A mulher que beijou no tribunal o namorado que tentou matá-la ainda é uma vítima?

Nenhuma mulher gosta de apanhar. Nenhuma mulher gosta de levar cinco tiros. Nenhuma mulher gosta de ter que beijar seu assassino no tribunal (Foto: Alvaro Pegoraro/ Folha do Mate)

Por Nathalí Macedo.

Um homem tenta matar a namorada com cinco tiros em praça pública em Venâncio Aires, no Rio Grande do Sul. A justiça brasileira, em um raro lapso de lucidez, trata de pronunciá-lo e o homem vai a Júri Popular (até muito rápido para os padrões do nosso moroso judiciário, vez que o crime ocorreu em agosto do ano passado).

No Tribunal, a mulher beija o réu na frente de todos, inclusive dos jurados. A atitude ajuda a defesa, que consegue dois votos pela absolvição.

Na internet, outros milhões de jurados posicionados não hesitam em julgar a mulher (e não o assassino). “Mulher gosta de apanhar, mesmo”; “Amor bandido”; “Por isso que eu não me meto, depois elas voltam”.

Esta é uma história real, e, embora para muitos seja inacreditável, é para mim o nítido retrato da violência estrutural e cíclica que nos é imposta. O que levou essa mulher a acreditar que cinco tiros podem ser uma prova de amor?

O que pode tê-la convencido de que, independente de qualquer coisa, ela tem por obrigação não apenas continuar a relação, mas expôr-se publicamente para tentar livrar seu assassino da cadeia?

Permitam-me dizer o óbvio: nenhuma mulher gosta de apanhar. Nenhuma mulher gosta de levar cinco tiros. Nenhuma mulher gosta de ter que beijar seu assassino no tribunal.

Culpar uma mulher que reatou com o próprio agressor é fácil e conveniente. Nos dá a impressão de que o problema da violência contra a mulher está resolvido, porque as mulheres QUEREM ser violentadas (leia de novo, também não faz sentido pra mim), e, assim, nos presenteia com o conforto de podermos dormir tranquilos no país que mais mata mulheres no mundo, porque “elas querem assim.”

Só que não.

Acontece que a ideia de amor que é culturalmente transmitida às mulheres não é apenas equivocada, é violenta e cruel. Quem nunca ouviu um “homem é assim mesmo” em casa? Da mãe, da avó, da tia cujo casamento é um verdadeiro castigo?

Desde a mais tenra infância, nos é ensinado que a mulher tem que salvar a relação; a mulher tem que perdoar traição, porque a culpa é do instinto masculino – a carne é fraca e coisa e tal; a mulher tem que relevar violência e relativizar agressão, porque “ele só estava nervoso”; foi só um momento, foi só ciúme, ciúme é isso mesmo, é prova e excesso de amor.

Essa mulher não é apenas vítima de cinco tiros e do julgamento cruel dos internautas. Ela é vítima de toda uma estrutura que a convence de que amor e violência podem andar juntos, e isso é natural.

Ela é vítima de uma família que lhe cobra que tenha um homem para “assumí-la”, ainda que, para isso, ele se sinta no direito de podá-la e violentá-la. Ela é vítima de uma sociedade que chama de “amor bandido” o que é, na verdade, um retrato da dependência emocional para a qual somos adestradas.

O machismo tem muitas faces, e a pior delas se mostra quando as próprias vítimas são convencidas a – aparentemente, e só aparentemente por vontade – violentarem a si próprias.

Essa mulher, com toda a certeza do mundo, não é a única.

Quando estagiária da Defensoria Pública do Estado da Bahia, há alguns anos, vi dezenas de casos parecidos: mulheres violentadas, agredidas e humilhadas que procuravam a justiça e tentavam libertar seus agressores. Porque, para elas, nada mais restava: estavam completamente convencidas de que antes mal-acompanhadas do que sozinhas.

Porque, na cultura do macho provedor, toda casa precisa de um homem, por pior que seja. Toda mulher precisa de um homem, por pior que seja – e precisa, para mantê-lo por perto, aceitar toda sorte de violências. Porque a mulher sábia edifica sua casa.

A nossa luta contra a violência doméstica precisa incluir a luta contra a dependência emocional. A luta contra a ideia de que toda mulher precisa de um homem, de que toda mulher precisa carregar seu casamento nas costas, de que tolerar é a lei de nosso útero.

Não existe mulher machista, assim como não existe preto racista. Preto reproduz contra si e contra os seus o racismo que lhe é estruturalmente ensinado. Mulher reproduz contra si e contra suas irmãs o machismo que lhe é colocado como natural.

Todo o resto é desonestidade e tentativa de relativização da violência.

A opinião do autor/a não necessariamente é a opinião de Desacato. info.

1 COMENTÁRIO

  1. Sou Psicóloga e trabalhei anos com violência doméstica. É um trabalho difícil quebrar essa crença de que o amor vai modificar o agressor. A menina ainda é vítima sim. Não consegue sair desse ciclo de violência porque para ela, a memória do inicio da relação permanece. A Universidade Federal de São Carlos, através de seu laboratório de Análise e Prevenção da Violência, editou uma apostila intitulada Uma Vida Livre de Violência (http://www.laprev.ufscar.br/publicacoes…/apostilas-e-manuais), para aqueles que desejarem entender melhor a dificuldade em se trabalhar com abuso nas relações íntimas e seus ciclos de violência. Sugiro a leitura.

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