A permanência do impossível. Por Marco Vasques.

Por Marco Vasques, para Desacato.info.

“Teatro é vida”

(Peter Brook)

Dois homens, após um assalto, se trancam voluntariamente em uma casa e dela permanecem reféns. A imagem da casa é um campo de asfixia para encetar uma luta psicológica entre os dois habitantes. Um detalhe importante se revela como iluminação para se ler “A casa dos impossíveis”, de José Eduardo Degrazia: há um sótão e nele figuram bonecos. O dramaturgo, de maneira astuta, faz algumas referências à existência desses corpos que apodrecem durante o desenrolar do diálogo entre os personagens. Assim, tal qual no filme “O anjo exterminador”, de Luis Buñuel, a casa está aberta; contudo, uma força interna dos viventes faz com que eles não ultrapassem as fronteiras internas que habitam.

A temática de “A casa dos impossíveis” é um desafio, pois temos, na tradição do teatro ocidental, textos como “Fim de partida”, de Samuel Beckett; “Na solidão dos campos de algodão, de Bernard-Marie Koltès; “O arquiteto e o imperador da Assíria” e “Fando y Lis”, de Fernando Arrabal, só para citar alguns, que gravitam em torno de um jogo constante entre personagens que se espelham num jogo permanente de dependência, amor, desejo, ruptura, ódio e luta psicológica.

E porque digo que a imagem dos bonecos no sótão é uma chave importante para se ler a dramaturgia de Degrazia? É que eles entram na história como metáfora importante, pois é preciso não esquecer que tanto “A casa dos impossíveis” quanto as outras dez dramaturgias presentes no livro “A casa dos impossíveis e outras peças” foram escritas entre os anos de 1970 e 1980. Quer dizer, o autor imprime em seus personagens os assombros e as consequências de uma sociedade impactada pelo abuso do poder político imposto pelo Regime Militar.

Os dois personagens cometem um assalto, provavelmente praticado a um banco — portanto, símbolo máximo do capitalismo —, entram numa casa e dela não conseguem mais sair. Estão aprisionados, ainda que voluntariamente. E, na clausura, os anos se passam a ponto de as cédulas roubadas se tornarem inúteis para o sistema financeiro. O dinheiro não tem mais importância como ponto central. Cresce, aos poucos, a imagem recorrente de corpos escondidos. Aumenta, também, a dúvida sobre a existência real desse cemitério de esqueletos empilhados no escuro, no anonimato, no abandono, no deserto de notícias. Surge uma discussão sobre o que é real e o que é imaginário, sobre o que é verdade e o que é mentira, tema que reaparece na dramaturgia “Jornalista sacana e jornalista honesto”.

O próprio autor admite em entrevista que os textos imprimem um sentido de época: “Escritos nos anos 1970 e 1980 esses textos teatrais refletem muito daquela época em que vivíamos sob o autoritarismo e o arbítrio de um regime golpista e violento […]. Acredito que, talvez até infelizmente, esses textos podem ter se tornado novamente expressivos de uma realidade atual. Mas o papel de toda a literatura não é mesmo este? Ser o retrato de momentos sociais e políticos através de personagens e dramas que os representam?”

Se, do ponto de vista formal, as peças de José Eduardo Degrazia não revelam rupturas porque obedecem as estruturas tradicionais do texto dramático, é na força dos temas que esses textos, supostamente marcados no tempo, tomam força e vulto na atual dinâmica social do país. Liberdade sexual, asfixia nas relações amorosas tradicionais, hipocrisias de todos os matizes, defesa de uma sociedade armada, elogio à ditadura e seus horrores, mercantilização do sistema de saúde, notícias falsas, controle induzido da informação, crimes de colarinho branco, alta pilantragem, condição dos artistas, mercado da arte, misoginia, casamentos arranjados por mero interesse e conveniência, conceito duvidoso de cidadão de bem, classe média titubeante, inflação, fome, díade trabalho e capital, dominação da terra, reforma agrária, enfim, todos os personagens das dramaturgias presentes no livro “A casa dos impossíveis e outras peças” estão tomados e perpassados por temas que se impõem hoje, que estão vivos diante de nossos olhos e rasgam nossos cotidianos. E é essa pulsão vibrante e crítica da vida humana que reluz e dá sentido a todas as dramaturgias publicadas pelo autor gaúcho.

A força e a potência temáticas colocam os textos de Degrazia na estante permanente da história, porque, sobretudo, trazem personagens carregados de vida e das questões essenciais de toda e qualquer sociedade. Há quem defenda que a tarefa do teatro e da arte é apresentar questões. Também existe quem diga que cabe ao teatro a tarefa de contar histórias e de abrir as fronteiras internas dos viventes de uma época. Degrazia apresenta indagações e conta histórias; portanto, faz com que seus textos, mesmo tomados por uma certa limitação formal, ganhem força aterradora na atual crise civilizatória em que a sociedade brasileira se encontra.

Uma das perguntas presentes e que Degrazia parece insistir em fazer nas suas dramaturgias é a seguinte: conseguiremos algum dia erigir uma sociedade em que as individualidades sejam suplantadas em prol de uma vida coletiva que leve em consideração as necessidades primárias de todos os viventes? Ele indaga e sugere múltiplas respostas, mas o leitor só descobrirá se enfrentar os dramas, sonhos e as pilhagens dos personagens presentes em “A casa dos impossíveis e outras peças”.

Com linguagens e estruturas simples, praticamente todas as peças trazem personagens presentes no dia a dia de nossas vidas: o jornalista, o poeta, o taxista, o médico, o político, o dono da bodega da esquina, a madame classista e racista, enfim, as dramaturgias funcionam como um espelho social arduamente atual sob o ponto de vista dos temas abordados. O crítico de teatro Antonio Hohlfeldt, com algum desalento, atesta essa atualidade ao dizer que “sim, seria realmente muito bom se eles fossem velhos, como podem parecer. Mas infelizmente eles são absolutamente contemporâneos. Infelizmente”.

É bem verdade que as convulsões sociais pelas quais passamos hoje trazem um novo respiro aos textos, que são nitidamente feitos para indagar, questionar e problematizar o Brasil dos anos de 1970. Também é verdade que, ao ler “A casa dos impossíveis e outras peças”, podemos amargar a constatação ferina de Millôr Fernandes, quando ele diz que “o Brasil tem um enorme passado pela frente”.

Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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