Por Maria de Fátima Silianky de Andreazzi [A].
No final do mês de julho passado, o ministro da Saúde, entre várias iniciativas destinadas a favorecer os negócios privados da Saúde, como se já não fossem bastante aquinhoados com abatimento de impostos e subsídios às famílias de renda média e alta para o seu consumo, resolve atacar o ressarcimento ao SUS de despesas que os beneficiários de planos de saúde fazem ao serem atendidos no SUS, com a desculpa do processo ser ineficiente [1]. A proposta do Ministro é de que os hospitais públicos fizessem contratos diretamente com as empresas de planos de saúde, recebendo mais prontamente por aquele atendimento.
Há que se ter uma visão crítica do problema, muito além dessa pretensa simplicidade.
O Brasil tem um sistema público de Saúde gratuito, sem discriminação. Fruto das lutas populares dos anos 1970 e 1980, o Sistema Único de Saúde – SUS tem sido sistematicamente sabotado por todos os governos, desde Collor, passando por FHC até Lula e Dilma. Temer parece querer botar a pá de cal. Faltam recursos, falta pessoal. Mas ninguém pode deixar de ser atendido como nos EUA, onde para entrar num hospital é preciso pagar.
As empresas de planos de saúde cresceram no Brasil associadas ao Estado. Nos anos 1960 e 1970 o Instituto Nacional de Previdência Social – INPS contratava essas empresas. A partir de 1980, com a penúria do SUS e a possibilidade das grandes empresas repassarem aos preços os gastos com planos dos empregados e os abatimentos de imposto de renda, elas continuam a crescer. Suas condutas são no sentido de conter custos, evitando que o beneficiário use o plano através de entraves burocráticos para autorização de procedimentos, negação de coberturas, insuficiência de rede de prestadores e interferência na prática médica, como pode ser constatado em estudo do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (2012) [2]. Com a Lei n. 9.656/1998, alguma coisa foi regulada, porém muitos beneficiários acabam usando o SUS.
As empresas de planos de saúde questionam o ressarcimento na Justiça, com o argumento de que o SUS é universal, logo, atende a todos, sem distinção. Entretanto, não é isso que está por trás do ressarcimento. Trata-se de medida destinada a coibir a apropriação indébita da poupança popular gerenciada pela empresa de plano de saúde. Quando uma pessoa faz um contrato de coberturas de saúde, a prestação é calculada levando em conta o risco de essa pessoa adoecer e os gastos associados ao tratamento. É um cálculo matemático baseado na teoria das probabilidades. Logo, se essa pessoa adoece, mas os gastos são zero para a empresa, caracteriza-se essa apropriação como lucro extraordinário que não é repassado nem para o beneficiário do plano, nem para toda a clientela sob a forma de rebaixamento de preços. Além disso, era frequente antes da Lei n. 9.656/1998 – e que ainda persiste – a prática de vender planos de saúde sem rede suficiente seja quantitativamente, seja em algumas especialidades ou serviços mais complexos. O SUS era então a salvação. Como os médicos do SUS não possuem dedicação exclusiva e carreira, como era previsto, seus outros vínculos privados acabam os colocando defronte necessidades de pacientes que entram nos hospitais públicos por uma porta facilitada. O ressarcimento, então, é justificado como um freio para a apropriação indébita da empresa e sua tendência de usar o SUS como válvula de escape da sua insuficiência de rede. Pode ser um bom instrumento de informação para o monitoramento dos caminhos percorridos pelo beneficiário de planos de saúde na rede de serviços. Segundo estudos da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, a análise ponderada das internações de beneficiários de planos de saúde no SUS pelo total de beneficiários com cobertura hospitalar em cada estado mostra que Tocantins (5,5%), Acre (4,3%) e Roraima (4,3%) apresentaram os maiores percentuais de notificações, em relação à população com planos de assistência médica hospitalar, sugerindo as práticas referidas do uso do SUS por dificuldades de acesso a rede privada.
