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A pescadora Maria Marcela Andrade da Silva, 40, guarda na memória o dia 30 de março de 2012 como um dos mais trágicos. Naquela data, as turbinas da usina de Santo Antônio foram definitivamente ativadas e um divisor de águas, literalmente, atravessou a vida às margens do rio Madeira. A barragem construída estrategicamente para aproveitar a força das quedas da Cachoeira do Teotônio forçou moradores a deixarem suas casas para afundar um cenário que lembra dias de fartura.
As promessas de desenvolvimento nunca se confirmaram para as comunidades locais afetadas pela usina de Santo Antônio. O peixe, que na piracema fazia um show à parte vencendo a força das águas rio acima, de onde a maioria tirava o sustento, sumiu junto com a cachoeira.
“O lugar onde vivíamos era lindo, tinha fartura de peixe, muitos turistas, e tudo isso simplesmente desapareceu”, lamenta Marcela, que foi reassentada com centenas de famílias na chamada Vila Nova Teotônio, às margens de um rio Madeira que ela não reconhece mais.
Todas as tentativas de manter a vida comunitária foram frustradas. Os tanques para criação de peixes, que seria uma alternativa econômica, nunca funcionaram, e os deques e quiosques na praia criada no reservatório da usina estão abandonados.
Com grandes barragens de usinas, garimpos e muitas cidades ao longo de seus 3.315 km, entre Rondônia e o Amazonas, o rio Madeira corre risco de um colapso que pode impactar toda bacia do Amazonas.
Um levantamento inédito do projeto Aquazônia, que lançou um indicador para medir o Índice de Impacto nas Águas da Amazônia (IIAA), mostra que a bacia do Madeira é uma das mais afetadas pela ação humana na Amazônia.
“Um rio não deve ser considerado saudável somente pela qualidade da água. Outros fatores como queimadas, desmatamento e a mudança na dinâmica do fluxo das águas têm influência sobre esses ecossistemas. São impactos difíceis de medir e muitas vezes silenciosos”, explica a bióloga Cecília Gontijo Leal, da Universidade de São Paulo (USP) e consultora científica do Aquazônia.
O projeto mapeou 11.216 microbacias na área de influência de 26 rios, atribuindo a cada microbacia um indicador sobre a presença de atividades com impactos sobre a vida dos rios, como barragens hidrelétricas, garimpo, agropecuária, cruzamentos de vias, mudanças climáticas, hidrovias e áreas degradadas.
O Madeira é impactado por todos os indicadores do IIAA, sendo que 86% da bacia é afetada pela presença de agricultura e pecuária, 41% por mineração e garimpo e 41% por áreas degradadas. O cruzamento de estradas por rios e igarapés atinge 28% da bacia do Madeira, com uma média de três cruzamentos por km².
Cada uma das atividades medidas têm um peso sobre o indicador, sendo que as hidrelétricas, o garimpo e as áreas urbanas, por exemplo, têm maior grau de degradação. Leal explica que o índice serve como um resumo dos diferentes impactos em cada uma das microbacias.
“Muitas dessas atividades ocorrem ao mesmo tempo numa mesma região, gerando um efeito cumulativo. Uma atividade de impacto abre caminho para outras igualmente nocivas. As hidrelétricas impulsionam o desmatamento, que por sua vez permite aberturas de estradas e de áreas agrícolas” , destaca a bióloga.
Leal comenta que comumente as legislações e os estudos de impacto ambientais costumam enxergar os ecossistemas aquáticos apenas como recurso natural disponível, o que impede a análise de aspectos mais amplos, como a biodiversidade.
O projeto Aquazônia, desenvolvido pela Ambiental Media com apoio do Instituto Serrapilheira, aponta que um quinto das microbacias hidrográficas da Amazônia brasileira estão significativamente impactadas pela ação humana. A agropecuária é a atividade mais presente, com impactos identificados em 90% da bacia amazônica.
