Por Raul Longo.
Myltainho sempre teve mania de morar longe. Antes de se tornar um “fugitivo de São Paulo”, como ele mesmo justificava sua mudança para Florianópolis na coluna “Enfermaria” que regularmente publicava pela Caros Amigos, transpirava uma paixão bairrista por Jarinu .
Eu ficava tentando imaginar onde seria aquele lugar mítico, a Macondo do Mylton Severiano da Silva, a quem no abalizado conceito do Ruy Fernando Barboza cabia o título de melhor texto da imprensa brasileira.
Quando aqueles dois monstros sagrados da arte das palavras apareceram aqui em casa, inqueri ao Myltainho sobre sua Shangri-la e só então me convenci da real existência de Jarinu, cidadezinha de uns 20 mil habitantes, numa média de 100 pessoas por km2, ao lado de Jundiaí, ali mesmo no estado de São Paulo.
Passado um tempo o Myltainho reaparece, dessa vez com o Elifas Andreato com quem editava a deliciosa revista de bordo Almanaque do Brasil, distribuída nos voos da TAM. E, volúvel, contou ter trocado o Jarinu pela Costa da Lagoa, aqui mesmo em Florianópolis.
Morri de inveja porque até hoje ainda não me decidi se mais desejaria morar exatamente aqui na Ponta do Sambaqui ou na Costa da Lagoa da Conceição, aonde só se chega depois de 3 horas de caminhada por trilha ou de meia hora ouvindo o tó-tó-tó de motor do barco-ônibus. O problema é que entre um barco e outro o tempo de espera é maior do que o de percurso e não entendia como é que o Myltainho, agitado e nervoso como todo bom paulista, tinha paciência.
“- Aí é que está o segredo!” – explicou: “- Ao invés de fazer yoga, frequentar cursos de meditação e essas coisas todas que me aconselham para conter a ansiedade e manter o controle da pressão arterial; espero o barco.”
Mas quando fui verificar os resultados do radical tratamento assumido pelo ansioso amigo, indagando aos conhecidos lá do isolado povoado, fiquei sabendo ter mesmo andado por ali um sujeito pequeninho, agitadiço, mas muito simpático e perguntador… Porém, já tinha se mudado.
E o pior é que para minha mágoa por não ter me convidado para festa de inauguração de sua casa assim que voltasse de uma viagem à Recife, o Ruy Barbosa também andava sumido. Foi por um telefonema do Myltainho que recebi a trágica notícia de que a festa fora suspensa porque o Ruy interceptara uma bala perdida disparada de um AR-15 na Linha Amarela e estava hospitalizado no Rio de Janeiro.
Depois de longo período de apreensão finalmente o Ruy retornou e nos reunimos todos em sua casa lá na praia da Armação, quando por aqui apareceu outro dos velhos amigos: o Lizoel Costa, músico do Mato Grosso do Sul que integrou o grupo original do “Língua de Trapo” do qual em algum momento Ruy também participou.
Ainda que músicos, todos os integrantes do “Língua” eram jornalistas formados pela Cásper Líbero, a mais antiga faculdade de jornalismo da América Latina, e, evidentemente, o Lizoel ficou maravilhado em conhecer um dos ícones da história da imprensa brasileira.
A última vez que estive com Myltainho foi quando convidei a ele e ao Ruy para uma festa na casa de uns amigos. No meio da festa alguém faz uma referência ao Bar do Tião e como os dois novatos ainda não conheciam o mais importante reduto de música brasileira da cidade, deixamos a festa e fomos pro Monte Verde.
Aqui se faz necessário lembrar que logo que cheguei a Florianópolis fui levado ao Bar do Tião por uma amiga que garantiu, e comprovei, ser reduto de exímios interpretes de preciosas relíquias do samba e do choro. Mas naquele tempo aquilo era bem diferente.
Na verdade, o mesmo bar com cara de botecão: um modesto salão de uns 10 x 7, com mesas indicando os mais variados fornecedores de cerveja, artigo único oferecido na casa, afora a cachaça e um eventual vermute Cinzano ou conhaque Presidente servidos no balcão meio que improvisado no canto direito onde com alguma sorte se poderia adquirir um pastel, coxinha ou qualquer engasga-gato. Além disso tudo, aos fundos o banheiro. Mas eram dois: um para os homens e outro para as mulheres.
