Por Mauro Luis Iasi.
“O perigo da meia verdade é você dizer
exatamente a metade que é mentira”.
Millôr Fernandes, A bíblia do Caos.
Ultimamente temos nos deparado constantemente com a afirmação surpreendente que tudo se resume a “narrativas”, como se o real pudesse ser relativizado pelos diversos “pontos de vista” aos quais ele seria submetido. Qualquer tentativa de estabelecer a verdade é prontamente acusada de arrogância, de querer ser o “dono da verdade”. Chegamos, então, à conclusão de que, no reino da propriedade privada, a única coisa realmente socializada é a mentira.
No livro Ideologia: uma introdução, Terry Eagleton, apesar de sustentar a tese de que a ideologia não pode ser reduzida ao conceito de “falsa consciência”, alerta para o fato de que as ideologias “contém proposições importantes que são absolutamente falsas” (tais como “os judeus são inferiores”, ou as “mulheres são menos racionais”, ou ainda que os “fornicadores serão condenados ao suplício eterno”) e se coloca a pergunta: as falsas representações da realidade seriam apenas contingentes ou, algum modo, constitutivas da ideologia (p. 27). Para dar um exemplo, no seu estilo bem-humorado, o autor britânico nos diz que se alguém afirma que o Príncipe Charles é um sujeito “ponderado e não é hediondamente feio” pode até ser verdade, mas o problema é que estaria usando tal afirmação para apoiar o poder da realeza, ou ainda, se afirmasse que o príncipe Andrew é mais inteligente que um hamster, a assertiva, ainda que verdadeira, “mas um pouco mais controversa”, deveria ser analisada na perspectiva de legitimar o poder dominante.
Utilizemos, então, Terry Eagleton para entender como certas afirmações que se escondem na justificativa da “pós-verdade” são, de fato, mentiras. Mas mais do que isso: mentiras com a intenção de legitimar alguma posição de poder. Escolho dois exemplos para nossa reflexão.
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Recentemente uma certa rádio que só toca notícias, apresentou uma entrevista com Salomão Rodrigues Filho, médico, integrante da Câmara Técnica de Psiquiatria do Conselho Federal de Medicina. Esse senhor, seguido de suas credenciais, comenta uma “pesquisa” que teria detectado o fechamento de 85 hospitais e a perda de mais de 16 mil leitos psiquiátricos e expõe, segundo seu juízo, as razões para tanto. Para o representante do CFM isso teria ocorrido por uma interpretação equivocada da lei 10.216 (da reforma psiquiátrica), sancionada em 6 de abril de 2001, por pessoas “que não têm formação medica” e são movidas por intenções “ideológicas”, o que teria determinado a “exclusão do médico da assistência psiquiátrica”.
O eminente “doutor” afirma ainda que essa “exclusão” teria levado ao surgimento dos chamados CAPS (Centro de Atendimento Psicossocial) que, segundo ele, deveriam ser chamados de CAMPS (Centro de Atendimento Médico Psicossocial). Os CAPS seriam controlados por profissionais sem formação “científica” na medicina e que não compreendeM o sofrimento mental como doença. O repórter então questiona se essa política de desospitalização não seria justamente uma resposta ao caráter notoriamente desumano dos hospícios. Diante dessa indagação, o senhor médico nega que os hospícios tenham um tal caráter, pois eles existiam em uma época anterior ao desenvolvimento de remédios e que agora o hospital, graças as novas drogas, pode operar as internação sem a desumanidade que caracterizava as antigas instituições.
A radio “que só toca notícias” passou então o resto do dia com chamadas que repetiam o essencial da entrevista: o Brasil perdeu mais de 16 mil leitos psiquiátricos por causa de uma interpretação equivocada que “excluiu o médico da atenção psiquiátrica”.
Vamos lá. Poderíamos tratar esta posição como apenas um ponto de vista numa questão tão polêmica, mas estaríamos passando por cima de algumas afirmações evidentemente falsas. Comecemos pelo mais óbvio: a política de saúde mental que institui os CAPS simplesmente não exclui o profissional de medicina! Eles trabalham com equipes interdisciplinares que incluem além do médico, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, terapeutas ocupacionais e, quando é levada à sério, deveria incluir os pacientes e seus familiares.
Nos parece evidente que este senhor está reagindo a algo diferente. Mais precisamente a perda de poder do profissional médico no quadro de uma nova proposta de atendimento. Foi essa percepção de perda que provocou uma reação na forma de uma proposta de lei denominada “ato médico”, no qual se estabelece, entre outras coisas, que somente um médico poderia ser coordenador dos CAPS.
