Entre os dias 22 e 24 de novembro, aconteceu a 16ª cúpula do BRICS, na cidade de Kazan, República do Tartaristão, na Rússia. A expressão BRIC (sem o “S”) surgiu em 2001, a partir de estudo do economista britânico Jim O’Neill, do Goldman Sachs, intitulado “Building Better Global Economic BRICs” (Construindo melhores BRICs econômicos globais) para se referir a Brasil, Rússia, Índia e China. Países com características semelhantes, subdesenvolvidos (chamado de emergentes), com grandes populações, grandes territórios, e matérias-primas em abundância. Em 2006, formou-se um grupo, a partir do conceito, formado por Brasil, Rússia, Índia e China. O primeiro encontro oficial do BRIC aconteceu em junho de 2009, na Rússia. Mais tarde, em 2011, na III reunião de cúpula do grupo, a África do Sul passou a fazer parte, com adição do S na sigla (de South Africa), passando a BRICS.
Em agosto de 2023 foi realizada mais uma expansão do bloco, com o convite de mais seis países, que deveriam se incorporar em janeiro de 2024: Argentina, Arábia Saudita, Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Irã. Posteriormente, com a vitória de Javier Milei nas eleições argentinas, o novo governo anunciou que não ingressaria no bloco. O BRICS mantém um funcionamento informal, não tem documentos constitutivos e, ao que se sabe, não tem fundos que financiem suas atividades. Ou seja, o que mantém a organização é fundamentalmente a vontade política de seus membros. Isso vem mudando com o tempo, a partir da expansão do Bloco, o grau de institucionalização está sofrendo alterações.
O BRICS não constitui também um bloco econômico, como por exemplo, a União Europeia. O grupo é fundamentalmente uma reunião de países que procuram somar forças e defender sua importância geopolítica no mundo e defender sua soberania, contrapondo-se às políticas dos países imperialistas. Um dos seus objetivos centrais é reunir forças para alavancar o desenvolvimento dos países que compõem o bloco, buscando o equilíbrio com o G7 (Grupo dos sete países mais industrializados e desenvolvidos do planeta).
O BRICS promove uma reunião anual entre seus membros, nas quais fazem acordos e definem diretrizes de interesses de todos os participantes, nos campo técnico-científico, político, acadêmico e cultural. A partir de 2014, na Cúpula do BRICS em Fortaleza, Ceará, o Bloco passou a contar com o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, sigla em inglês). O NBD tem o objetivo de financiar o desenvolvimento de projetos que facilitem o desenvolvimento dos países do Bloco e também de outros países subdesenvolvidos, que não estão no bloco. O banco tem sede em Xangai, na China, e mantém escritórios regionais nos demais países do grupo. Cada membro dos primeiros BRICS detém participação igualitária no capital da instituição (de 20%). A presidência é rotativa, ocupada por um dos membros do bloco, com mandato de cinco anos. A partir de 2023 a ex-Presidente Dilma Rousseff foi selecionada para ser a nova Presidente do Banco. Em Kazan o governo da Rússia demonstrou apoio à recondução de Dilma Rousseff para um novo mandato à frente do Banco. O mandato atual de Dilma vai até 6 de julho de 2025.
A importância política e econômica dos BRICS é inegável. Com a composição de países anteriores à última cúpula, o grupo já representava 46% da população e cerca de 37% do PIB mundial, acima do G7, que detém 28% da produção de riqueza mundial. Estão no grupo os dois países mais populosos do mundo, Índia e China, cada um com cerca de 1,4 bilhão de habitantes. No aspecto de dimensões territoriais, compõem o bloco o maior país do mundo (Rússia, com 17,1 milhões de km²), o terceiro maior (China, 9,6 milhões de km²), o quinto (Brasil, com 8,5 milhões de km²) e o sétimo (Índia, 3,2 milhões de km²). Ingressaram recentemente no bloco países como o Irã, que possui uma população de 83,99 milhões de pessoas, igual a 21,7% de toda a população do Oriente Médio.
Uma das características centrais dos membros é serem grandes detentores de recursos naturais, como petróleo, gás natural, minério de ferro, ouro, lítio, água, e outras riquezas. Além disso, esses países contam com milhões de hectares de áreas agricultáveis, sendo grandes produtores de grãos e de proteína animal. Dos cinco maiores produtores agrícolas do mundo (pela ordem, China, EUA, Brasil, Índia e Rússia), quatro compõem o BRICS. No ano passado, Rússia, Irã e China ficaram entre os 5 maiores produtores de gás natural do mundo e Rússia, China, Emirados Árabes Unidos, Irã e Brasil ficaram entre os 10 maiores produtores de petróleo do mundo.
