Por Felipe Souza, da BBC.
É comum presenciar policiais militares abordando pessoas pelas ruas brasileiras, prática que faz parte das atribuições destes profissionais no enfrentamento ao crime.
Mas será que um cidadão comum pode se aproximar e filmar toda a ação? E, se for filmado, qual deve ser a reação correta do policial, de acordo com a lei?
Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a função policial é pública e passível de constante fiscalização por parte da sociedade, o que possibilita que qualquer pessoa assista, fotografe ou filme patrulhas, abordagens e ocorrências. Também é permitido que o policial faça o mesmo com qualquer cidadão.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, é comum presenciar policiais militares filmando manifestantes durante protestos.
Em casos de flagrante, o celular do suspeito de um crime pode ser apreendido. No entanto, a apreensão de celulares de testemunhas, assim como a exigência de que os donos dos aparelhos cedam a senha, divide especialistas.
Foi o que ocorreu com o repórter da BBC News Brasil Leandro Machado na última sexta-feira. A caminho do trabalho, Machado notou várias viaturas em frente a um supermercado em Pinheiros, e viu que a polícia estava detendo uma pedinte com sua filha, que teria agredido um segurança do local e cometido “desacato a autoridade”. O repórter fotografou a cena, mas teve de entregar o celular e a senha e acabou sendo levado para a delegacia como “testemunha”.
A maioria dos advogados ouvidos pela reportagem, considerou abuso de autoridade a ameaça feita por um policial ao repórter: “Ou você coloca a senha ou vai preso por desobediência”.
O policial pode levar testemunha que filma para a delegacia?
Especialistas ouvidos pela reportagem disseram que a polícia pode levar testemunhas da cena de um crime para a delegacia. Mas ressaltam que essa ação, no entanto, não deve estar ligada apenas ao fato dela ter filmado a ação.
No caso do jornalista da BBC, havia outras pessoas presentes durante a abordagem policial, mas só ele foi levado para a delegacia contra sua vontade. O ouvidor das polícias de São Paulo, Benedito Domingos Mariano, entende que essa abordagem foi abusiva e que o jornalista não deveria ter sido conduzido ao distrito policial.
“Não faz nenhum sentido levar uma pessoa para a delegacia simplesmente por que ela filmou uma ocorrência. Agora, se o jornalista entendeu que a abordagem foi abusiva, a ouvidoria vai encaminhar o caso para a Corregedoria e eles vão avaliar se houve abuso de autoridade e qual penalidade os policiais poderão ter”, afirmou Mariano.
Para o presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) – entidade não governamental que produz e divulga conhecimento em várias áreas do direito penal -, Cristiano Avila Maronna, a atitude dos policiais com o jornalista foi abusiva e autoritária.
“Ninguém é obrigado a fornecer informações pessoais para ninguém, a não ser que haja uma ordem judicial. Além disso, a Constituição assegura a inviolabilidade da segurança e privacidade do indivíduo. O policial não pode invadir a privacidade e acessar os dados do celular. O fato de fazer isso com uma testemunha, alguém que nem sequer estava cometendo um crime, torna o caso ainda mais absurdo”, afirmou.
O presidente do IBCCRIM defende ainda que o crime de desacato à autoridade – motivo que levou à detenção da mulher – deveria ser extinto do Código Penal Brasileiro.
“Ele é uma carta branca para a violência policial. Já foi extinto em vários países e hoje apenas serve como instrumento de garantia da impunidade para policiais e autoridades praticarem todo o tipo de ilegalidade e constranger o cidadão e obrigá-lo a aceitar qualquer tipo de situação, como coações desse tipo (pela qual passou o repórter). Já existem leis que punem crimes contra a honra, como ofensas, por exemplo, sem a necessidade de haver uma pena específica para autoridades”, afirmou.
Segundo o conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) Ariel de Castro Alves, não há nenhuma lei que justifique a condução de uma pessoa à delegacia contra a própria vontade. “Ações de agentes públicos são públicas e devem respeitar a legalidade, moralidade, publicidade e transparência. Impedir que alguém filme é abuso de autoridade e pode ser punido com até 6 meses de detenção e demissão do serviço público”, afirmou Alves.
Segundo ele, nem mesmo na condição de testemunha uma pessoa pode ser levada à delegacia contra a sua vontade. “Recentemente, o STF considerou ilegal a condução coercitiva de suspeitos. O correto é os policiais apresentam o flagrante e depois a delegacia chamar as testemunhas para depor ou a vara criminal pode chamar pra audiência”, disse.
Para o advogado Ariel de Castro Alves, a condução de uma pessoa à delegacia só pode ser feita quando ela é suspeita de cometer ou participar de um crime. Pedir senha e acessar dados pessoais de pessoas na rua é visto por ele como invasão de privacidade.
O polícia pode pedir senha e desbloquear o celular?
Maronna e outros advogados ouvidos pela BBC News Brasil enfatizaram que a Constituição assegura que informações privadas – como a senha e o conteúdo de um celular – são invioláveis, a não ser que haja ordem judicial para ter acesso a elas.
Já o jurista Ives Gandra Martins considera legítimo o acesso dos policiais ao celular de qualquer testemunha, mesmo que seja necessário o desbloqueio do aparelho por meio de uma senha pessoal e sem uma autorização prévia da Justiça.
“Eles (policiais) não poderiam impedir que a ação fosse filmada. Mas podem pedir acesso às imagens para saber, por exemplo, se a pessoa que gravou estava vinculada aos fatos e verificar se ela faz parte de alguma facção criminosa”, disse.
A BBC News Brasil questionou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo se foi correta a ação dos policiais de pedir a senha, desbloquear e acessar mensagens e arquivos pessoais do repórter.
Em nota, a pasta informou que “a corporação não identificou nenhum erro na abordagem, mas a Corregedoria está à disposição do repórter para o registro e apuração dos fatos”.
Em nota, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) informou que “repudia a intimidação ao repórter Leandro Machado e a revista em seu instrumento de trabalho por parte de integrantes das polícias militar e civil de São Paulo”. O órgão disse ainda que “a liberdade e a segurança são imprescindíveis para o pleno exercício da atividade jornalística; suprimi-las remete a práticas autoritárias incompatíveis com a democracia.”
O que o policial pode e não pode fazer na abordagem?
O Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) criou, em 2016, uma cartilha com orientações sobre o que os policiais podem fazer durante abordagens. Um dos pontos afirma que qualquer policial pode revistar uma pessoa na rua, desde que ele suspeite de que ela tenha drogas ou armas. Porém, é necessário haver ao menos um indício que justifique essa suspeita.
De acordo com a cartilha, o policial não pode abordar uma pessoa com base em uma opinião a respeito das roupas que ela veste, por sua orientação sexual, pela cor da sua pele ou por estar numa região de periferia.
Durante uma abordagem policial, ninguém é obrigado a dizer de onde vem, para onde vai ou se tem antecedentes criminais. A pessoa, porém, deve informar seu nome completo, do pai, da mãe e a data de nascimento para que o policial possa saber o suspeito é foragido da Justiça.
Todo policial durante a abordagem deve falar seu nome, apresentar a funcional e falar para a pessoa qual o motivo da abordagem.