A motosserra de Milei pode devastar a economia argentina. Por José Álvaro Cardoso.

Foto: Tomás Cuesta/Getty Images

Por José Álvaro Cardoso.

As primeiras medidas anunciadas pelo governo de Javier Milei caracterizam um típico ajuste de caráter ortodoxo, baseado em um diagnóstico monetarista do problema inflacionário, cuja prescrição já fracassou várias vezes na Argentina. O ministro da economia, Luis “Toto” Caputo, é um neoliberal ortodoxo, que está tentando agora uma estratégia que nunca funcionou, inclusive recentemente na gestão de Maurício Macri, entre 2015 e 2019. Caputo e sua equipe são originários do sistema financeiro, especialistas em mercados voláteis, mas com muitas dificuldades em compreender o que ocorre na economia real, no cotidiano das famílias trabalhadoras argentinas. As primeiras medidas anunciadas, refletem essas limitações:

1. Não renovar contratos de trabalho do Estado que tenham menos de 1 ano de vigência – isso significa demissões em massa no setor público;

2. Suspender a publicidade institucional do governo federal por 1 ano;

3. Reduzir os ministérios de 18 para 9 e as secretarias de 106 para 54, diminuindo os cargos comissionados;

4. Diminuir ao mínimo as transferências discricionárias às províncias – trata-se das transferências negociadas, não obrigatórias;

5. Suspender novas licitações de obras públicas e cancelar as licitações aprovadas cujo desenvolvimento ainda não tenha sido iniciado;

6. Reduzir os subsídios à energia e aos transportes, e em particular na Região Metropolitana de Buenos Aires;

7. Manter os planos de assistência social do programa Potenciar Trabajo, de acordo com o estabelecido no Orçamento 2023 – esse benefício consiste em um pagamento em troca do cumprimento de uma compensação, que pode ser a participação em atividades socioprodutivas, socio laborais e/ou socio comunitárias, ou terminar a escola;

8. Estabelecer a taxa de câmbio oficial do dólar em 800 pesos (o que representa uma desvalorização da moeda argentina de mais de 100%);

9. Substituir o sistema de licenças de importação por um sistema estatístico e de informação que não exija a aprovação de licenças prévias;

10. Duplicar a assistência a famílias através do Abono Universal por Criança e aumentar o cartão alimentação em 50%.

As medidas conformam uma estratégia baseada em um diagnóstico monetarista, que, historicamente, tem se mostrado equivocado, para o caso da Argentina (e do mundo). Por esse diagnóstico a inflação seria um problema fundamentalmente decorrente do déficit público. Como o governo gasta mais do que arrecada, é forçado a financiar o déficit através de emissão de moeda, o que causaria a inflação. É um típico diagnóstico monetarista, muito funcional aos interesses dos bancos e do grande capital em geral.

As primeiras medidas abandonam, de saída, três eixos centrais do discurso de campanha de Milei para a presidência: a) dolarização da economia; b) Fim do Banco Central; c) Jogar o peso do ajuste nas costas da “casta” econômica e política. Esses, que são os eixos centrais da campanha de Milei, foram rapidamente esquecidos, em nome de um pragmatismo ultra neoliberal já bastante conhecido dos argentinos. A juventude que votou em massa em Milei, visando impor perdas à “la casta”, conforme promessa do candidato, está assistindo neste momento, a uma escalada rumo à hiperinflação, e a uma transferência relâmpago de renda dos mais pobres, para a casta formada pelos grandes exportadores, especialmente os de commodities agrícolas, da chamada “pampa úmida”.

As medidas anunciadas têm um outro eixo fundamental que é a liquidificação dos gastos públicos: o governo fala em reduzir imediatamente 5 pontos percentuais do produto interno bruto (PIB) em gastos públicos. Esse objetivo será alcançado principalmente pelas demissões em massa no setor público, pela suspensão das obras públicas, pelo fim dos subsídios à energia e aos transportes. Essas medidas, que entre as 10 anunciadas, são as que podem efetivamente reduzir gastos públicos, atingem em cheio a vida dos trabalhadores e da classe média.