“Há toda uma conexão dos ciclos de vida no rio. Os corações dos sistemas aquáticos são os fluxos, as cheias, as secas, a matéria orgânica que vem das árvores nos igarapés. As espécies entendem esses sinais e a partir deles que muitas migram, ou emigraram. O impacto das hidrelétricas é muito drástico porque muda completamente o cerne do rio ”, revela a bióloga Cecília Leal.
O rio Madeira é formado pela junção de dois grandes complexos fluviais: o Guaporé/Mamoré e o Beni/Madre de Diós, formados nos Andes. O rio Guaporé nasce no sudeste mato-grossense e o rio Mamoré se forma a partir do encontro dos rios Chaparé, Ichilo e Grande, nas terras baixas bolivianas.
Vídeo histórico mostra como era a pesca e o lazer na Cachoeira Teotônio, que foi submersa pela barragem da hidrelétrica Santo Antonio, em Porto Velho.
Hidrelétricas podem decretar a morte do Madeira
Mário Ferreira dos Santos, 63 anos, não encontra mais a dourada (cientificamente conhecida como Brachyplatystoma rousseauxii) como antes. A espécie de bagre que faz a maior rota migratória de um peixe de água doce para depositar os ovos no sopé dos Andes, onde nasce o Madeira, “não existe mais como antes”, garante o pescador.
“Hoje não dá nem para dizer que somos pescadores, o que pegamos mal dá para comer”, reclama. A comunidade pesqueira espera uma alternativa para a atividade econômica prometida há quase dez anos.
O biólogo Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), classifica as barragens de hidrelétricas como o maior fator de risco para o rio Madeira, principalmente, por impedirem o transporte de sedimentos que vêm dos Andes e que se distribuem pela calha do rio até o Atlântico.
“Pode ser catastrófico para toda a Amazônia”, adverte Fearnside, que tem uma série de artigos publicados sobre os impactos das barragens na Amazônia.
As hidrelétricas já atingem 26 microbacias do Madeira e com impactos que até hoje são monitorados por pesquisadores e organizações independentes. Mesmo assim, novos projetos de grandes e pequenas hidrelétricas estão previstos ignorando os alertas.
Composto por duas grandes usinas, Jirau e Santo Antônio, separadas por apenas 110 km de distância na cidade de Porto Velho, o complexo hidrelétrico do Rio Madeira, erguido entre 2008 e 2016, acumula conflitos e controvérsias. Pelo menos duas novas hidrelétricas estão previstas até 2029 para ampliar a capacidade de energia do complexo e atender demandas das regiões sudeste e centro oeste.
A construção de novos barramentos para usinas hidrelétricas, segundo especialistas, pode acelerar uma reação em cadeia que coloca em risco todo o ecossistema dependente dos ciclos do rio.
“Os sedimentos abaixo das hidrelétricas do Madeira já diminuíram 20%. Esses nutrientes são a base da cadeia alimentar dos plânctons, dos peixes, ou seja, de toda a vida no rio. O Madeira já enfrenta o colapso em algumas partes. Os grandes bagres não estão passando pelas barragens para fazer a desova, e isso é catastrófico. Sem contar as milhares de famílias que vivem da pesca e que foram diretamente impactadas”, observa Fearnside.
Esses nutrientes são a base da cadeia alimentar dos plânctons, dos peixes, ou seja, de toda a vida no rio. O Madeira já enfrenta o colapso em algumas partes.
Philip Fearnside, biólogo
Segundo o pesquisador, esses sedimentos estão assoreando a foz dos afluentes e as represas, o que tem também ampliado as áreas alagadas, provocando o deslocamento de pessoas, influenciando no desenvolvimento das espécies e produzindo mais gases do efeito estufa. Um dos sinais mais visíveis desses efeitos é a diminuição de peixes. Devido ao bloqueio das migrações de espécies como a dourada pelas duas barragens, a captura despencou, não apenas no Brasil, mas também na Bolívia e no Peru.
Os empreendimentos também confinaram centenas de indivíduos de uma espécie de botos em extinção, presos entre as duas barragens. A biodiversidade do Madeira abriga cerca de 60% dos peixes já identificados na Amazônia, considerado o mais biodiverso de toda bacia.
