A morte do fiscal Nisman e as novas formas de Golpe de Estado

Ainda não se conhecem os culpados pelo atentado à AMIA
Ainda não se conhecem os culpados pelo atentado à AMIA de 1994. Foto de arquivo.

A América Latina e o Caribe terão um ano especialmente difícil. O império, as transnacionais e as classes média e rica não querem mais uma década progressista, nem sequer socialdemocrata. Se não dá pela via eleitoral, o stablishment está disposto a todo tipo de golpes, suaves ou sangrentos. Nesse contexto, Argentina e Cristina não podem cair, o antecedente seria brutal para a democracia na região. O caso Nisman começa a ser parte do jogo de desestabilização.

 Por Raul Fitipaldi, para Desacato.info.* 

O tenente coronel russo da reserva, Andréi Popov, considerou que “as circunstâncias que rodeiam a morte do fiscal argentino Alberto Nisman, lembram uma típica estratégia midiática dos Estados Unidos”. Declarou a Rússia Today: “Esta situação, quando no lugar da tragédia, se encontra uma suposta ordem de detenção da presidenta (Cristina Fernández), se parece muito a uma primitiva estratégia informativa de dois passos, muito comum nos grupos midiáticos dos Estados Unidos”.

Ontem, milhares de argentinos acompanharam os parentes do fiscal Alberto Nisman, numa marcha silenciosa (se não fosse pelos twitters e mensagens telefônicas públicas dos dirigentes da oposição e dos fiscais vinculados à antiga ordem, que governou Argentina até 2001) chamada, paradoxalmente, por um grupo de fiscais que tem sobre suas costas, a pecha da omissão no caso AMIA – Associação Mutual Israelense Argentina, que teve um desfecho de 85 mortos (na sua grande maioria cidadãos argentinos), há 21 anos, e ainda não se conhecem, de fato e de direito, os culpados. O caso AMIA pode ser um atentado de um inimigo definido, como também pode ser outro desses ‘atentados’ com falsa bandeira, aos quais, no presente, nos vamos acostumando.

A mídia brasileira, seguindo o roteiro do conglomerado Clarín, e de seu irmão da oligarquia, La Nación, de imediato à morte de Nisman, sem julgar, é claro, utilizou todas as formas de redação de manchetes e títulos que permitissem fazer entender que a Presidenta Cristina, tinha mandado matar o fiscal. O álibi dessas manchetes era que Nisman denunciaria à Presidenta, acusando-a de encobertar os responsáveis do caso AMIA. Com os correr dos dias, soube-se do espantalho jurídico que iria apresentar Nisman, “ainda suicida”, e a narrativa derivou, inevitavelmente, ao campo político rumo às eleições deste ano.

O ato de homenagem a Nisman de ontem não pode ocultar as relações de serviço que o fiscal teve durante uma década com os Estados Unidos e Israel. O reconhecido jornalista Eduardo Aliverti nos lembra que “Alberto Nisman reportava diretamente aos serviços secretos dos Estados Unidos e Israel, através de suas embaixadas aqui e da faixa dos espias locais encabeçada por Antonio “Jaime” Stiuso. As provas são contundentes e estão publicadas no livro Argenleaks de Santiago O’Donnell. O governo de Cristina vinha de dar um golpe duro nos serviços de inteligência que ainda eram oriundos da ditadura, aos quais pertence Stiuso, e em 2013, o caso AMIA, teve um avanço importante (os Estados Unidos e Israel não gostaram): O Memorando Argentina-Irã, sobre a investigações do atentado de 1994.

De qualquer forma, os desdobramentos da morte de Nisman são muitos e ainda haverá outros. Toneladas de tinta foram gastas na Argentina sobre o tema e seguirão jorrando. Do nosso ponto de vista há, talvez, por mera curiosidade dos fatos, uma necessidade de contextualizar os acontecimentos da Argentina com outros que abriram a agenda sinistra de Ocidente em 2015. Dois ou três, apenas: o atentado a Charlie Hebdo, a danificação de túmulos judeus também na França e o atentando a uma sinagoga da Dinamarca. Como autor morto não declara, Nisman e os supostos terroristas também não declararam. A versão oficial é sempre a da mídia monopólica e dos interesses ocidentais, inclusive de Israel. No entanto, sempre alguém abre a boca. Nos últimos dias, escapou de Benjamin Netanyahu, o primeiro ministro israelense, um chamado desorbitado a que todos os judeus da Europa se salvem da perseguição indo residir em Israel –coincidentemente, Argentina, é um dos países da América Latina que mais judeus brindou à ocupação israelense. Quem leu algumas linhas sobre a história do sionismo lembrará afirmações parecidas nos alvores do século XX, e até um pouco antes, a partir de T. Herzl.

