Entrevista exclusiva com Cesare Battisti.
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O ativista italiano Cesare Battisti foi recentemente a peça principal de uma disputa política entre, de um lado, o então presidente Lula e o então ministro da Justiça Tarso Genro, e, de outro, o governo da Itália e a direita brasileira, incluindo a mídia dominante no país. Ex militante do grupo Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), que atuou durante os “anos de chumbo” na Itália, Battisti foi condenado à prisão perpétua em seu país por quatro homicídios – que garante não ter cometido –, mas teve a extradição negada por Lula.
Battisti está lançando pelo país “Ao pé do muro”, pela Martins Fontes. Na entrevista a seguir, concedida com exclusividade ao Jornalismo B, fala sobre os anos de guerrilha, a relação com Lula, a mídia brasileira e as lutas que continuam.
Jornalismo B – O que te motivou a escrever esse livro?
Cesare Battisti – Sou escritor de profissão. São mais de 30 anos escrevendo. Entre romances e antologias, tenho quase 20 livros publicados. Esse livro é o terceiro de uma trilogia que escrevi aqui no Brasil (“Minha fuga sem fim” e “Ser bambu” completam a trilogia). Eu fui preso em março de 2007 e fiquei na Superintendência da Polícia Federal de Brasília. E aí comecei a escrever esse livro em 2007, terminei em 2009. Era proibido papel e caneta naquela prisão, era proibido escrever. Então eu escrevi atrás dos autos dos processos. E os presos, que gostavam muito de mim, deram um jeito de conseguir uma caneta. Eu escrevi em francês, então eles não sabiam que estava escrevendo sobre eles mesmos. E por isso as histórias que saem dali são histórias de coração, de peito aberto. Mas não é um livro sobre a cadeia. É um livro sobre o Brasil. Eu conheci o Brasil através das vozes dos presos.
O que estás esperando da repercussão desse livro?
Para mim é uma maneira de poder falar publicamente, de fazer conhecer o verdadeiro Cesare Battisti, não essa personagem que foi fabricada e vendida pela grande mídia. Eu não reconheço essa personagem, não sei de quem estão falando quando falam desse monstro Cesare Battisti. Não estão falando de mim. Não tenho nada a ver com isso aí. Então para mim é uma oportunidade para mostrar minha verdadeira imagem, o que sou.
Da mesma forma como a grande mídia taxava os grupos guerrilheiros daqui como terroristas, tu também foste taxado de terrorista, sem que fosse discutido se aquele Estado italiano era terrorista. Gostaria que falasses um pouco sobre como era aquele Estado que combateste.
Era um Estado submisso aos Estados Unidos, com o poder dividido entre a máfia e uma parte da extrema-direita. O Partido Comunista dividia o bolo com a direita, de comunista tinha só o nome. O povo estava apertado entre Stálin e Washington, e começou a reagir contra isso. Foi uma luta contra o poder, e o poder estava no Estado. É por isso que a Carta Capital me ataca, porque tem relações com eles. Foi um movimento que envolveu direta ou indiretamente um milhão de pessoas. Milhares de presos políticos, torturas, mortes, exatamente como aconteceu aqui. Mas aconteceu na Itália, no coração da Europa, em um país “democrático”. Eles sempre negaram os fatos, e continuam negando.
No que o Estado italiano hoje é diferente e no que é parecido com aquele que combateste.
Não tenho uma visão do Estado italiano hoje, mas acho que as coisas só pioraram, porque eles aniquilaram a inteligência que hoje deveria dirigir o país. As pessoas que deveriam estar administrando o país foram mortas, presas, estão refugiadas, desaparecidas. Então o que temos hoje no Estado? Há pouco tempo era o Berlusconi. O que está agora não é nem um governo, é um governo de transição. A Itália está de joelhos, está em falência total. Não tenho informações diretas do que está acontecendo lá, mas acho que as coisas pioraram ainda mais.
Os problemas que te inspiraram a lutar continuam existindo?
Continuam existindo. O que não quer dizer que devamos tomar as armas. Em um país europeu, ou como é hoje no Brasil, é um absurdo tomar as armas. É uma armadilha. Para destruir um movimento cultural, revolucionário, como era o caso na Itália nos anos 70, só assim: provocando uma resposta armada. Isso foi o início do fim.
Foi um erro tático da esquerda italiana?
Acho que foi um erro, sim. Não podemos pensar em poder ganhar com as armas. Mas, quando você tem vinte anos e vê seu melhor amigo, seu companheiro, cair na rua, executado, o que faz? Está cansado disso…vamos responder também com as armas! É fácil criticar 30 anos depois, acho que tem momento para tudo, e naquele momento nos parecia inevitável tomar as armas. Hoje acho que foi uma armadilha, nos empurraram para isso para acabarem com um movimento cultural, revolucionário. Era a única maneira que tinham de fazer isso.
Tens praticado alguma forma de militância política?
Sou militante, continuo sendo militante, através da escrita. A minha militância passa pelos livros. Estou engajado socialmente, faço uma oficina de escrita nas favelas, nas comunidades carentes, estou fazendo oficina de escrita com famílias de sem-teto no Rio de Janeiro. Minha maneira de militar é essa.
Como têm sido essas oficinas?
