Por Elissandro Santana, de Porto Seguro, para Desacato.info.
Os modos de produção e de relação com a Terra, desde os primeiros germes do capitalismo, da Primeira Revolução Industrial até a Revolução técnico-científica atual, foram construídos por meio dos pilares da separação do homem com o meio ambiente, do qual também é parte integrante, mas que não se percebe como tal. Nascia a ciência e morria a nossa ligação com o natural. Em meio à necessidade de romper com os paradigmas dos saberes sensíveis, a ciência, cônscia de que estava combatendo um mal, desencadeou outros males e o principal deles foi aquilo que rotulo de insensibilidade do pensar no que tange à Mãe Terra. Empoderou o humano, colocando-o no centro de tudo, e possibilitou o surgimento do demolidor da vida. A partir daí, o fenômeno da extinção se acelerou.
Durante anos, para satisfazer as superficialidades da existência, o homo economicus criou as próprias leis para a legitimidade ética das práticas daninhas e para a suavização das ações de destruição. Em se tratando do homem ocidental, esse se tornou tão cínico que é capaz de comemorar o natal, uma data especial para comunhão com o Cristo no qual acredita com a morte de um peru ou de outro animal qualquer.Essa questão da visão hierárquica do homem no topo entre todos os seres é tão cultural que até aqueles que se dizem libertários, que não professam nenhuma fé também não escapam à filosofia da exploração do outro. Esse é tão somente uma das exemplificações da hipocrisia na qual se instaura o homem que a tudo destrói, mas que constrói as próprias redomas de ilusão para não ter que refletir sobre as realidades por ele criadas e na qual mergulha de cara. E tudo isso de uma forma tão simples, tão natural.
Essa nossa hipocrisia me faz lembrar uma das reflexões que mais me chama a atenção na teoria da complexidade apresentada por Edgar Morin, vive-se de morte e morre-se de vida nas sociedades.
Este mesmo teórico, no livro “O método: a natureza da natureza” faz discussões que nos auxiliam na compreensão do que o homem fez com a natureza, quando ele pontua que desde a origem, a subjugação da natureza retroage de modo complexo sobre o devir da humanidade. A domesticação do fogo domesticou o homem, criando-lhe um lar; barbarizou-o convidando-o a destruir pelo fogo. A subjugação das turbulências e das explosões permitiu civilizar enormes forças motrizes selvagens, aumentou a turbulência explosiva da história humana e criou as condições para uma autodestruição generalizada. A cultura das plantas “culturizou” o homem criando a vida rural e urbana, fê-lo perder a rica cultura arcaica dos caçadores-coletores, nómadas. A subjugação do mundo animal criou os modelos da subjugação do homem pelo homem.
A ciência, é verdade, foi e é essencial para o Planeta, principalmente, depois dos males que ela mesma causou e consolidou, mas ela precisa sensibilizar-se, racionalizar-se sensivelmente. Alguns cientistas já estão nesse caminho, como é o caso de nomes como Fritjof Capra e, principalmente, James Lovelock. A partir de Lovelock, para se ter uma ideia, foi possível compreender a Teoria Gaia, ou seja, do Planeta como um grande organismo inteligente. Outros pensadores já haviam sinalizado isso, mas James nos trouxe isso de uma forma mais palpável, simples e leve, ao alcance de todos.
A ciência teve papel preponderante nesse hiato entre natura-bicho homem ao destruir no ser humano toda a possibilidade de ligação com o meio natural. Para isso, elaborou a concepção do homem sobre todas as coisas e, até certo ponto, encontrou apoio nas principais bases religiosas do mundo ocidental para a consubstanciação do homo economicus inimigo da natureza. As religiões de base cristã, por exemplo, predominantes em sociedades capitalistas, trazem, de forma natural, por meio das subjetividades metafóricas, a retirada da noção de alma dos bichos irracionais para legitimarem a noção do homem como um ser superior, portanto, apto a domá-los e deles se servir. Não é preciso ser muito aguçado cognitivamente para a intelecção dessa premissa. Com isso, não estou menoscabando as religiões, principalmente as cristãs, sobre as quais mais estou apto a tecer algum tipo de crítica, tendo em vista que nasci nesse caldeirão cultural, mas abrindo caminhos de crítica e de pesquisa para compreender os descaminhos trilhados pelo homem rumo à exploração da vida animal e vegetal, causando desordens ecológico-biológicas que comprometem a nossa permanência no Planeta.
Acerca da contribuição da ciência para a morte do homem sensível no tangente à natureza, é possível encontrar uma das respostas em um dos fundadores da Ciência Moderna, Francis Bacon, quando ele, para discorrer sobre a necessidade do dominar a natureza, coloca que a investigação das formas que são (pelo seu princípio e lei) eternas e imóveis constitui a Metafísica. A investigação da causa eficiente, da matéria, do processo latente e do esquematismo latente (que dizem respeito ao curso comum e ordinário da natureza, não a leis fundamentais e eternas) constitui a Física. E a elas subordinam-se duas divisões práticas: à Física, a Mecânica; à Metafísica, a Magia (depois de purificado o nome), em vista das amplas vias que abrem e do maior domínio sobre a natureza que propiciam.
Em pressupostos como o apresentado por Bacon estão assentadas as raízes da naturalização da exploração da natureza e a tudo que dela faz parte.
Durante décadas, o pensamento cartesiano-positivista prevaleceu no fazer ciência. Ainda hoje as universidades do Brasil e do mundo valem-se do método da subjugação da natureza. Quem quiser comprovar isso é só visitar os espaços acadêmicos clássicos como Institutos de Biologia, Faculdades de Nutrição e outros cursos, para perceber que o saber hodierno ainda se constrói em torno da dor de outros seres. Nos laboratórios dos espaços acadêmicos tradicionais, espécies são submetidas à tortura diária e os humanos envolvidos nesse processo acham tudo muito simples, natural. Quem ousa criticá-los ou fazer reflexões nesse sentido é logo rotulado como possuindo mentalidade da Idade Média.
