Por Raquel Torres.
A FILA É LONGA
O que justifica alguns países caminharem para atingir imunidade coletiva contra a covid-19 ainda em 2021, se outros 130 ainda não receberam nenhuma dose sequer de vacinas? Desde meados do ano passado temos chamado a atenção por aqui sobre os inúmeros problemas do “nacionalismo da vacina”, mas esse ainda é um debate que desperta muito menos olhares do que o necessário.
Uma boa reportagem da Science dá conta da tragédia que é perder profissionais de saúde proeminentes em países onde eles são escassos. “Trabalhadores de saúde africanos desprotegidos morrem enquanto os países ricos compram vacinas”, diz a manchete. Claro que toda morte é um problema, mas o impacto coletivo é muito maior e mais duradouro em nações como Moçambique, que tem oito médicos para cada 100 mil habitantes – contra 300 nos Estados Unidos ou 240 no Brasil. Os efeitos serão sentidos na saúde pública como um todo. “Vai levar literalmente uma geração inteira para se reerguer”, afirma Ashish Jha, reitor da Escola de Saúde Pública da Brown University.
As vacinas da Covax Facility, que começam a ser distribuídas para dezenas de países na semana que vem, vão ser aplicadas de imediato nesses trabalhadores da linha de frente. Para aumentar a cobertura, países africanos formaram um bloco para aquisição de mais doses por conta própria e esperam conseguir imunizar 35% das populações até o fim deste ano, chegando a 60% no fim de 2022, se tudo der certo. Só que, até lá, os países desenvolvidos já esperam ter imunizado todos os seus habitantes há muito tempo.
Nas Américas, 700 milhões de pessoas precisam ser vacinadas para uma cobertura de 70% da população, segundo a diretora da Organização Panamericana de Saúde (Opas) Carissa F. Etienne. Mas até agora só 63 milhões receberam alguma dose. E, como você pode imaginar, quase todas estão nos Estados Unidos – este é o país que mais aplicou vacinas até agora, com 55 milhões de doses. A China vem em segundo lugar, com 40 milhões, mas o número representa menos de 3% de sua imensa população.
Aliás, ontem os ministros das Relações Exteriores da China e da Índia criticaram os estoques de vacinas, em reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Ambos os países, assim como a Rússia, têm sido centrais para a venda e doação de imunizantes às economias em desenvolvimento, mesmo estando longe de imunizar uma parte grande de suas próprias populações – numa estratégia que tem sido chamada de “diplomacia da vacina“.
PLANO GLOBAL
Ontem o secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu que o G-20 elabore um plano global de vacinação, envolvendo uma força-tarefa para mobilizar farmacêuticas e outras indústrias que possam ser utilizadas. O diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, já havia dito que “o mundo está à beira de um fracasso moral catastrófico” por conta da distribução desigual, mas Guterres frisou a faceta menos ética e mais pragmática do problema: “Se permitimos que o vírus se espalhe como um incêndio no hemisfério sul, ele sofrerá mutações continuamente. As novas variantes poderiam ser mais transmissíveis, mais mortais e, potencialmente, ameaçar a eficácia das vacinas e dos diagnósticos atuais. Isso pode prolongar a pandemia significativamente, permitindo que o vírus volte a assolar o norte do planeta”, disse, referindo-se a uma possibilidade que explicamos aqui.
Tem também os motivos econômicos, sobre os quais sempre vale a pena falar de novo: “Comprar vacinas para o mundo em desenvolvimento não é um ato de generosidade das nações mais ricas do mundo. É um investimento essencial para os governos fazerem se quiserem reviver suas economias domésticas”, disse recentemente John Denton, secretário-geral da Câmara de Comércio Internacional.
Também ontem, o Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos aprovou uma resolução para solicitar a distribuição equitativa das vacinas. No debate, entre reclamações de países caribenhos, o representante interino dos EUA Brad Freden afirmou que o país “entende a gravidade da situação na região” e destacou que Joe Biden priorizou o retorno à OMS. Biden também levou os EUA a finalmente apoiarem a Covax Facility.