“Muitas coisas que não estavam previstas no processo de licenciamento das usinas continuam sendo ignoradas. Na cheia histórica de 2014 [que afetou mais de 100 mil pessoas em Porto Velho] a vazão do rio foi tão afetada, que se a enchente fosse 16% maior poderia haver o rompimento da barragem e um desastre muito maior. E esses riscos não estão descartados, já que com as mudanças climáticas mais cheias são previstas”, completa Fearnside.
O subdimensionamento dos impactos das hidrelétricas é acompanhado de perto pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) de Porto Velho. “Os estudos das empresas apontaram um contingente bem menor de afetados e os programas de reassentamento nunca indenizaram de forma justa os atingidos. Não colocaram em prática um plano alternativo de renda e o resultado disso são famílias migrando para serrarias e garimpos”, afirma João Marcos Rodrigues Dutra, da coordenação do MAB.
No distrito de Jaci-Paraná, por exemplo, que chegou a abrigar mais de 20 mil operários durante as obras das duas usinas e que atualmente concentra altas taxas de desmatamento, moradores relatam há anos contaminação das fontes de água por causa da elevação do lençol freático. As águas do lençol freático entraram em contato direto com as fossas, comprometendo as áreas de agricultura e poços artesianos.
Iremar Antônio Ferreira, do Instituto Madeira Vivo, chama atenção para o que chama de “mudança na cartografia social do Madeira”, um processo que segundo ele ignora os povos tradicionais que dependem de um rio saudável.
“Essa pressão das hidrelétricas e grandes projetos na calha do Madeira, que pressiona as pessoas a deixarem seus lugares mesmo contra vontade, por si só já provoca impactos sociais, culturais e coletivos drásticos”, afirma.
Os projetos energéticos colocaram o Madeira como o rio mais vulnerável da Amazônia, segundo um estudo liderado pelo geólogo Edgardo Latrubesse e publicado pela revista Nature. Até 2029 estão previstas duas novas usinas no alto Madeira, além de projetos na Bolívia e no Peru que também vão impactar a bacia.
Barragem de Tabajara exclui povos tradicionais do licenciamento
Um desses projetos, em fase de licenciamento no rio Machado, afluente do Madeira, é para construção da usina de Tabajara, proposta pela Eletronorte. Igualmente acelerado, o processo é marcado por novos conflitos e apontamentos de que os estudos não têm sido suficientes para medir os reais impactos da obra sobre a bacia do Madeira.
Um movimento formado por mais de 40 organizações da sociedade civil e movimentos sociais contra a construção da hidrelétrica apontam para “violações da legislação ambiental e dos direitos de povos indígenas e de outras populações tradicionais ameaçadas, na condução de um empreendimento sem viabilidade econômica, social e ambiental”.
O rio que treme
A ocupação humana na bacia do Madeira data mais de dez mil anos, de forma contínua, uma das cronologias mais estáveis da Amazônia. Isso explica em parte a diversidade cultural, biológica e linguística às margens do grande rio.
Nos relatos da travessia pioneira realizada entre 1742 e 1743, o aventureiro do ouro Manoel Félix de Lima, que buscava novos negócios e minas ao norte do Mato Grosso, descreve os Muras nômades do Madeira como povo bárbaro, violento e feroz. Esse período marca as primeiras investidas concretas do processo de colonização nas regiões do Madeira, e os Mura representaram uma das principais resistências a essas frentes, atacando comerciantes ou quem ousasse cruzar o Madeira.
Márcia Mura, do Coletivo Mura de Rondônia, faz um paralelo entre os diferentes períodos de exploração na bacia do Madeira e diz que o processo de aniquilamento dos povos tradicionais está diretamente ligado à degradação do rio e suas espécies.
“Nós reivindicamos o Iriru, que é o rio que treme, depois chamado de Madeira, como território ancestral dos povos indígenas da Amazônia, que ainda hoje resistem para viverem em um meio ambiente conservado”, afirma a líder indígena.
Nós reivindicamos o Iriru, que é o rio que treme, depois chamado de Madeira, como território ancestral dos povos indígenas da Amazônia.