E haja homem e mulher! Aquilo enchia todas as sagradas noites de sexta-feira e sábado, no fervor de fiéis que jamais faltavam às missas oficiadas pelo João Batista de Almeida, o Tião, e seu séquito de mestres e pupilos das cordas e sopros.
Tornei-me devoto por muito tempo, mas por essas vicissitudes mundanas acabei me afastando do caminho e agora retornava como um filho pródigo para encontrar o mesmo templo, mas com algumas conspurcações ao culto que já não respeitava os paramentos ritualísticos do Tião que antes não admitia nada elétrico, tudo tinha de ser absolutamente acústico, sem amplificador e nem mesmo microfone.
Do alto de sua severidade a intransigência do Tião não se limitava somente à qualidade musical, se estendia também ao controle do ambiente, pois vez em quando apareciam alguns mais interessados em promover encrenca do que no selecionado repertório da casa.
Naquela noite de meu retorno acompanhado do Myltainho e do Ruy Barboza recém-saído da convalescença depois da longa internação hospitalar e das primeiras de uma série de cirurgias para retirada de todos os materiais infecciosos que lhe foram introduzidos pela bala do fuzil, deixando permanente sequela numa perna imobilizada cujo apoio era parcialmente substituído por uma bengala, o primeiro que senti foi a falta das mesas. Nem mesmo as duas ou três no centro do salão para suster o “molha-garganta” dos músicos enquanto a assistência se distribuía pelas demais, em fervoroso silêncio às preces vibradas no violão 7 cordas do Tião sob o acompanhamento de bandolins, cavaquinhos, flautas e vozes.
O público aumentara tanto que não havia mais espaço sequer para cadeiras e só conseguimos uma por amabilidade de alguém que reconheceu a impossibilidade do Ruy em permanecer de pé.
Depois de acomodar um amigo levei o outro para conhecer o Tião. Nem precisei manifestar meu estranhamento pela novidade do palco ao fundo, com microfones e caixas de som, porque meio constrangido Tião tomou a iniciativa de explicar que não teve jeito, não deu para manter suas preleções porque as coisas ficaram difíceis, a neta (seu maior xodó) estava crescida, precisaram ampliar a moradia aos fundos. Explicações desnecessárias, pois sabia que toda a família sobrevivia do estabelecimento e já calculara que o bar teria de ser mais rentável.
Deixei o Myltainho com o Tião e voltei para o Ruy com quem fiquei apreciando os passos e requebros dos pares mais expressivos. Em que pese a natural vaidade de adorável galanteador, Ruy era alma elevada e se comprazia na alegria alheia. Tudo ia muito bem, mas o tempo passando, passando, e nada do Myltainho retornar da conversa com o Tião a quem procurei com os olhos e foi fácil encontrar porque era um negro alto e grande, forte. Mas Myltainho sumira. Pra onde?… Olhava pra um lado, pro outro… Apesar dos poucos metros quadros do reduzido salão, não conseguia encontrar o Severiano entre aquele mundo de gente.
Reclamei ao Ruy, mas não viu motivo de preocupação: “- Desencana! O Baixinho é assim mesmo! Deve estar de conversa com alguma cabrocha!”
Apesar desse tipo de arrojo ser mais próprio do Ruy do que do Myltainho, ao invés de tranquilizar o comentário só piorou! Na minha responsabilidade de cicerone comecei a imaginar o risco de alguém desentender as constantes e características curiosidades do jornalista. Apesar da educação e elegância quase permanente, quem o conhecia sabia quanto era invocado. Sem violência, claro! Mas, se provocado, ferino e feroz no uso da palavra em resposta a qualquer abuso ou expressa estultícia, naquele ambiente poderia arrumar sérios problemas… E se alguém o convidasse a sair do bar não tinha nenhuma noção de localização ali no bairro do Monte Verde.
Inventei ao Ruy a necessidade de ir ao banheiro e realmente fui, já vasculhando entre a multidão. No banheiro não estava e obrigando-me ao ritmo para atravessar a multidão espremendo-me entre gingados, esquadrinhei metro a metro do salão. Cheguei a subir no palco com a desculpa de cumprimentar os amigos músicos, mas nem de lá consegui divisar Myltainho no meio do povo. Tive ímpeto de anunciar no microfone, mas me contive no receio de uma bronca pelo comportamento de mãe de filho perdido em quermesse.
