El salvador não apenas uma nova forma de fazer poesia, mas também serve de luminária numa noite escura, na qual a memória dos massacres, das mortes e da miséria das gentes insistia em existir. Roque Dalton aponta caminhos para toda uma geração insistindo que a poesia é, em si, política e que, com ela, se pode esgrimir o esquecimento.

Gilberto Felisberto Vasconcellos trouxe a poesia e o texto de Oswald de Andrade, mostrando que ele foi um dos primeiros a compreender que o sol deveria ser a fonte da energia vital e cósmica a gerir a existência dos trópicos. Poeticamente antecipou o que mais tarde foi concebido como a teoria da Biomassa por Bautista Vidal e Marcelo Guimarães. Oswald compôs sua obra dando destaque para o que era nossa terra antes da conquista, buscando levantar valores dos povos originários que ainda valem a pena serem preservados. O soloswald, sol e solo, apaixonado pela nação.

Natália Vinelli apresentou a vida e a obra do jornalista argentino Rodolfo Walsh, um homem que mudou radicalmente sua existência quando, já escritor afamado, conheceu um “fuzilado que vivia”, sobrevivente de um massacre de trabalhadores que permanecia esquecido na memória das gentes. Ele entrevistou o homem e a partir daí descortinou um novo destino, saindo do conforto liberal e passando a ser um militante comunista. Depois, mais tarde, quando já estava completamente envolvido com a realidade das gentes, ele mesmo assume a condição de um militante político ativo sendo, ao fim, morto e desaparecido pela ditadura militar. Seus livros e sua militância no jornalismo mostram um intelectual que buscou se pautar pela dura realidade do povo oprimido, em vez da segura e protetora quentura da literatura desligada do cotidiano das gentes.

Por fim, Denilson Botelho trouxe Lima Barreto, esse escritor brasileiro que conseguiu, como ninguém, narrar a vida da primeira república na perspectiva dos trabalhadores, da gente simples. Um homem que escrevia para as massas, com suas crônicas certeiras e seus romances publicados em capítulos nas páginas dos jornais. Lima Barreto escrevia para ser entendido, para transformar, para escancarar a realidade da corrupção, da mídia dominada pelos interesses mercantis, da sordidez da política. Lima Barreto também foi capaz de criar um personagem como o Major Quaresma, um nacionalista, tão caricato quanto singelo, representando não só o profundo amor do escritor pelo Brasil, mas também a tristeza de ver a ideia de nação se esboroar em meio ao colonialismo e a negação da soberania.

De uma maneira bastante profunda todos os conferencistas realizaram a ligação entre a literatura e a política, discutiram criticamente a forma de narrar, a estética, o comprometimento político, a história, a importância da memória. Enfim, foi mais um desses momentos repletos de riqueza em que a totalidade pode ser abraçada a partir do particular. Falar de literatura na América Latina não pode ser apenas realizar o debate estilístico ou gramatical. A literatura de nosso continente é rica, colorida, engajada e espelha, muito mais do que os “papers” acadêmicos, a dura/bela/complexa realidade das gentes.

Além dos debates que buscaram a radicalidade da obra de arte no contexto do real, as Jornadas ainda abriram espaço para o lançamento de livros como o do Gilberto Felisberto Vasconcellos, “Darcy: a razão iracunda”, sobre o educador Darcy Ribeiro, e o de Gert Shinke, “O golpe da Reforma Agrária”, sobre a fraude de distribuição de terras em Santa Catarina durante o regime militar.

Não faltou também um protesto organizado por estudantes da direita local que entraram no auditório com cartazes pedindo a libertação de Leopoldo Lopez, o ex-prefeito de Chacao que incitou, via televisão, seus cidadãos a matarem mais de 40 pessoas nas chamadas “guarimbas” (protestos contra o governo) na Venezuela. Por conta desse crime ele está preso, e a direita Venezuelana prega a ideologia de que ele é um preso político, como se tivesse sido preso por ser contra o governo. Não é esse seu crime. Nada tem a ver com censura ou a não garantia do direito a liberdade de expressão. Leopoldo convocou seus partidários ao confronto, incitando as mortes que se seguiram.

Os estudantes ainda seguravam um paradoxal cartaz no qual estava escrito “o bolivarianismo mata”. A considerar que quem incitou a matança de mais de 40 pessoas foi o liberal Leopoldo López, como é o bolivarianismo que mata? Estranha percepção.

Como muito bem comprovaram os conferencistas convidados, com suas falas e reflexões sobre a literatura latino-americana, o que mata mesmo é o capitalismo, capaz de massacres e violências sem fim em nome do lucro de alguns, todas elas narradas pelos escritores que insistem em não permitir que os cadáveres produzidos pelo capital fiquem embaixo do tapete.

Fotos: Rubens Lopes e Ricardo Conceição.

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