Por Rafael Siqueira de Guimarães, Ilhéus, para Desacato.info
Revisado por Elissandro dos Santos Santana.
A propaganda oficial da contrarreforma do Ensino Médio na televisão e no site do Ministério da Educação é uma manipulação discursiva terrível que desconsidera as lutas que se construíram depois de mais de um mês de sua publicação (e todas as lutas que a precederam nos últimos anos, tanto de estudantes como de profissionais da Educação, intelectuais e movimentos sociais). Estudantes secundaristas iniciaram no Paraná, seguindo para o restante do país, seu descontentamento sobre a medida, que não fora discutida com as principais pessoas interessadas: estudantes, profissionais e especialistas em Educação.
Fui professor de “Psicologia da Comunicação” no Curso de Publicidade e Propaganda e uma pergunta que me era feita, logo no primeiro dia de aula, era: “professor, vamos aprender a persuadir consumidores?”. “Pois, olhe…”, eu dizia. Sempre fiz meu trabalho crítico de desconstruir a ideia de que uma pessoa da publicidade trabalha para uma empresa, mas trabalha para a sociedade, e isso inclui sua própria ética no trabalho e seu exercício de cidadania. Pelo que vemos nas campanhas publicitárias em geral, parece que as formações têm se preocupado mais com as “técnicas de convencimento”, que têm sido utilizadas das formas mais horrorosas.
De todo jeito, mais que uma empresa privada, utilizar técnicas persuasivas é pior ainda que o poder público as utilize. Como a propaganda é a “alma do negócio” e isso já ficou provado na propaganda de Joseph Goebbels, a desqualificação, vulgarização, disseminação e provocação que atinge todo o movimento estudantil, une-se, na propaganda oficial do MEC sobre a MP 746, a uma sala de aula limpa, organizada e favorável, de um Ensino Médio dos sonhos. Um Ensino Médio dos sonhos e favorável à “flexibilização” proposta pela MP 746!
É interessantíssimo como a propaganda oficial parece convidar a uma discussão. Uma discussão sobre o Ensino Médio? Sabemos que esta Medida está sendo instaurada para um debate sem Audiências Públicas, sem uma discussão ampla, e a obriga que seja avaliada, pelo Senado, em 120 dias. A peça televisiva convida ao debate. Pergunto-me: qual debate? Em que lugar? Neste lugar em que se vulgariza o movimento de estudantes, que hoje ocupa escolas, descontente com a forma com que esta proposta foi colocada? Nesse mesmo lugar que programaticamente se criminaliza estudantes que teriam “atrapalhado” a realização do ENEM?
A publicidade oficial cria um cenário em que parece que o governo se propõe a um diálogo, quando, na realidade, impetrou uma medida provisória, um instrumento jurídico que deve ser utilizado quando há urgência. A urgência da Educação é eminente, mas torna-se nítido que aqui se trata de uma urgência da implementação de uma reforma que retroage aos tempos da educação tecnicista, já que a “flexibilização”, especialmente com o retorno da educação profissional, é o grande mote. Uma educação profissional da obrigatoriedade da língua inglesa, quando temos todos os vizinhos hispano-falantes; educação profissional que deixa para cada ente da federação a escolha das matérias que comporão o currículo básico (de obrigatório, só Língua Portuguesa e Matemática!); educação profissional que busca o desenvolvimento de habilidades de pessoas trabalhadoras para ocuparem cargos com especificidade técnica, uma nova formação da mão de obra para o trabalho operacional.
A propaganda oficial apresenta a flexibilização como algo produtivo, como possibilidade de escolha de cada estudante. A propaganda oficial se esquece de dizer que serão os Estados que escolherão as ênfases curriculares destes itinerários. A contrarreforma se baseia num processo já de construção do BNCC que, sabemos, é protagonizado por organizações estrangeiras, interessadas no nosso espaço educativo como negócio. Como se já não bastasse a ocupação de todo o espaço da educação privada, estas organizações estão interessadas em comandar a educação pública.
A peça publicitária televisiva possui cara de empresa. A cara da escolha, do consumo, da competitividade. A cara do desenvolvimento e do poder de compra. A propaganda oficial vende o sonho capitalista, trabalha no sentido da captura das subjetividades dos jovens que podem ser vencedores. Parece propaganda de qualquer produto de empresa destinada a transformação de uma pessoa a alguém com um destino vencedor.
Há um evidente silenciamento do que é a escola pública, do que ela representa para as comunidades, por quem é construída, em suas lutas, reXistências, disputas de narrativas, apresenta uma escola idílica, na qual se chega podendo escolher seu itinerário. É o velho sonho do sujeito da modernidade, dono de seu destino, de sua obra, que vai comprar, agora, em um supermercado de possibilidades, sua formação. Ainda me ocupo de esperança quando sei que, nesta disputa de narrativas, uma primavera estudantil acontece nas auroras de tantos dias, segue firme espalhando o que esta contrarreforma significa para o desmonte da escola pública e da ideia de educação cidadã que conhecemos que, apesar de todas as dificuldades, permanece como utopia para estudantes, educadoras e educadores.
É sobre isso que se fala; é sobre as maquinarias hegemônicas e como nos faz lembrar Suely Rolnik, desta maquinaria que coloniza nosso inconsciente. Mas se fala da voz e da vez de estudantes, alertas a essa colonização, que questionam o lugar do trabalho, do mercado e dos próprios sentidos do que é Educação Básica. E que, por isso, criaram outras estratégias que não aceitam a conciliação com este projeto de flexibilização.
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Rafael Siqueira de Guimarães é performer, psicólogo e doutor em Sociologia. Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB.
Imagem: Homoliteratus.com