A declaração final do XVI Cúpula do BRICS, chamada de Declaração Kazan, é um documento longo, com 134, itens, que aborda muitos temas. A tônica das resoluções é o apoio e fortalecimento do multilateralismo, visando o desenvolvimento econômico e a segurança global. O documento pede mudanças no sistema financeiro mundial e menciona “instrumentos de pagamento transnacionais mais rápidos, de baixo custo, mais eficientes, transparentes, seguros e inclusivos, baseados no princípio da minimização das barreiras comerciais e do acesso não discriminatório”.
Mesmo que redigida em um tom extremamente moderado e cuidadoso, quase toda a declaração contraria os interesses do imperialismo. Um dos pontos mais críticos, é a proposta de utilização de moedas locais em transações entre os países do BRICS e seus parceiros comerciais. Esse tipo de iniciativa abala diretamente a força que o dólar ainda possui, o que é uma verdadeira declaração de guerra aos EUA. A singularidade do dólar, que é, ao mesmo tempo em que é emitida por um país, servir de referência para o comércio e as transações econômicas, em geral, é um dos principais sustentáculos da dominação do império norte-americano no mundo. Abolir esse sistema, ao mesmo tempo em que é fundamental para o desenvolvimento econômico com segurança, dos países do BRICS, é quase uma sentença de morte para o imperialismo norte-americano. Que já se move, aliás, em meio a inúmeras dificuldades políticas e econômicas.
A histórica Cúpula do BRICS em Kazan ocorreu em um momento em que a situação se radicaliza ao nível mundial. Houve, por exemplo, nos últimos dias um ataque de Israel contra o Irã, o qual, possivelmente, terá uma resposta em breve. A Coreia do Norte está em franca troca de hostilidades com a Coreia do Sul, há as guerras na Ucrânia e no Oriente Médio. Ou seja, a grande contradição do mundo neste momento é justamente aquela em que o BRICS, desejando ou não os seus membros, protagoniza: a luta entre a maioria dos povos do mundo e o imperialismo. O BRICS, evidentemente desempenha um papel importante nesse conflito, principalmente no aspecto econômico. Do ponto de vista militar, por enquanto não, porque o Bloco não tem originalmente esse objetivo. Vale observar que, em face da conjuntura internacional, é muito difícil que o grupo não esteja discutindo, sigilosamente, a possibilidade de uma aliança militar no futuro.
Os BRICS são, sem dúvida, um polo de reunião dos países que resistem às investidas dos países imperialistas, cada vez mais agressivos. Mas, temos que reconhecer que é um bloco que está assentado sobre uma aliança bastante complexa. Os países que compõem o bloco são bastante heterogêneos nos aspectos econômico, cultural, político, social, etc. Há também pontos de divergência entre os membros, como a guerra na Ucrânia, a relação China-Índia (historicamente muito complexa), as divergências sobre a substituição do dólar como moeda preponderante, e assim por diante. Em termos comparativos, a OTAN (Organização dos Países do Tratado do Atlântico Norte) é uma aliança bem mais consistente, bem mais coesa politicamente.
As dificuldades de funcionamento do BRICS ficaram bem evidentes no episódio de veto da participação da Venezuela na aliança, por parte do Brasil. Com argumentos completamente inconsistentes, o governo do Brasil vetou a entrada da Venezuela, que estava sendo cogitada para ingressar no rol de países “parceiros”, ou seja, países que terão uma participação limitada e sem direito a voto, em um primeiro momento. Foram admitidos 13 novos parceiros no BRICS nessa condição: Turquia, Indonésia, Bielorrússia, Cuba, Bolívia, Malásia, Uzbequistão, Cazaquistão, Tailândia, Vietnã, Nigéria, Uganda e Argélia. Com uma lista variada como essa, que tipo de argumento justificaria o veto do Brasil à presença do vizinho sul-americano?
Desconhecemos os bastidores, não sabemos que tipo de pressão levou o governo brasileiro a tomar essa decisão. Mas não há dúvidas de que se trata de uma injustificável submissão aos interesses do imperialismo, especialmente dos EUA. Do ponto de vista econômico a Venezuela é um país suficientemente importante para estar no bloco, a começar pelo fato de que o país detém a maior reserva conhecida de petróleo no mundo. Do ponto de vista político, é conhecido no mundo que a Venezuela é o país que mais realizou eleições nas últimas décadas.
Mas o veto do Brasil tem um significado que extrapola a dimensão exclusivamente econômica. A Venezuela é um país sitiado em todos os aspectos: está sob bloqueio econômico, está cercada militarmente, se encontra assediada politicamente. O dever de qualquer país com um governo democrático, seria o de se colocar ao lado de um país que está sendo atacado pelo imperialismo, de todas as formas possíveis. Não sabemos o que está pode estar motivando o governo brasileiro para a tomada dessa e de outras decisões recentes. Mas o episódio revela um pouco das contradições do BRICS e indica a complexidade do cenário geopolítico que vive o mundo atualmente.
José Álvaro Cardoso é economista do DIEESE em Santa Catarina.
A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.