Perguntei ao Tião que em resposta pediu que voltássemos outro dia porque com o bar em funcionamento não pôde dar atenção ao Myltainho e o volume da música impossibilitou a conversa. Não entendi sobre o que se referia, mas expliquei que não conseguia localizar o amigo e num gesto Tião me fez entender que estaria no meio das pessoas. Foi por onde me meti outra vez, cruzando ao outro extremo do salão para voltar à entrada, imaginando a possibilidade de ter ido tomar um ar.
Nada! Embora não tenha tentado me pareceu evidente que no banheiro das mulheres não estaria e foi o único lugar em que não procurei. Onde o Baixinho se metera? Já totalmente apavorado voltei ao Ruy. Aquele sim, sem sair do lugar já tinha em volta algumas moças e senhoras encantadas com sua conversa sedutora e, displicente, mais uma vez tentou me acalmar: “- Deixe de bobagem, Raul! Myltainho sempre some, mas depois aparece!”
E apareceu mesmo! Eufórico! Realizado, com um caderninho cheio de anotações de toda a história do bar e do Tião. Tudo! De quando o bar foi fundado por ideia e incentivo da Dona Ivonete. De como ela e o Tião se conheceram e se casaram. O namoro, os tempos em que Tião viveu no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Com quem tocou. Os nacionalmente consagrados que já tinham se apresentado no bar. A Mika, neta que mais tarde, depois do falecimento do casal, herdou o bar. Os nomes dos que se apresentavam nas funções de sexta e sábado.
Quando saímos, arrematou como um editor de si mesmo: “- É só vir fotografar que a matéria já está pronta!”
Ali estava a aula do mestre! Não é só saber escrever direitinho, antes de tudo é preciso estar embasado em algo mais do que simpatias pessoais ou “achismos”. E para isso é preciso também saber ser repórter, o que Myltainho era a todo o momento e foi dos melhores.
O contrário disso foi exatamente o erro que cometi, tempos depois, quando li de uma jornalista local que a revista Caros Amigos teria acabado, deixado de existir.
Aquilo me comoveu muito porque o Serjão falecera pouco antes e por sua experiência e conhecimento Myltainho herdou a editoria da revista que tem toda uma significação como projeto editorial dentro do tão debilitado jornalismo brasileiro. Acompanhei a longa história do grupo integrado por vários companheiros desde quando iniciei como colaborador das revistas infantis da Abril, sonhando em um dia chegar a Realidade que, apesar do sucesso junto ao público, o Victor Civita, em conivência com a ditadura, encerrou para lançar a semanal Veja.
Nos inícios dos anos 70 aquilo me foi tão decepcionante que apesar do convite para colaborar também com as revistas femininas, não voltei mais para a Abril. Depois os profissionais da Realidade, Myltainho entre eles, lançaram diversos projetos de publicações de resistência ao oficialismo imposto pelo regime da ditadura militar à imprensa brasileira: Revista Bondinho, A&C Editora, Jornal EX e muitas outras publicações em diversas cidades e regiões do país.
Ainda que por vias transversais também me considero um resultado desses projetos. Foi com aquele pessoal que aprendi a lidar com os poderes regionais e preconceitos provincianos, mantendo convicção na intransigência da idoneidade da informação. E quando li a nota composta com aparente sobriedade por alguém que apesar de não conhecer, levava em conta de ser profissional como a conceituam alguns setores mais sérios da imprensa de Florianópolis, tive de expressar meu lamento. Reproduzi a informação e nunca soube se o Myltainho chegou a ler minha nota distribuída pela internet.
Levei uma merecida bronca do Ruy que telefonou para me chamar a atenção por divulgar aquela mentira num momento em que Myltainho e todos os demais caros amigos enfrentavam dificuldades para regularizar a situação financeira da revista, agravada pelos gastos com a saúde do Serjão.
Depois descobri que a jornalista “matara” a Caros Amigos em irresponsável e inconsequente vingança por alguns administradores terem demitido um seu amigo cujos serviços foram considerados insuficientes ou não correspondentes ao que necessitavam. Soube também que Myltainho não tivera qualquer participação ou influência na tal demissão, mas imagino ter sido dos mais prejudicados pela falsidade na nota. Talvez não, talvez complexo de culpa que pode até ser que nem se justifique, pois difícil avaliar a penetração do que divulguei pela internet.
De certo mesmo é que Myltainho nunca mais me visitou nem mais nos vimos. Ruy procurava me convencer de que não havia qualquer relação entre o sumiço do Severiano e aquela minha divulgação. “- É por causa da mania de sempre ir morar longe. Mudou-se para o Ribeirão da Ilha.”