No entanto, talvez, o elemento mais significativo esteja na própria afirmação central da suposta notícia: “o Brasil perdeu 16 mil leitos psiquiátricos”. Apresentada desta forma parece ao ouvinte que teria sido criada uma “dessasistência”, colocando o trato da saúde mental na mão de um bando de leigos com interesses políticos. Como afirmou Millôr Fernandes, nas aspas destacadas na epígrafe desta coluna, o risco de dizer uma meia verdade é centrar exatamente na parte que é mentira. A proposta da reforma psiquiátrica é exatamente apresentar um sistema de tratamento e atenção alternativo à internação. Foi justamente por isso que nos últimos 13 anos o número desses centros de atendimento e atenção registrou um crescimento de 832,2% (de 295 CAPS em 2002, chegamos a 2.455 CAPS em 2016), ao mesmo tempo em que o número de leitos de internação decresceu para menos de 40% da cifra inicial.
Existe a possibilidade de encarar o discurso do representante médico não como “mentiroso” mas, como disse em outra oportunidade o próprio Millôr, como “portador de uma verdade múltipla”. Para nós o que interessa é que, primeiro, é uma mentira, segundo, não é apenas uma mentira, ela opera uma intenção evidente: uma reação por partre de segmentos que perderam poder. Aqui não se trata apenas de uma categoria profissional, mas também de segmentos do mercado. Isto é, a indústria dos hospícios e dos medicamentos psiquiátricos.
A diferença entre o antigo hospício tradicional, com sua violência mais bruta, e o hospício que incorpora um uso mais ubíquo de drogas modernas, é em larga medida simplesmente a diferença do instrumental de contenção. A camisa de força é substituída pela contenção medicamentosa. São menos meios de tratamento do que de controle, propriamente dito. Sendo que a atenção proposta pelas CAPS não elimina nem desconsidera o uso de drogas, mas o redimensiona na exata proporção de sua real utilidade.
Então, como a ideologia está operando aqui? Repare que, no discurso apresentado, não são os segmentos médicos e a indústria do loucura (hospitalar ou farmacêutica) que “perderam” com a reforma psiquiátrica, é o “Brasil”. Não se trata de uma posição política em defesa de interesses mercantis, mas do debate entre uma posição “científica” contra uma “ideologia” profetizada por “leigos”. Não apenas um interesse particular é apresentado como se fosse universal, mas é representada como “ideológica” a posição que se combate, ao mesmo tempo em que o discurso reveste a si mesmo como “não-ideológico”. É incrível… e eficaz!
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Desloquemo-nos agora para a esfera da política (como se já não estivéssemos nela, não é?). O TSE, com a pompa e a circunstância que o caracteriza, prepara-se para julgar a chapa Dilma/Temer e os pobres mortais são apresentados ao curioso rito no qual a justiça é realizada.
O ministro responsável, Herman Benjamin, apresenta seu relatório. Dilma e Temer exigem prazos para apresentar sua defesa. Ministros podem pedir vistas. Em resumo, a possibilidade é que o processo venha se encerrar em 2018, quando acaba o mandato da chapa que estaria sob a possibilidade de ser cassada. O documento conta com mais de 8 mil páginas, mas a acusação pode ser resumida em uma linha: teria ou não havido contribuições irregulares para a campanha (caixa 2 e 3) e o abuso de poder materializado na compra de partidos durante a campanha de 2014?
Dois aspectos nos chamam a atenção: o teor e o sujeito da denúncia. Quanto ao teor, sem querer pular sobre o devido processo legal e o direito à ampla defesa dos acusados, nos parece que há – e isso é quase menos do que o mínimo que se pode dizer – indícios de que as contribuições que alcançaram a suntuosa marca de mais de R$ 350 milhões para a candidata petista e seu vice do PMDB, demonstram uma perniciosa relação de simbiose entre o grande capital e os candidatos e, depois, os atos de governo. Não precisamos aprofundar a análise para lembrar da relação no mínimo suspeita entre empreiteiras, bancos, agronegócio e grupos privados de saúde e de educação que contribuíram nas campanhas e as políticas de governo que os favoreceram. Do mesmo modo a “compra e venda” de deputados, senadores, governadores, prefeitos foi anunciada no Diário Oficial e nunca foi segredo.
Quando olhamos para o sujeito das denúncias é que as coisas ficam interessantes. Quem protocolou esta denúncia foi o senador Aécio Neves do PSDB! A chapa do PSDB recebeu na campanha a cifra de R$ 222,9 milhões, via de regra das mesmas empresas que financiaram a outra chapa que ele denuncia. O mesmo PSDB que, no governo FHC, usou e abusou do fato de estar no governo para comprar partidos e parlamentares na feira da política brasileira (lembremos da privatização das Teles e da emenda da reeleição, para citar apenas dois exemplos).
O mais curioso é que o próprio autor da denúncia e seu partido, agora afirmam que não é o momento de interromper o mandato do usurpador Temer. Isto é, eles acusaram, mas acreditam que não é bom apurar e julgar agora. Outro ministro, Gilmar Mendes (este é um que não mente jamais), afirma que o resultado da cassação seria a indicação de um presidente de maneira indireta, pelo Congresso. Vejam, não é uma consulta jurídica constitucional, é uma ameaça – e uma ameaça que foi bem compreendida pelos sujeitos políticos que recuam.