Todas as práticas citadas acima são frutos da dissociação do homem com a natureza e o incrível é que,em meio a toda essa parafernália, a ciência que surgiu, justamente,para destruir o lado místico dos saberes do senso comum alicerçados em crenças e tradições, obteve o apoio dos mercadores da fé que dão sustentação à existência do capitalismo que fomenta a própria ciência. O capitalismo tem seu lado fundamentalista, pois ele cria adeptos, soldados ideológicos, os seres sedentos pela acumulação e pelo empoderamento opressor, pois em toda acumulação de riqueza há exploração do outro e na ciência, tal como vigora, mesmo em pleno século XXI, estão todas as bases da inovação para a transformação dos elementos da natureza em bens e serviços para as sociedades humanas.
Nesse distanciamento, diante da morte do sentimento de não pertença, o homo sapiens sapiens revelou o demensdas cavernas que ainda persiste em nós. Tudo aquilo que não se alicerçasse na égide do racionalismo, deveria ser negado, rechaçado e abolido.À medida que os homens de ciência se solidificaram, a natureza pagou o preço dessa separação. Tudo isso segue em voga, todavia.
Antes da consolidação da ciência, o bicho homem estava atrelado a um universo místico dos sentidos, e quando isso se perdeu, os desequilíbrios começaram a ocorrer. Talvez, nesse ponto da história esteja parte da explicação para o cinismo destruidor da natureza pelas organizações humanas.
Isolado da natura, mesmo nela se construindo e construindo todos os espaços de produção de cultura, de bens, de valores, de ação, de vida e de morte, o projeto capital se consolidou de tal forma nas sociedades humanas que hoje tudo aquilo que represente uma ameaça a esse modelo é negado pelos soldadinhos capitalistas da destruição.
Nas sociedades capitais, a natureza está ao bel-prazer do humano, a ele serve. Nessa relação, as crises se instauram, de existência, de identidade, de conceitos e de valores. Foi a partir dessa visão antropocêntrica que se naturalizou todo o dano de exploração aos outros seres que, assim como o homem, também possuem o direito de existir.
Leonardo Boff, no livro “Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres” informa que a crise de sustentabilidade da vida em nível mundial se agravou de tal forma que nos obriga imediatamente a tomar decisões, mas não de qualquer jeito. Deve ser nos parâmetros de uma nova radicalidade e de um novo paradigma. O imperativo que se anuncia não é de mudar o mundo, mas de conservar o mundo. Ou, talvez, para conservá-lo devamos mudá-lo?
Conforme Boff, o certo é que os prazos se fazem cada vez mais curtos. É como um avião na pista de decolagem. Correndo ele alcança um ponto crítico de no return. Ou levanta voo e segue o seu curso ou não consegue erguer voo e se esborracha nas pedras para além do fim da pista. Há os que dizem: já é tarde demais; a máquina dos meios de produção/destruição está de tal maneira azeitada, que não há como pará-la; vamos ao encontro de um colapso natural do Sistema Terra. Outros são otimistas e dizem: ainda podemos mudar de rumo e confiamos na capacidade de suportabilidade e de regeneração de Gaia. Em meio a esse impasse, se apresentam, atualmente, três cenários possíveis: ou o atual paradigma de sociedade depredadora da natureza continua com o agravamento de todas as contradições sociais ecológicas; ou as sociedades humanas se dão conta do crescente déficit da Terra, que se manifesta pela degradação geral da qualidade de vida, pela injustiça societária e ecológica, pelo crescente aquecimento global, com o risco de, nos meados do século XXI, conhecermos um “aquecimento abrupto” até 5-6 graus que aniquilará grande parte da vida ou a sociedade tem a audácia sábia de iniciar um novo paradigma de relações benevolentes para coma natureza.
Com a revolução tecnológica, o capitalismo que sempre encontra uma forma de se fortalecer vendeu a ideia de que, com a tecnologia, todos os déficits ambientais seriam compensados, mitigados, sanados, resolvidos. Na prática, vimos que esse discurso capital não se concretizou, ficando apenas na promessa. Mitigações ambientais exigem poder capital dentro da lógica imperativa e nem todos os países possuem poder pecuniário para isso.
Uma alternativa para frear a destruição que, em muitos aspectos, já não possui mais volta, é o fortalecimento de um socialismo ecológico, mas isso é utopia no cenário atual onde nem as esquerdas do Brasil e de outras partes do mundo escapam da visão de desenvolvimento a partir do capitalismo. Toda a noção de socialismo atual, infelizmente, em muitas partes da terra, ancora-se no capital e no sistema de lucro a corrupção logo bate à porta.
Feitas todas essas considerações, é oportuno mencionar que a crise ambiental planetária é real e, dessa forma, a sociedade mundial precisa acordar da alienação do consumo na qual se encontra. É chegado o tempo de repensar os modos de produção, os designs relacionais com a terra, pois o capitalismo já provou que é um erro.
Ou encontramos o caminho para a sustentabilidade, que só será possível diante de mentes sustentáveis, ou pereceremos. Enfim, enquanto as arquiteturas mentais societárias estiverem sob a ótica do capital como mola do progresso, da concepção equivocada do crescimento dos produtos internos brutos das nações como reflexo do desenvolvimento, não teremos esperança de futuro, se é que isso ainda é viável, dado que já fomos longe demais.