Santo Antônio de Lisboa, por onde se tem de passar para chegar ao Sambaqui, e o Ribeirão da Ilha, ao sul, são as comunidades mais antigas de Florianópolis, ainda dos tempos da colonização açoriana, quando isso era a ilha do Desterro e nenhum tirano havia imposto seu nome para humilhar revoltosos.
A diferença é que Santo Antonio está a 12 km ao norte do Centro da Ilha e o Ribeirão a 27 kms ao sul. E chegando ao Ribeirão envereda-se muitos kms mais pela estreita Baldicero Filomeno, até chegar à freguesia do Ribeirão com suas casinhas coloniais regularmente pintadas pelos moradores, tornando o bairro – igualmente beira-mar — um agradável passeio cultural. A Freguesia do Ribeirão da Ilha também é caminho obrigatório para quem pretende chegar à decantada praia de Naufragados. A única diferença é o que Sambaqui está há apenas 3 kms de Santo Antonio e Naufragados dista 20 kms da Freguesia do Ribeirão da Ilha e entre uma localidade e outra só há a Caieira da Barra do Sul.
Fui muitas vezes até Ribeirão com intenção de prosseguir até Naufragados, mas nunca consegui cumprir a meta. Costumo culpar o amarrar de conversa com os amigos e a boa cachaça do sertão do Ribeirão da Ilha, mas a verdade é que a Freguesia do Ribeirão já fica tão longe que quando chego ali desisto de seguir em frente. Mas até a Freguesia eu vou e fui para encontrar a casa do Myltainho.
Achei que seria fácil, imaginando que alguém o conheceria e me indicaria a direção, mas nem mesmo o Jayme, neto ou bisneto do senhor Baldicero Filomeno e dono do mais afamado restaurante do Ribeirão, o Ostradamus, conseguiu me dar alguma pista. Só garantiu que alguém com todas as características com que o descrevi não passaria despercebido e decididamente na Freguesia do Ribeirão ele não morava.
Realmente a comunidade da freguesia do Ribeirão da Ilha é ainda menor do que a da Costa da Lagoa que, por sua vez, é infinitamente menor do que a de Jarinu. Portanto, se morasse ali, Myltainho seria identificado. Mais tarde contaram que sua casa estava muito adiante, coisa de no mínimo uns 7 kms à frente, numa esquina pouco antes da estrada virar trilha.
Uns 2 kms à frente daqui de casa a rua também vira trilha, mas fico me perguntando como é que alguém que se esconde em tão longínquas distâncias, além de jornalista competente e responsável consegue produzir tantos livros tão bem embasados como o polêmico “Se liga! – O livro das drogas”, pelo qual foi reconhecido com o Prêmio Jaboti. Escreveu ainda uma biografia do Papa João XXIII e outra sobre seu amigo e escritor João Antônio. Com Palmério Dória escreveu “Honoráveis Bandidos – um retrato do Brasil na era Sarney” e, em 2012, lançou pela Editora Insular daqui de Florianópolis: “Nascidos para perder”, a história da família Mesquita e do jornal O Estado de São Paulo.
Este último foi escrito há muitos anos em parceria com Hamilton Almeida Filho, outro expoente daquela escola de grandes jornalistas da Revista Realidade, também falecido prematuramente, deixando esse enorme buraco, esse vazio no atualmente tão irresponsável e inconsequente jornalismo brasileiro.
Pois no dia 08 passado, o Paulo Polé, outro velho e querido amigo também da Realidade e quem me apresentou ao Myltainho, pelo facebook me escreve um triste lamento. Reconheci perfeitamente o sentimento. Também me senti órfão com o falecimento abrupto do Ruy Barbosa e então contei isso numa crônica.
Não vou dizer se melhores ou piores, se mais honestos ou mais otários, mas é que sobram tão poucos de nossa geração, de nossa escola… Tão poucos que assumam o mesmo significado que a profissão tinha para nós, que por ela sintam o mesmo tipo de respeito e tesão… Tão poucos que a cada vez que perdemos um companheiro, mesmo que nos seja mais novo, nos sentimos órfãos. Eu me sinto cada vez mais solitário.
Ruy já se foi no ano passado e agora é Myltainho que, mais uma vez, mudou pra bem longe. Só que dessa vez o Baixinho foi pra muito longe mesmo! Longe demais…
P.S.: Mylton Severiano da Silva também era sanfoneiro dos bão!