Por Pedro Alexandre Sanches.
Cena 1, sábado, dia 5 de outubro de 2013: no Twitter, a presidenta da república brasileira, Dilma Rousseff, comenta seu apreço pelos dois primeiros volumes da biografia de Getúlio Vargas, escritos pelo jornalista cearense Lira Neto. (Poucos dias antes, em entrevista, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva também havia dito que leu e/ou estava lendo os dois volumes de Getúlio, mais as biografias de Juscelino Kubitschek e do Padre Cícero.)
Cena 2, quarta-feira, dia 3 de julho de 2013: Dilma recebe o cantor e compositor Roberto Carlos reservadamente em Brasília, no contexto de manifestação (bem-sucedida) da classe musical brasileira em prol da aprovaçãoda chamada Lei do Ecad, afinal consumada em 14 de agosto passado. Na rádio BandNews FM, a jornalista Mônica Bergamo descreve o episódio da seguinte maneira: “Roberto pediu um encontro reservado entre ambos para manifestar seu repúdio em relação a qualquer mudança na lei que regula a publicação de biografias no país”.
Nos últimos dias, o grupo Procure Saber (dirigido pela produtora Paula Lavigne, também empresária de Caetano Veloso) avançou sobre o tema das biografias, de modo visível para o grande público. No sábado, 5 de outubro, a Folha de São Paulo noticiou que o Procure Saber, cujo núcleo duro agrupa Roberto, Caetano, Chico Buarque, Djavan, Erasmo Carlos, Gilberto Gil e Milton Nascimento, agora faz lobby em Brasília pela exigência de autorização prévia para a comercialização de livros biográficos.
As posições de Paula, aqui alçada a porta-voz da geração heroica da MPB, constaram de entrevista publicada na mesma edição da Folha. Além disso, ela reagiu de pronto, assinando no mesmo dia um artigo defensivo, de tom jurídico, no jornal O Globo.
Os últimos movimentos dão indicação de que a indústria da música popular, de repente, se insurge contra a indústria literária. Do outro lado da contenda está a Associação Nacional de Editores de Livros (Anel), que luta no Supremo Tribunal Federal com uma ação de inconstitucionalidade contra os artigos 20 e 21 do Código Civil, aqueles mesmos que Roberto Carlos teria pedido a Dilma para proteger e preservar.
Na prática, tais artigos têm atravancado a publicação de quaisquer biografias que não tenham autorização prévia dos focalizados e/ou de seus herdeiros. Essa vertente literária está relativamente inviabilizada no país desde 2006, não exatamente pela existência dos artigos 20 e 21, mas porque àquela altura o corpo jurídico de Roberto Carlos valeu-se deles para obter na Justiça a interdição e o recolhimento da biografia não-autorizada Roberto Carlos em Detalhes, do historiador Paulo Cesar de Araújo. Na ocasião, o pitoresco juiz-fã-cantor Tércio Pires não apenas deu ganho de causa ao “Rei” como o presenteou com um seu CD, gravado sob o pseudônimo de Thé Lopes.
No campo musical, desconhecem-se obras recentes de vulto, salvo a biografia de Tim Maia, escrita pelo jornalista global Nelson Motta, construída sob autorização expressa de todos os herdeiros do músico. Biografias como aquelas lidas e apreciadas por Lula e Dilma são outras prováveis exceções à regra – ou então não versam sobre o universo de interesses do Procure Saber, ao seja, sobre personagens-ícones da música popular brasileira, que, parece, decidiram misturar valores públicos e privados, comerciais e culturais, em benefício de ainda não se sabe exatamente o quê.
Que Roberto Carlos tem afeição pelo lado conservador e pelo controle ilimitado de sua própria história, é fato sabido e documentado. Mas a adesão de nomes como Chico, Caetano, Gil e Milton, escorchados pela perseguição-e-censura oficial nos tempos bicudos da ditadura civil-militar, tem chocado sensibilidades – até mesmo as da Folha, notória propagadora do conceito de “ditabranda”.
Roberto entra na história como eterno e vistoso bode expiatório, mas ele de fato não está sozinho. Senhores progressistas como Gilberto e Francisco têm protagonizado atos variados de interdição em tempos recentes. Inicialmente anunciada para 2009 , uma biografia de Gil assinada pelo jornalista Tom Cardoso foi desautorizada pelo artista e nunca veio à tona. Finalmente, em agosto passado, foi lançado com pompa, na feira comercial-literária Flip, de Paraty, o livro Gilberto Bem Perto, assinado a quatro mãos pela jornalista Regina Zappa com… o próprio Gilberto Gil.
Chico Buarque, por sua vez, tem interditado, entre outros, seu paradigmático texto teatral Roda Viva (1967), tanto para encenação comercial quanto para reedição em livro. Vai além da autocensura: no ano passado, seu séquito abateu-se furiosamente sobre a redação do Estado de São Paulo, quando da publicação de uma reportagem sobre o assunto assinada por este jornalista.