Márcia Mura, líder indígena
O Coletivo Mura trabalha o resgate e conservação das populações tradicionais e povos indígenas do Madeira em um cenário cada vez mais pressionado. “Esses projetos, assim como no passado, insistem em levar o tal desenvolvimento para a Amazônia, como se não houvesse nada nessas comunidades. Os povos tradicionais do Madeira não precisam de hidrelétricas, de garimpo e desmatamento”, critica Márcia apontando que em diversas comunidades os efeitos da superexploração dos recursos naturais colocam comunidades ribeirinhas e povos indígenas em situação de insegurança alimentar.
Antes das hidrelétricas: Piracema nas cachoeiras do alto Madeira que foram submersas para construção das usinas de Porto Velho. A palavra piracema vem do tupi e significa “subida do peixe”. Arquivo Reprodução/Internet
Famílias migram para garimpo
Deixando as hidrelétricas para trás, seguindo rio Madeira abaixo, pela planície entre Porto Velho e até Autazes (AM), onde desemboca no Amazonas, as barreiras encontradas pelo caminho são outras: milhares de dragas de garimpo espalhadas por quase toda a extensão do rio.
De todos os tamanhos e potências, esses equipamentos que mais parecem casas flutuantes se multiplicam na mesma velocidade em que as comunidades ribeirinhas abandonam o roçado e a pesca. A atividade que foi intensa no leito do Madeira a partir da década de 1950, voltou a ocorrer ilegalmente nos últimos anos.
Com poucos incentivos para investirem na agricultura e com a queda de produção da atividade pesqueira, o garimpo seduz as famílias que já são impactadas ao longo do rio.
Mas a promessa de retorno rápido e lucrativo nem sempre se confirma na prática. Nemias Tavares, 35, largou o roçado e a pesca em Manicoré, onde trabalhava com o pai, para navegar atrás do ouro de aluvião dissolvido em micropartículas nas profundezas do Madeira.
Tavares diz não conhecer os impactos ambientais da atividade, que usa o mercúrio para concentrar o minério, e como tantos outros desafia a fiscalização em nome da “sobrevivência”.
“Eu tenho quatro filhos para criar e não temos outras oportunidades aqui na região. Se eu não me arrisco no garimpo, minha família passa necessidade”, diz.
Eu tenho quatro filhos para criar e não temos outras oportunidades aqui na região. Se eu não me arrisco no garimpo, minha família passa necessidade.
Nemias Tavares, largou o roçado, a pesca e entrou para o garimpo.
O mercúrio usado pelo garimpo e despejado no rio é absorvido pelos peixes e pelo corpo humano na ingestão dos pescados. De acordo com a OMS, os sistemas nervoso central e periférico são os mais afetados pela contaminação por mercúrio.
Um laudo da Polícia Federal confirmou contaminação por mercúrio em moradores da região do Madeira em até três vezes superior ao limite máximo considerado como “admissível” pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Além da contaminação das pessoas, o nível de mercúrio na água é de 15 a 95 vezes superior ao aceitável como máximo para consumo e uso recreativo.
A dimensão do garimpo no rio Madeira chamou atenção da imprensa em dezembro de 2021, quando mais de 300 balsas fizeram fila na altura do município de Autazes, onde garimpeiros diziam ter uma grande concentração do minério.
O movimento dos garimpeiros ganhou as manchetes dos principais jornais e obrigou uma ação da Polícia Federal e das Forças Armadas, que destruíram 131 dragas. Mas a ação acabou se mostrando ineficaz para acabar com o garimpo no Madeira.
Com apoio de políticos locais e as vistas grossas da fiscalização, as dragas seguem operando por todo o leito do rio. Em Rondônia, o governador Marcos Rocha (União Brasil) chegou a sancionar uma lei direcionada que proíbe “a destruição e inutilização de bens particulares apreendidos nas operações/fiscalizações ambientais”.
Além do garimpo, outros grandes projetos de mineração estão previstos para se instalarem no baixo Madeira, como o megaprojeto para exploração de uma mina de potássio em Autazes, que deve também impulsionar a construção de novos portos e demais estruturas.