FARINHA POUCA
Mas reconhecer a necessidade de que o mundo todo seja vacinado ainda não levou a maior parte das nações ricas a realmente se engajar para mudar o quadro. Já cansamos de ver como elas (com o vergonhoso apoio do Brasil) não admitem a hipótese da quebra temporária de patentes. Quanto a melhorar a distribuição daquilo que já existe, é difícil imaginar que elas possam pensar nisso antes de resolverem seus próprios problemas. Apesar do grande volume de doses distribuídas, os Estados Unidos só conseguiram cobrir 12% de sua população. Sendo um dos locais onde o coronavírus correu mais descontrolado, a imunidade coletiva é agora perseguida avidamente – cerca de 1,7 milhão de doses estão sendo administradas diariamente por lá, e a promessa de Joe Biden é conseguir ter vacina suficiente para a população adulta inteira até o meio do ano.
Os países da União Europeia enfrentam uma lentidão que não se esperava. Tendo começado suas campanhas ainda no fim de dezembro, eles só atingiram de 3% a 4% de suas populações – não muito mais do que o Brasil, onde estamos em cerca de 2,5%. O Canadá é o líder global na compra de vacinas, tendo contratado doses suficientes para vacinar sua população inteira várias vezes – mas em dois meses as doses só chegaram a 3,4% dos habitantes.
Mesmo para quem contratou vacinas com muita antecedência, uma parte grande do problema é a falta de doses. A Pfizer ainda não entregou ao bloco europeu 10 milhões de doses que deveriam ter chegado em dezembro. Há semanas que fábricas europeias dizem estar com problemas na produção, o que afeta as entregas para a União Europeia e o Canadá.
Mesmo os EUA, que têm ficado bem na fila devido ao grande investimento público no desenvolvimento de imunizantes, enfrentam atrasos. A Pfizer e a Moderna deveriam entregar 200 milhões de doses neste primeiro trimestre, mas até agora só enviaram 72 milhões. A Johnson & Johnson (cuja vacina é promissora porque baseada em um regime de dose única, e deve ser aprovada em breve) prometeu 100 milhões de doses aos EUA até junho, mas revelou que por enquanto só tem “alguns” milhões de doses em estoque.
TRIUNFO DOS EMPRESÁRIOS
A Medida Provisória 1026/2021 já era complicadíssima por prever o uso no Brasil, sem aval da Anvisa, de vacinas aprovadas por um amplo rol de agências internacionais – e não necessariamente amparadas por dados de segurança e eficácia. A inclusão da agência indiana no texto beneficia os interessados na compra da Covaxin, vacina que só foi aprovada nesse país e ainda não tem resultados dos testes.
Como se sabe, é o imunizante que empresários e clínicas privadas estão tentando negociar. E o relator da MP na Câmara, Pedro Westphalen (PP-RS), incluiu em seu parecer dispositivos que atendem ainda mais diretamente a esse pleito. “Considero, ainda, que a permissão para que os serviços privados de saúde possam participar do processo de vacinação constitui uma medida hábil a ampliar o poder de administração das doses, no intuito de ampliar a velocidade da imunização”, escreveu ele, lançando mão do argumento falacioso mais utilizado por quem defende a medida.
A contrapartida seria doar apenas 50% das vacinas adquiridas para o SUS. O texto diz ainda que a iniciativa privada teria que cumprir as diretrizes do Plano Nacional de Imunização, ou seja, precisaria respeitar a lista de grupos prioritários. “A aplicação tem que ser dentro do plano de quatro fases do Ministério da Saúde. Se a população de mais de 85 anos estiver sendo vacinada no SUS, a empresa não poderá usar suas doses para vacinar funcionário de 18 anos. Terá que destinar para os funcionários com mais de 85 anos”, disse ele ao Valor, afirmando que “não podemos elitizar esse processo”.
É confuso mas, ao que parece, haveria várias listas prioritárias correndo paralelamente no Brasil: as de cada empresa que contratou doses por conta própria e a do “resto”. Cada uma, portanto, teria sua própria velocidade, já que as firmas não costumam ter muitos idosos com mais de 85 anos em seu quadro de empregados…
A votação no plenário da Câmara está prevista para hoje.
PALAVRAS AO VENTO
“Temos uma previsão fantástica de recebimento de vacinas”, disse Eduardo Pazuello ontem, em reunião com governadores que lhe cobraram um cronograma de entregas. De acordo com ele, o país vai receber 455,9 milhões de doses ao longo deste ano, sendo 231 milhões até julho – “o suficiente para dar tranquilidade de proteção à população”, em suas palavras. A previsão enche os olhos, mas está sujeita a uma porção de condições.
