Não é uma efeméride “redonda”, 115 anos é um aniversário pífio, desprovido da magia numerológica, incapaz de incendiar a criatividade de pauteiros, pesquisadores e colunistas. E, no entanto, a data deveria ser lembrada anualmente a cada 13 de janeiro. Sobretudo pelos jornais – as sentinelas da memória – cujas fileiras estão cada vez mais esgarçadas e suas manchetes, cada vez menos veementes.
“Eu acuso” não marca o início do denuncismo como os apressados poderiam supor; ao contrário, é o marco inicial da caminhada da imprensa em busca da verdade e da justiça. Aquela manchete com apenas sete letras, apóstrofo, três pontos e uma exclamação converteu-se em ícone de bravura e generosidade.
Os 38 parágrafos da carta-aberta ao presidente da República Francesa, Felix Faure, terminam com oito acusações formais e nominais a generais e à própria instituição militar francesa. Foram escritos com paixão e argúcia por um famoso escritor francês e deveriam ser publicados num panfleto para ser vendido nos quiosques – a nova mídia daqueles tempos irados.
O redator-chefe do diário L’Aurore (“A Aurora – Literária, Artística e Social”), Georges Clemenceau, preferiu colocar o texto na primeira página (a continuação vem na página interna), encimado pelo título em letras garrafais ocupando as seis colunas: “Eu acuso…! Carta ao Presidente da República, por Émile Zola”. A edição vendeu 300 mil exemplares.
O Tigre, como depois ficou conhecido, pretendia transformar aquele jornal recém-lançado (começou a circular em 18/10/1897) no principal baluarte do dreyfusismo (o pequeno grupo de gente decente que não se deixara enredar pelo veneno destilado por meio da imprensa antissemita). Acreditavam na inocência do capitão judeu, Alfred Dreyfus, mas ficaram sem voz depois da vergonhosa capitulação do jornal Le Figaro às pressões militares e clericais.
O inspirado rasgo de convicção jornalística colocou Clemenceau no topo do ranking de mancheteiros de todos os tempos. Iniciou o jornalismo horizontal, trepidante e eloquente, em oposição ao verticalismo e à algidez até então vigentes. E efetivamente reverteu o affaire Dreyfus, o “caso Dreyfus”, que se arrastava havia quatro anos, abafado pelo secretismo e arbítrio da justiça militar.
Zola sabia que suas acusações infringiam a Lei de Imprensa de 1881, poderia ser processado e condenado por difamação – como de fato foi –, mas o caso seria julgado abertamente pela justiça civil e a incrível sucessão de falsificações e fraudes seria facilmente desmascarada. Zola precisou refugiar-se na Inglaterra, acabou inocentado, ainda escreveu um romance – Verité (inspirado no caso Dreyfus) – e morreu misteriosamente em 1902, em casa, intoxicado pela fumaça da lareira. Persistem até hoje fortes suspeitas de assassinato.
Sirenes de alerta
O caso Dreyfus pode ser visto como a emblemática explosão da Era das Ideologias. Estendeu-se ao longo de doze anos (1894-1906), mas só foi encerrado em 1945, quando alguns dos seus protagonistas foram condenados por colaborar com a ocupação nazista [ver links abaixo].
O meio-século Dreyfus ocupou metade do século 20. Marcou um momento decisivo na história da imprensa e vai muito além da guerra de manchetes travada na França entre os jornais da extrema direita que conspiravam para condenar sumariamente, por traição, o capitão Dreyfus, e a imprensa democrática e progressista que, afinal, venceu a parada e obteve sua total reabilitação.
O affaire Dreyfus deu à imprensa um status institucional. Dois dias depois da manchete “Eu acuso”, o mesmo jornal publicou a primeira lista de adesões ao manifesto dos sábios, acadêmicos, escritores e artistas dreyfusistas. Uma nova palavra e uma nova força se arremessaram na arena política: os intelectuais.
A partir daquele momento, a imprensa tornou-se a plataforma onde se desenrolaram (e ainda se desenrolam) capítulos cruciais da história moderna. No momento em que esta plataforma se expande e se fragmenta, o perigo da diluição das grandes causas torna-se perceptível. Pior: é real.
No sábado (12/1), o Nobel de Literatura Imre Kertész estava na capa do “Babelia”, o esplêndido caderno de cultura do El País, tentando invocar aquelas mesmas forças morais que ajudaram a derrotar os inimigos de Dreyfus:
“Uma crise como a atual permitiu a ascensão de Hitler ao poder. Deveriam soar todos os alarmes. Não soam.”
Kertész está com mal de Parkinson, talvez não perceba que os alarmes estão acionados e as sirenes estridentes advertem para o perigo. O milagre maior da tecnologia é tornar os ruídos tão intensos que ninguém os ouve.
Fonte: Observatório da Imprensa.