O pacote de medidas, pelo caráter recessivo e concentrador de riqueza, remete a planos anteriores, de triste recordação, como os Martínez de Hoz, Domingo Cavallo e o próprio Luis Caputo, este mais recente. Mas o plano de Milei tem uma característica que o diferencia de todos os anteriores: não há nenhuma compensação, nem mesmo paliativa, para os trabalhadores e os mais pobres. Os preços estão em uma espiral hiperinflacionária, com remarcações diuturnas, e salários e aposentadorias estão congelados. O que claramente, coloca a possibilidade de, em poucos dias, a parte da população que estava conseguindo se alimentar – apesar de uma inflação anual de quase 150% – começar a passar fome. Quando há um processo de inflação alta com correção salarial periódica, os salários sobem de escada e os preços sobem de elevador, como vinha ocorrendo no governo de Alberto Fernandez. Agora a situação é distinta: os salários estão congelados e os preços dispararam (a cada dia, preços novos, para salários velhos, na expressão do ex-secretário de comércio interno, Guillerme Moreno).

Os eixos do pacote foram fundamentalmente a desvalorização cambial e ajuste fiscal. O câmbio oficial passou de 400 pesos por dólar para 800 pesos em um dia. A estratégia foi manejar gastos públicos e câmbio, fazendo os demais indicadores correr atrás do prejuízo. Além da concepção econômica central por detrás do pacote, de que o governo gasta mais do que arrecada e financia isso com emissão de moeda, há uma visão da equipe de governo de que vigora na Argentina e no mundo o livre mercado. Ou seja, a economia funcionaria através da livre concorrência entre pessoas físicas, em relações microeconômicas, de livre concorrência. Seria uma economia na qual não existe monopólios e oligopólios, e nem a intervenção do Estado, este estabelecendo marcos para a economia com gastos públicos, e políticas monetária e cambial. Milei, quando defendeu tantas vezes o fim do Estado e da moeda nacional, claramente se reportava a uma economia imaginária, do século XVIII, na qual não existiam grandes empresas monopolistas.

Nesse contexto, a ministra das Relações Exteriores da Argentina, Diana Mondino, indagada sobre o que a população poderia fazer, já que os preços dos produtos básicos estão sendo remarcados mais de uma vez por dia, respondeu que os consumidores deveriam não comprar os produtos, forçando assim a baixa dos preços. Vale observar que se redução de poder de compra da população controlasse a inflação, a Argentina teria inflação muito baixa, já que salários e aposentadorais vêm caindo em termos reais nos últimos 8 anos, pelo menos.

Todos os preços foram desregulamentados, o programa de subsídios aos alimentos, foi liquidado nas primeiras horas do novo governo. Produtos essenciais como azeite, macarrão, farinha, pão e leite, chegaram a aumentar 80% na primeira semana da improvisada gestão. A carne, que é uma espécie de sinalizador do comportamento de preços da cesta básica, chegou a aumentar 60% ou 70%, o que significa, praticamente, a impossibilidade de os trabalhadores adquirirem o produto. Os combustíveis, em quatro dias, acumularam aumentos de 30% e 37%, o que causou pânico na população. Muitos supermercados deixaram de exibir os preços nas gôndolas, para poderem remarcar uma ou mais vezes no dia.

O pacote visou provocar uma brutal recessão, objetivando (ao que parece) fazer os preços cederem. Diminuição de gastos públicos, redução de salários reais, redução draconiana de investimentos públicos, demissões, é uma combinação que leva inevitavelmente à redução do tamanho da economia. O pacote é também tremendamente regressivo, porque o conjunto das medidas retira renda dos trabalhadores, profissionais liberais e aposentados, e aumentou imediatamente o lucro dos grandes capitalistas, especialmente os exportadores de commodities. Os profissionais liberais não conseguirão reajustar o preço dos seus serviços. Aposentados e pensionistas deixarão de receber bônus a partir de janeiro, um mecanismo para compensar as perdas inflacionárias, correspondente a 1/3 das aposentadorias, em média. Ademais, o governo já anunciou que não haverá reajuste das aposentadorias e pensões, pela inflação. Esses rendimentos estão desindexados.

A forma de transferência de renda para o grande capital se dará basicamente via preços dos bens e serviços, que não terão, a partir de agora, qualquer tipo de regulação ou controle. Os beneficiários do pacote são dois principais: os exportadores, especialmente do setor agrícola; os credores do governo, que emprestaram dinheiro, sejam em dólares, seja em pesos indexados.

A cesta básica de alimentos, que em última análise é o que importa para os trabalhadores e para os pobres, está aumentando a preços dolarizados. O aumento do cartão alimentação em 50%, previsto no pacote, não vai dar nem para a saída, já que os preços estão liberados, e os alimentos básicos se guiam pela variação do dólar. A Argentina hoje tem mais de 40% na condição de pobreza, são cerca de 18 milhões de pessoas, em uma população de 45,81 milhões. Porém, apenas 4,1 milhões de pessoas recebem o cartão alimentar.