Estamos nos organizando. Não é fácil, porque é uma situação dramática. Pegar as crianças, reunir as crianças, é problemático. Quando conseguimos fazer é bom, porque crianças que são quase analfabetas e que de repente estão escrevendo um conto…é uma satisfação enorme. Mas estamos no início, estamos começando.
Sobre a disputa que envolveu tua permanência no Brasil, que papel desempenhou o governo, em especial o ex presidente Lula e o ex ministro da Justiça Tarso Genro? E que papel desempenhou a grande mídia?
As pessoas que leram ao menos o pedido de extradição são raras. Não digo nem o processo, apenas o pedido de extradição. A mídia nem sequer se colocou a questão de saber realmente quem eu era. A mídia não sabe nada, absolutamente nada. A mídia comprou a causa italiana, por interesses políticos e financeiros, nada mais. Ninguém leu de verdade nada sobre o meu processo na Itália nem o pedido de extradição. A mídia jogou um papel sujo, imundo. Tentou destruir uma pessoa condenando a priori, sem saber nada dessa pessoa. Era evidente que eu era um preso político. Está no pedido de extradição, está escrito. O Tarso Genro teve a coragem de enfrentar um país, de enfrentar a mídia nacional, e deu o refúgio. Aconteceu que o Supremo Tribunal Federal, à época na maioria cooptado pelos interesses italianos, invadiu o Executivo – uma coisa inconstitucional – e retirou o refúgio. Nunca tinha acontecido uma coisa dessas em nenhum país do mundo. Aconteceu. Mas o Lula não quis ceder às pressões italianas. Podemos criticá-lo, dizer tudo o que queremos, mas não se pode negar que era e é um grande estadista, e tomou a decisão de negar a extradição. O Lula não fez nada mais do que o seu dever de estadista, porque ele tinha provas na mão de que estava tomando uma decisão justa. Ninguém pode provar que ele tomou a decisão errada. Ele teve a coragem de ser coerente com o próprio papel de Chefe de Estado. Nada mais. Ele não fez outra coisa do que o próprio dever. Não é uma questão ideológica, nem de amizade. Acho que não temos as mesmas ideias políticas. Amizade, eu gostaria, mas não. Isso só foram intoxicações de uma certa mídia, nada mais. Lula tomou uma decisão justa.
Como tu vês a conjuntura política mundial, de um modo geral, e o momento da América Latina, em específico?
Sempre se falou de crise do capitalismo, e depois sempre vimos que o capitalismo ressuscitava das próprias cinzas. E eu acho que agora estamos em um momento de crise irreversível. Acredito que a América Latina está fugindo da submissão aos norte-americanos, da Europa também, dos países dominantes. Isso é uma fonte que está faltando a alguns países que viviam de graça, graças aos recursos que roubavam neste continente. Fica ainda a África, mas não vai durar. Eu acredito que o capital está se autodestruindo, porque está destruindo o valor maior do capitalismo, que é a força de trabalho. Quero dizer que quando você está substituindo o homem pela máquina, está se autodestruindo também, destruindo o próprio capitalista, porque se não tem mais força de trabalho, se não tem mais salário, quem vai comprar a mercadoria que está sendo produzida pelas máquinas? Esta é a crise que está acontecendo, que começou nos Estados Unidos em 2008, que temos agora na Europa e que vai acontecer cada vez pior, porque vamos ter uma superprodução e ninguém vai poder comprar. Talvez dure alguns anos mais, vão conseguir vender algumas geladeiras na África, mas o africano, se não trabalha, não pode comprar a geladeira. O que Marx falou está acontecendo. Eu não sei se vou ver isso. Antes da minha geração teve outra geração que lutou pela independência, pela liberdade, pela redução da carga de trabalho, assistência social, os direitos das mulheres…tudo isso foram conquistas que custaram vidas humanas, que custaram muito sangue que escorreu nas ruas. Hoje muitos pensam que isso foi presente, que os Estados deram. Não deram nada. Teve que se lutar para isso. Tudo isso custou vidas. Antes de nós foram nossos pais. Depois fomos nós, e vão ser nossos filhos. Mas eu acredito que talvez nossos filhos vão poder, enfim, recolher esse fruto.
Nos anos 70 usaste o caminho da luta armada para tentar mudar o teu país. Quais os caminhos possíveis para tentarmos mudar o mundo hoje?
Educação. Educação, educação. A pessoa informada, educada para desenvolver o sentido crítico, saber ler as notícias, saber interpretar, ter uma opinião pessoal, isso vem da Educação. Então se precisa de investimentos na Educação. E não é por acaso que não se investe muito na Educação. O capital não tem interesse de que você saiba as coisas, porque você vai se revoltar contra ele. Então hoje a revolução está na Educação. Temos que trabalhar por isso, e dar uma Educação de bom nível para todo mundo. E hoje não vamos resolver o problema lutando em um só país. Marx falava isso, e hoje a globalização é uma realidade. Não vamos fazer nada apenas em nosso próprio país.
O que mudou no teu pensamento político daquela época para hoje?
Nada. Tudo permanece. Mudam os meios, mas os princípios ficam. E as injustiças também ficaram, infelizmente. O pensamento permanece. Meu sonho é a liberdade, a justiça, o bem estar. Esse é o comunismo. É a última etapa do desenvolvimento. É riqueza para todos, nivelar para cima, não para baixo. Esse é o comunismo.
Fonte: http://jornalismob.com/
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