A atual disputa encampada pelo Procure Saber começou a sair do armário na quinta-feira, dia 4, provavelmente já como reação à reportagem que a Folha publicaria no dia seguinte. Ancelmo Góis, colunista d’O Globo que costuma dar vazão a interesses da MPB e do Ecad, apelidou o embate de “Lei Roberto Carlos” e deu voz a um ataque de Djavan ao comércio das biografias no Brasil. “A liberdade de expressão, sob qualquer circunstância, precisa ser preservada. Ponto”, afirmava o texto do artista publicado pelo colunista, antes de abrir uma grande vírgula onde se esperaria um ponto final.
Em retórica de autovitimização muito em voga na política destes dias (vide os discursos de Marina Silva diante da não-obtenção de registro para seu partido), Djavan ecoou as vozes do Procure Saber e cravou: “Editores e biógrafos ganham fortunas enquanto aos biografados resta o ônus do sofrimento e daindignação“. Os jornalistas Kiko Nogueira, Luiz Fernando Vianna, André Barcinski e João Máximo dispararam avaliações coalhadas de críticas, nos três últimos casos apontadas especialmente para Djavan.
É importante que o leitor entenda o contexto: Vianna, Barcinski e Máximo, além deste que aqui escreve, são autores de livros que versam sobre figuras importantes da cultura nacional. A indignação, portanto, se refere à tentativa dos artistas em privatizar as próprias histórias vividas publicamente, mas também reflete contrariedade com a mordaça pregada pela elite MPB. Seja como for, a fala de Djavan, provavelmente correspondente à do grupo todo, de fato pintou um retrato irreal, de biógrafos milionários que sugam a alma de artistas pobres e indefesos.
Do catálogo literário brasileiro recente, não constam biografias musicais best-seller, à possível exceção do dócil livro de Nelson Motta sobre Tim Maia. Novamente, trata-se de um discurso que caberia com mais folga na boca de Roberto Carlos (ou de seu empresário, Dody Sirena,) que dos progressistas Djavan, Chico, Gil e Caetano.
Em diálogo travado via Twitter com este repórter, no domingo ,dia 6, Paula Lavigne expôs algumas de suas posições sobre a questão:
Embora cite os interesses sempre marginalizados de Mano Brown e Racionais MC’s para sustentar a argumentação pró-controle, o caso parece se localizar em outra esfera, na qual se enxergam (mas não se leem) biografias como as que Roberto e Gil conseguiram sustar, movidos mais por interesses econômicos que de natureza ética ou estética (o processo de Roberto contra Paulo Cesar de Araújo, por exemplo, referia-se explicitamente ao prejuízo que o artista sofreria no Natal daquele ano ao ver seu disco concorrendo nas lojas com o trabalho biográfico de um terceiro).
Os escritores de livros ofereceram um contraponto importante na 16ª Bienal do Livro do Rio, ocorrida no mês passado. Nela, autores capitaneados por Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro, Luis Fernando Veríssimo e o biógrafo Ruy Castro divulgaram um manifesto contra qualquer limitação da livre produção de literatura biográfica por pressão de figuras públicas interessadas.
Um parágrafo do manifesto é especialmente eloquente: “O Brasil é a únicagrande democracia na qual a publicação de biografias de personalidades públicas depende de prévia autorização do biografado. Um país que só permite a circulação de biografias autorizadas reduz a sua historiografia à versão dos protagonistas da vida política, econômica, social e artística. Uma espécie de monopólio da história, típico de regimes totalitários“.
Quem fala em nome dos autores na reportagem da Folha é Lira Neto, o autor das biografias de Getúlio Vargas e Padre Cícero lidas pelo ex-presidente Lula (além de uma sobre a cantora e compositora Maysa). A fala do biógrafo vai na mesma linha do manifesto de setembro, mas mira diretamente nos senhores da velha MPB: “Biógrafos e jornalistas têm o dever de contar a história do país e de suas personalidades públicas, inclusive expondo suas contradições. Os artistas estão defendendo algo obscurantista, a biografia chapa-branca“.
O Ministério da Cultura de Marta Suplicy, que vem se colando à visibilidade do grupo Procure Saber em casos como a Lei do Ecad e a PEC da Música, ainda não apareceu nitidamente na batalha da “Lei Roberto Carlos”. O xadrez é intrincado. Desautorizar o afobamento privatista do Procure Saber poderá gerar inimizades na MPB. Colocar-se a favor da propaganda privatista poderá causar efeito parecido no meio literário – e entre aqueles que prezam maiores liberdades, em vez de menores.
Quanto à presidenta Dilma Rousseff, mencionada no início deste texto, o xadrez é ainda mais complexo, e incorpora temas ainda mais candentes, como o marco civil da internet e a espionagem generalizada praticada por Estados Unidos e asseclas. No sábado, via Twitter, Dilma entrelaçou aquele elogio à biografia de Getúlio a comentários a respeito desses outros espinheiros (para ler na sequência, comece de baixo para cima):
Ainda no Twitter, Dilma voltou ao assunto na manhã da segunda-feira, 7, agora citando também o norte-americano Edward Snowden entre aqueles que costumam se debruçar sobre fatos de divulgação indesejada por figuras públicas e seus aparelhos repressivos. No caso específico da “Lei Roberto Carlos”, a presidenta terá de certificar nos próximos dias se zela pela liberdade de todos os brasileiros, e não de alguns particulares felizardos.
Fonte: Farofafá