A política foi para mesa: uma tentativa de apagamento da culinária palestina?

Foto: Pixabay

Por Flávia Andréa Pasqualin.

O preparo da comida é muito mais que tornar comestível um alimento. De acordo com Montanari (2013), o homem seleciona seu alimento com base em suas preferências individuais e coletivas ligadas a valores, significados e gosto cada vez mais diversificado.
Sendo assim, questiono; como fica uma culinária sem pátria?
Certa vez, durante um trabalho de campo entre muçulmanos de origem árabe, uma interlocutora me contou sobre a amiga palestina: “Eu falei para Leila (nome fictício), como assim sua filha não come hommus? Você precisa ensinar essa menina!”
Comer hommus vai muito além de ingerir uma pasta de grão de bico com tahine (pasta de gergelim). Embora muitos países do Oriente Médio disputem sua autoria, circula a história que sua origem vem do Cairo, por volta do século 18. O nome é árabe e significa “grão de bico”. Sabemos que cada país apresenta sua versão; muda-se a quantidade de tahine, alho ou limão e ainda existe uma versão turca que leva iogurte ou invés da tahine. O hommus faz parte da identidade dessa população, há uma construção social sobre o que é conhecer e comer tal pasta.
Para Vigotsky (2001), a pessoa socializada internaliza os símbolos do seu ambiente, aprendendo com outras pessoas a classificar as comidas como “boas” ou “ruins”, uma vez que, o órgão do gosto é o cérebro e não a língua, o que conferi um caráter cultural a questão (Montanari, 2013). Woortmann (2013) atenta para a questão do habitus segundo Bourdieu (1983), o qual salientou o caráter “de mão dupla” nessa construção social, ou seja, da sociedade para a pessoa e desta para a sociedade. Portanto, a comida, assim como a língua falada é código de comunicação ao transportar a cultura de quem a pratica, é depositária das tradições e identidade de um grupo, o que a torna um excelente veículo de troca cultural, pois, comer a comida de outros é mais fácil que decodificar sua língua (Montanari, 2013).

Reem Kassis, cozinheira e escritora, documentou quase 150 receitas juntamente com suas respectivas histórias sobre a Palestina. Nascida em Jerusalém, de família palestina, Kassis cresceu cercada por comidas palestinas. Conta ela que, ao deixar sua família e sua casa em Jerusalém para estudar nos Estados Unidos, sua mãe embalou uma pequena garrafa de azeite e um saco de zaa’tar  para que ela levasse na bagagem. Diz Kassis, em entrevista concedida ao MEMO: Middle East Monitor: “Lembro que às vezes abria o saco de zaa’tar e cheirava sem comer, e sentia como se estivesse de volta na cozinha (da minha mãe) novamente.” (Alfarra, 2018).
Assim, acredito na perspectiva de que a comida é um modo de comunicação, como postulado por Hauck-Lawson (1992, 1998), do qual se desenvolveu o conceito de “voz da comida”, aludindo o caráter dinâmico, criativo, simbólico e singular pelo qual a comida serve de canal à comunicação (Amon & Menasche, 2008) e, nesse sentido, se reafirma a importância de sua utilização como um veículo para manifestar significados, emoções, visões de mundo e identidades. Ouvir “a voz” das comidas é uma maneira para acessar imaginários que envolvem escolhas, símbolos e classificações que organizam as diversas visões de mundo no tempo, no espaço e, acrescentamos, na política.
Silva et al. (2010) também aponta a comida como alimento simbolizado e amplia, ao inseri-la na ordem do social, do cultural, do político, do filosófico e do psíquico. De acordo com as autoras, por sua vez, esse complexo, se mantém em movimentos constantes de reconstruções e de ressignificações dentro do qual os comportamentos sociais podem ser descritos e interpretados densamente.
Se a comida é alimento simbolizado e tem a capacidade de dizer quem é você e de onde você vem, como se fica quando um outro território toma para si a culinária de outrem? Como se fica quando o território que faz uso dessas comidas é o mesmo que se encontra em conflito político com tua pátria?
Na última década, a “comida israelense” explodiu em popularidade nos Estados Unidos. Intencionalmente ou não, isso levou muitos amantes da comida a chamar tudo de “israelense”, do hummus ao freekeh de grãos e, a salada que em Israel é conhecida por “Salada Árabe” passa a ser pedida  como “Salada Israelense” (Black, 2019). Como aponta Sami Tamimi, chef e autor de livros sobre culinária palestina, dizer que é tudo a mesma coisa, uma vez que são comidas do Oriente Médio, seria o mesmo que generalizar a comida pertencente aos países europeus e chamá-la de “Comida Europeia”, encobrindo a diversidade de ingredientes e modo de preparo (Black, 2019).
Contudo, quando se fala em comida palestina é preciso muito cuidado, pois como podemos falar de um país que “tecnicamente” não existe? Ou, o quanto essa comida insiste e resiste às divisões políticas?
Ao compartilhar o conceito de que a comida possui “voz”, me coloco a escutar o que ela quer nos dizer. Pois, se surgiram muitos restaurantes israelenses mundo a fora nos últimos anos, penso também no crescente aparecimento de autores que publicam livros sobre culinária palestina, tais como; Reem Kassis, Sami Tamimi, Joudie Kalla, Yasmin Khan e outros mais.
Dentre os livros publicados, alguns deles, no desenrolar de suas receitas e histórias sobre as mesmas, mencionam o conflito político entre Israel-Palestina, outros apenas apresentam suas receitas sem narrar a atual situação. No entanto, segundo Misham (2020), o simples fato de se apresentar como um autor palestino já demarca uma posição política.
Cerca de 1,9 milhão de palestinos vivem dentro das fronteiras de Israel, 2,8 milhões na Cisjordânia e 1,8 milhões nos 140 quilômetros quadrados da Faixa de Gaza. Seis milhões, quase metade da população total, compõem a diáspora. Eles são um povo que não tem nenhum país para chamar de seu, como os bascos na Espanha, os Rohingya em Mianmar, os Roma na Europa Oriental e, por milênios, os judeus. (Misham, 2020, parag.12)
Também durante um trabalho de campo, enquanto conversava sobre comida, com uma jovem de origem árabe, ela me diz: Você já foi para os Estados Unidos? Quando for, você precisa comer as pastas (referindo-se ao hommus e ao babaganush) nos restaurantes israelenses. Acho que são melhores que as nossas (referindo-se aos árabes). Tal observação me colocou a pensar desde então e, em conversa, com a doutoranda em Psicologia e filha de palestinos, Ashjan Sadiqi Adi, ela alertou para as questões decoloniais, neste caso, o colonizado árabe que subjuga sua própria cultura em detrimento dos feitos do colonizador. Dessa forma, segundo alguns palestinos, “culinária israelense” pode, no ocidente, passar a significar hummus, falafel, labneh, tabbouleh e shawarma, pratos de longa data pertencentes a tradição árabe (Misham, 2020).
Se o que une um povo são suas memorias de pertencimento a um determinado local, seu modo de vida, à medida que esses pratos vão sendo rotulados e popularizados como israelenses, no Ocidente, vamos tirando do mapa e da mesa os palestinos. Com efeito, o crescente número de livros publicados sobre culinária palestina me parece uma tentativa de dar voz a essas comidas para que elas não deixem seu povo cair no esquecimento, para que seus cheiros e sabores resistam.

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