Bem, levantado o assunto, a curiosidade nos faz refletir sobre a situação atual de Israel, quando muitos residentes, sobre tudo de origem russa, estão deixando o país para lugares melhores economicamente, e mais calmos, e a necessidade de Israel de ganhar território colonizado e, em particular, que não prospere a tentativa palestina na ONU de julgar Israel por crimes de guerra. Parece forçar demais globalizar o caso Nisman? Talvez, mas, observem que não é uma ideia fora do contexto, e pode ter judeus que reflitam na mesma direção.

Nos últimos dias, na Argentina, milhares de judeus (boa parte progressistas) fizeram um chamado para não serem identificados como apoiadores dos ditos e posicionamentos da AMIA e da DAIA, as duas organizações oficiais da coletividade judaica na Argentina e, pró-governo de Israel. Esses outros judeus, inclusive, se distanciam dos interesses econômicos e políticos destas entidades centrais e se afastam, também, do posicionamento e atuação das mesmas, sobre o caso Nisman e, sobre tudo, sobre o papel da DAIA, AMIA e fiscais, com relação ao atentado de 1994. Também sobre os vínculos que têm estas entidades. Disso não se fala no Brasil, onde também existem judeus independentes da entidade aglutinadora.

Por fim, postas estas questões, é arriscado andar na nebulosa, mas todo jornalista tem o direito de refletir e duvidar dos fatos como são publicados, neste caso, pela grande mídia. A gasolina do jornalismo é a dúvida, sem conjugações condicionais, mas ir atrás da verdade é essencial. E o que fica em claro é que há uma forte ofensiva da direita, capitaneada pelos Estados Unidos, contra os governos, mais ou menos progressistas da América Latina, que não dispensa nenhuma oportunidade de dar golpes suaves, como se pretende na Argentina e no Brasil, ou sangrentos, como é o caso da Venezuela. Os governos não resolveram ainda de forma eficiente a regulação da mídia burguesa, por temor, por fraqueza e, também, porque todo governo tem corredores de corrupção nos seus escalões (inerentes ao exercício cotidiano da administração e dos recursos econômicos, políticos, judiciais e midiáticos) e que a população, majoritariamente continua exposta, com um bom grau de alienação, à mídia privada e aos interesses estrangeiros, transnacionais e interventores.

Voltando ao caso Nisman: o chanceler argentino, de origem judeu, Héctor Timerman, cujo pai, jornalista, foi torturado pela ditadura argentina, exigiu aos Estados Unidos não interferir na política interior do seu país (isso por tabela atinge Israel), e um dos atores do caso Nisman, jornalista de baixo perfil que, a partir de um tuíte teve a duvidosa honra de anunciar a morte do fiscal, fugiu da Argentina e está em Israel.

O curso rarefeito do affaire Nisman nos leva a uma reflexão simples, porém, não sem importância. Ou nossos governos chamam à população a defender a democracia, se unindo à população numa campanha regulatória dos meios de comunicação, que são a expressão cura do poder real, e verificam o nível de confiabilidade e lisura de juízes e setores da defesa, ou o caso Nisman pode ser um bom alerta de que tempos duros nos esperam, como sempre, aliás, para as tentativas progressistas, e o que é pior, para os mais pobres.

A direita afia os dentes, e seus patrões mundiais estão na ofensiva. A primeira década de sonhos e romances de segunda e definitiva independência, do século XXI, morreu; a Luta de Classes está de novo no centro da agenda, sem pretensões de humanizar o Capitalismo. Não se governa para todos, e em qualquer país do Mundo, os governantes terão que escolher um lado, seja na Grécia ou na América Latina. Outros atentados virão.

*Raul Fitipaldi é jornalista e co-fundador do Portal Desacato e da Cooperativa de Produção em Comunicação e Cultura – CpCC.

 Imagem: Foto de arquivo de http://www.infojusnoticias.gov.ar/

 

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