O preço dos derivados do petróleo (óleo, gasolina, gás) quase duplicou na primeira semana de governo, com dois aumentos, de 30% e 37%, como vimos. O fim dos subsídios do transporte público e o aumento dos preços, vai afetar diretamente os trabalhadores e a classe média, que depende de transporte coletivo.

Hoje o problema mais importante que tem a Argentina é a dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI), feita por Maurício Macri, chefe do ministro da economia e ministro das sombras de Javier Milei. Além da dívida de US$ 44 bilhões, o governo está sem reservas para pagar importações. Segundo os dados da imprensa a Argentina está devendo US$ 66 bilhões de importações, uma vez e meia a dívida com o Fundo.

Antes do pacote de Milei, os exportadores recebiam por dólar exportado, 650 pesos, um cálculo no qual recebiam a metade pelo câmbio oficial (400 pesos) e a metade com um câmbio de 900 pesos, perfazendo uma média de 650 pesos. Com o pacote, irão receber quase 900 pesos por dólar, um aumento de quase 40% numa pancada só. É uma transferência brutal de recursos para os grandes grupos exportadores, que são os amigos de Caputo e Macri (se não for levado em conta os “negócios da burguesia”, não se consegue compreender as políticas econômicas).

Milei, que na campanha afirmou que “cortaria um braço” se, como presidente aumentasse impostos, elevou o imposto sobre as importações de 7,5% para 17,5%. Isso significa na veia porque os produtos do país, na agricultura e na indústria, dependem de inúmeros insumos importados. Esse aumento de preços já está sendo repassado ao consumidor (este é uma “espécie em extinção”). O conjunto de medidas traz um tópico que denuncia as verdadeiras intenções do governo: subiu o imposto sobre as exportações de 0% a 15%, porém apenas para as exportações não agrárias. Ou seja, se a exportação for industrial o imposto sobe, o que é um evidente incentivo para as exportações de commodities. É um gatilho adicional para a desindustrialização da economia.

Esse é um ajuste tradicional, que o FMI sempre manda os países endividados colocarem em prática, e que está sendo radicalizado na experiência do país vizinho. Essa fórmula, como já ocorreu em outras partes do mundo e na própria Argentina, vai destruir o mercado consumidor interno e engrossar o exército de pobres existente no país. A existência de uma ampla classe média na Argentina decorre dos avanços da luta social na Argentina. Comprimir a classe média, colocando uma grande parte desta na pobreza, é uma forma de derrotar o projeto de um país forte, com mercado consumidor interno robusto, com indústria, com produção de valor agregado.

Esse programa de Milei não tem comparação na história da América Latina, nem mesmo com o caso chileno. A comparação, por exemplo, com as medidas de Martinez de Hoz (ministro da economia entre 1976 e 1981, portanto ministro da ditadura sanguinária da Argentina), tem que ser relativizada porque, dentre outras coisas, Martinez de Hoz ampliou o papel do Estado, com novas estatais e investimentos públicos. O governo de Milei pretende encaminhar a privatização de todas as estatais, inclusive a do petróleo.

A Argentina está sendo o laboratório de um experimento inusitado: um ultra neoliberalismo, misturado com inexperiência e loucura. O processo na Argentina está levando à desorganização da estrutura produtiva e de distribuição da economia argentina. E a um grande sofrimento da população porque boa parte dela já não tem dinheiro para comprar comida. Macro desvalorização cambial (esta e a terceira mais importante na história do país) é como jogar fogo na gasolina de aumento dos preços.

Mesmo que tudo isso fosse pouco, há um indicador definitivo de que o pacote é horrível para 99% da população argentina: o FMI e os bancos estão aplaudindo e comemorando as medidas. Os grandes bancos e especuladores saudaram a elevação dos preços dos títulos públicos argentinos e altos funcionários do Tesouro dos EUA visitaram o país. Devemos desejar sorte e prestar solidariedade ao povo argentino. E saber que, se esse pacote passar na Argentina, sem reação da população (o que é muito difícil de acontecer) ele pode se tornar um novo paradigma de ajuste na América Latina.

José Álvaro Cardoso é ecomista e coordenador do DIEESE/SC.

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