Para começar, ela inclui a entrega de vacinas que ainda não foram contratadas ou aprovadas para uso no Brasil, como a Sputnik V e a Covaxin. Esta última nem tem dados suficientes para aprovação ainda, visto que está em testes. Além disso, Pazuello não põe na conta os constantes atrasos que já aconteceram na entrega tanto dos imunizantes importados como do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), necessário para a produção local.
Para fevereiro, por exemplo, informa a entrega de ao todo 11,3 milhões de doses, sendo 9,3 milhões produzidas pelo Instituto Butantan. Mas o Butantan já disse que não vai entregar tal quantidade: segundo seu diretor Dimas Covas, serão apenas 2,6 milhões nesse prazo.
A pasta ainda dá como “possibilidades” a compra de 40 milhões de vacinas da Pfizer (da qual o governo desdenhou inúmeras vezes) e 17 milhões da Janssen. Como já vimos, ambas as empresas estão com problemas para cumprir os acordos já firmados com outros países.
Apesar disso, a reunião parece ter acalmado um pouco os governadores. Flávio Dino, do Maranhão, saiu mais otimista: “Antes havia trevas absoluto, hoje nós temos uma referência pelo menos para cobrar e nos planejar. Vamos torcer e trabalhar juntos tanto quanto possível pra que isso seja executado. (…) A esperança é muito forte, porque nós estamos num quadro dramático, e o ministro assumiu compromissos por escrito”, disse à CNN.
Em tempo: Pazuello também foi cobrado em relação à habilitação e custeio de leitos de UTI pelo governo federal, que têm sido reduzidos. Ele não ofereceu nenhuma solução clara. Comprometeu-se a financiar os leitos, mas em um modelo “pós-pago” – que ficou sem explicação.
VAI COMEÇAR
Há vários meses se desenrola a polêmica sobre a realização de ensaios de “desafio humano” para avaliar vacinas contra a covid-19. Nesse tipo de teste, os voluntários recebem o imunizante ou o placebo e, em seguida, são expostos propositalmente ao vírus em um ambiente controlado. Isso torna tudo mais rápido, porque não é preciso esperar as pessoas voltarem para casa e eventualmente se infectarem. Mas também mais perigoso, porque todos os participantes entram necessariamente em contato com o patógeno.
Ontem o Reino Unido anunciou a permissão para que esse tipo de ensaio seja conduzido no país. No mês que vem vai acontecer o primeiro experimento, com 90 voluntários saudáveis de 18 a 30 anos. Nesse momento não será testada nenhuma vacina. Todos eles vão ser expostos a uma quantidade pequena do vírus, para os cientistas observarem qual a menor quantidade necessária de SARS-CoV-2 para infectar um indivíduo. Eles também vão ver como o organismo reage e o que afeta a transmissão.
NOVOS TESTES
O presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, disse ontem que a CoronaVac funciona contra duas das novas variantes do coronavírus. “Nós já testamos lá na China essa vacina contra a variante inglesa e contra a variante sul-africana, com bons resultados. Agora nós estamos testando aqui no Butantan contra essa variante de Manaus”, afirmou, sem no entanto dar muitos detalhes. Temos a impressão de que deve se tratar de testes conduzidos em laboratório; se a notícia se confirmar, é ótima.
Foi também com base em experimentos de laboratório que pesquisadores anunciaram ontem a perda de potência da vacina da Pfizer/BioNTech frente à variante identificada na África do Sul. Houve queda bem significativa, de dois terços, no poder de neutralização dos anticorpos.
Esse tipo de ensaio indica como os anticorpos reagem ao vírus, mas só por meio deles não dá para dizer o quanto uma vacina pode proteger pessoas reais.
PRIMEIRA MORTE
Pela primeira vez, foi registrada no Brasil a morte de um paciente que voltou a testar positivo para o SARS-CoV-2 depois de já ter sido diagnosticado um mês antes. Não dá para dizer que tenha sido uma reinfecção porque, no primeiro teste, não houve sequenciamento genômico da amostra, então pode ter sido uma única infecção prolongada que voltou a gerar sintomas.