O ressarcimento é viabilizado pela atuação da ANS, que organiza a identificação do usuário de planos privados de saúde nos SUS através do cruzamento de banco de dados. É justo que se faça dessa forma e não pelo hospital que atendeu o paciente, apesar do ministro considerar que seria mais rápido no nível do atendimento. Há várias argumentações que justificam o papel da ANS. A mais importante, a meu ver, é que o usuário não é identificado no momento da busca da atenção. O hospital não precisa se esforçar para saber se o usuário tem plano. Em teoria, ele é tratado da mesma forma que qualquer outro usuário e de acordo com a necessidade. Não se estabelece nenhum conflito de interesse para o hospital em identificar pacientes com planos. Na situação atual de escassez de recursos, os gestores seriam tentados ou empurrados através dos constrangimentos do subfinanciamento a privilegiar clientes de planos que os trouxessem recursos diferenciados, com tabelas mais tentadoras que as do SUS. Isso seria agravado na formalização proposta pelo Ministro de estabelecer convênios entre as empresas de planos e os hospitais públicos para operar o ressarcimento. Agregando-se a outra proposta do Ministério de formatar planos chamados populares com coberturas restritas, os hospitais públicos, particularmente os universitários, poderiam se tornar atrativos para as empresas em certos serviços de alta complexidade. Nesse sentido, foi oficializada no Diário Oficial da União a criação de um grupo de trabalho para discutir o assunto dos chamados “Planos de saúde acessíveis”. Segundo a publicação, farão parte do grupo de trabalho o Ministério da Saúde, a ANS e a Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNseg), sem contar com a participação de entidades representando os consumidores ou da categoria médica e demais prestadores de serviços de saúde. Fecha-se o ciclo de transformação dos hospitais públicos em privados na prática: é o modelo do HCPA em Porto Alegre e do INCOR em São Paulo, onde há enfermarias diferenciadas para pacientes com planos de saúde. Isso vai agravar ainda mais o já difícil acesso gratuito de atenção à saúde,no qual as filas de meses e anos são encobertas pela espera computadorizada no SisReg – Sistema Nacional de Regulação – por cirurgias e tratamentos especializados. Os hospitais, além disso, se deparariam com um grande aumento de necessidades administrativas e de advogados para lidarem com glosas, análise de recusas de ressarcimento e litígios, como por exemplo, para cobrança de dívidas, que hoje já são parte do trabalho cotidiano da ANS.
A última questão a ser tratada é se o processo utilizado pela ANS é eficiente. Mesmo diante da implementação de melhorias como o início da cobrança das APACs – Procedimentos de Alta e Média Complexidade, cobrança de juros desde o começo do processo e do uso do Protocolo Eletrônico do Ressarcimento – Persus, o procedimento ainda é burocratizado com duas esferas recursais, o que faz com que seja alto o índice de inadimplência das operadoras que protelam o pagamento dos montantes devidos, além de aumentar a judicialização da questão (estima-se cerca de R$ 500 milhões em depósitos judiciais). Segundo informações constantes no site da ANS, desde 2000 ela arrecadou e repassou ao Fundo Nacional de Saúde (FNS) cerca de R$ 1,2 bilhão, o que corresponde a 46% do valor total dos atendimentos passíveis de ressarcimento. Um total de R$ 1,6 bilhão refere-se a atendimentos impugnados e que estão em análise pela Agência. Outros R$ 623,2 milhões devidos pelas operadoras foram encaminhados à dívida ativa e estão sendo cobrados pelo Judiciário, via União. Nem todos os atendimentos identificados pela ANS são passíveis de cobrança. Dos mais de três milhões de atendimentos notificados desde o ano 2000, apenas 1,6 milhão puderam ser cobrados pela reguladora. Os demais se referem a carências e outras restrições contratuais que são amparadas na legislação.
Por que não muda? É uma pergunta que não quer calar. Seria possível implementar medidas mais céleres. A Receita Federal pode dar muitas sugestões, pois ela processa muitos milhões de declarações, mas nem todas elas são vistas individualmente. Cabe ao declarante ser responsável pelas informações, mas há auditorias e se ocorrem ilícitos, a penalidade é grande. Uma cobrança tem que ser custo-efetiva, ou seja, o que ela arrecada deve valer o custo que se tem em operá-la.
O que não pode ocorrer é agravar a difícil condição de acesso dos usuários, especialmente os mais pobres, mas também a classe média, hoje já atingida pela carga tributária elevada.
Saiba mais sobre a questão (basta clicar em cima para acessar):
[A] , Médica sanitarista, Professora da UFRJ (Economia Política da Saúde), ex-Diretora Adjunta da Agência Nacional de Saúde Suplementar, Superintendente do Hu da UFAL
[1] Ventura, M.; Casemiro, L.; Luques, I. Governo quer ressarcimento mais rápido de planos de saúde. Jornal O Globo de 25 de julho de 2016
[2] Azevedo Junior, R.; Scheffer, M.; Biancarelli, A. (Coord.). Os médicos e os planos de saúde: guia de direitos contra os abusos praticados pelas operadoras. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo / Câmara Técnica de Saúde Suplementar do Cremesp, 2012
Fonte: Contra Privatização