O TSE recebe a denúncia, demonstra vontade de apurar os fatos e reclama das “procrastinação” da defesa e das manobras que visam atrasar o processo. O usurpador, no cargo da Presidente que era sua colega de chapa, tenta defender a tese de que as campanhas deviam ser julgadas separadamente e que o PMDB, partido que nunca foi envolvido em nenhuma irregularidade, não pode ser misturado ao PT. A presidente e sua defesa, que deveriam querer ver a desgraça do usurpador, tentam defender a campanha quando ele ainda era um “querido e aguerrido militante que correu o Brasil defendendo nosso projeto e nossas propostas” (palavras proferidas por Dilma no comício depois do encerramento do primeiro turno).
A Justiça mente ao afirmar querer celeridade quando de fato protela o julgamento? A Presidente eleita em 2014 mente ao dizer que seu Vice e sua campanha respeitaram os estritos limites da lei nas contribuições financeiras e que não exerceu nenhum tipo de influência de seu cargo para favorecer sua reeleição? O Vice usurpador mente ao afirmar que sua campanha ilibada e fundada nos mais elevados princípios éticos, arrecadou separadamente e não deve ser confundida com a bandalheira de sua colega de chapa que deve estar cheia de irregularidades, mas que ele não sabia? Aécio Neves mente ao afirmar que esta preocupado com irregularidades da prestação de contas da campanha dos outros e que não aceita que alguém utilize do cargo para favorecer sua reeleição?
Mais uma vez recorro a sabedoria de Millôr: “ninguém é dono da verdade, mas a mentira tem acionistas à beça”.
Antes de adentrar no elemento ideológico, é mister constatar que há coisas que podemos identificar como mentiras. O critério pode não ser muito filosófico ou profundo, mas deve ser considerado: são mentiras porque não correspondem à verdade! Aécio não está preocupado com a corrupção no Brasil nem com as distorções do financiamento privado de campanha, a não ser com o fato de que pode ir parar na cadeia por exercer tais atos. Ele mente, é simples assim. Dilma se esforçou para transformar o Temer num “militante de nosso projeto”, mas ela mentiu para a platéia que a assistia: no fundo (e também na superfície) ela sabia da cobra que sempre foi o político peemedebista e das fontes de financiamento que tal aliança abria. Vejam, não perderei tempo com considerações foucaultianas sobre a existência ou não da verdade. Posso afirmar que a assertiva segundo a qual o Michel Temer é um militante das causas populares é mentira pelo simples fato de que ele não o é, objetivamente, lá na dimensão do real.
Ali perto de onde o TSE tenta aplicar a justiça, no Congresso Nacional, os parlamentares tentam aprovar uma lei que descriminaliza o caixa dois, ao mesmo tempo em que exigem que a ex-Presidente – que depois de cassada por fazer as “pedaladas” que, logo depois de sua deposição tornaram-se legais – tenha impugnada sua chapa nas eleições de 2014. O curioso caso de Herman Benjamin difere do magistral conto de F. Scott Fitzgerald – O curioso caso de Benjamin Button, no qual um garoto nasce velho e vai remoçando até morrer como um bebê – pelo fato de que o tempo ganha na cartola mágica da justiça uma outra dimensão na qual varia não apenas a direção em flui o rio dos anos, mas a margem do rio. O eminente magistrado, na ânsia de defender seu relatório, abandonou os argumentos jurídicos para afirmar que a seguir as procrastinações da defesa teríamos que chamar para depor “Adão e Eva”. A seguir este ritmo, o TSE em breve terá uma posição sobre a eleição de Prudente de Morais e seu vice Manoel Vitorino Pereira, porque parece que os eleitos tiveram um certo apoio dos cafeicultores.
A mentira, como vimos, não é apenas contingente à ideologia. Ela é, até certo ponto constitutiva do fenômeno. Estamos diante de um enorme esforço de encobrir o fato de que as instâncias do Estado Burguês não funcionam com a eficiência que o discurso ideológico quer nos fazer crer. As eleições são uma farsa, o parlamento é um joguete de interesses econômicos e lobbies dos mais diversos, e o judiciário com suas capas ridículas ainda tenta passar a imagem de que são guardiões de algo que eles mesmos parecem não acreditar. Mas, qual a função deste encobrimento?
As mentiras ligadas à disputa política recente mal encobrem seu caráter inverídico, como um menino com a cara cheia de chocolate diante do ovo de páscoa aberto à sua frente dizendo… “não fui eu”. Aqui, mais uma vez, devemos perseguir as questões do poder. O verdadeiro poder, isto é, aquele fundado nas relações de propriedade nas classes dominantes, parece estar empenhado em generalizar a mentira para ocultar a verdade, diluindo-a entre o mar de inverdades. Como uma cobra que troca de pele, o poder burguês se desfaz das formas que lhes foram úteis para apresentar novas para que continuem sendo eficazes. Isto significa que estão preparando a próxima mentira e ela será apresentada como a mais nova e enfim revelada… verdade.
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Fonte: Blog da Boitempo.