Por Gustavo Lopes, para Desacato.info.
O ano de 2016 se inicia com grande apreensão por parte dos funcionários, estudantes e professores do Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago. Com 36 anos de história, filho de uma grande luta de estudantes e professores que o idealizaram, o hospital perpassa de um cenário crítico para outro ainda indefinido, mas que garante mudanças. Trata-se de um momento delicado em que a Universidade Federal de Santa Catarina realizará o contrato de cogestão com a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), aprovada em 1º de dezembro de 2015.
A empresa está realizando levantamentos em cada setor do Hospital Universitário (HU) para estabelecer o quantitativo de profissionais que precisará repor dentro de dois anos, prazo contratual que possui para ativar plenamente a capacidade instalada do hospital-escola. No contrato, que é quase padrão, ainda serão discutidos os anexos específicos que tangem a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a aprovação voltará ao Conselho Universitário (CUn) neste início de ano.
É de conhecimento que existe um consequente processo de precarização dos hospitais que recusam a implementação da EBSERH. O estrangulamento orçamentário do governo federal atinge a qualidade da assistência prestada para a população e também do ensino na área da saúde. As comunidades universitárias de diversas instituições federais do país se mostraram mobilizadas a não aceitar esta falta de recursos perante uma suposta última saída – a incerta EBSERH.
Na UFSC não foi diferente, entre opiniões divididas lutou-se por uma discussão e decisão democrática, conquistando no último ano o direito de 7 debates institucionais, debates promovidos por diretórios acadêmicos e finalmente uma consulta pública realizada em abril de 2015 onde 75,2% do corpo estudantil e 69,82% da comunidade universitária total declarou-se contra a adesão da EBSERH.
Porém, a consulta não foi deliberativa e a aprovação da empresa ocorreu em uma polêmica sessão do Conselho Universitário no Centro de Ensino da Polícia Militar. Muitos se recusaram participar de uma decisão universitária nestas circunstâncias e um total de 30 conselheiros não compareceram ao local.
Agora aprovada, a empresa pública de direito privado que já possui 37 contratos com hospitais universitários federais e 12 ainda em processo de andamento, inicia também suas primeiras atividades no HU-UFSC, reconhecendo os setores e reunindo-se com a direção.
O Diretor do Hospital Universitário da UFSC, Profº Carlos Alberto Justos e Silva, percebe a padronização dos hospitais federais como favorável para a rede de saúde pública: “Existe boa qualidade de hospitais, porém fragilidades em se trabalhar em rede obtendo dados úteis ao SUS. Esta uniformização é desejável para que se tenha o compromisso com uma geração de dados e pesquisas de interesse do Sistema Único de Saúde. Estas mudanças podem ser passíveis de críticas, mas teremos que nos adaptar, a uniformização implica em obter dados que rebatam o mercado. Não podemos mais ficar refém do sistema privado impondo custos ao sistema público de saúde.”.
Na atual situação do hospital, o déficit de profissionais é o que está aguardando solução ainda neste ano. Os concursos provavelmente acontecerão no segundo semestre, sendo uma contratação progressiva para dar tempo aos treinamentos e capacitações adequadas aos novos funcionários. A direção estima que para atingir a capacidade de funcionamento total do hospital é necessário alcançar a contratação de 800 pessoas e a reabertura de 100 leitos.
A falta de mão de obra impede que novos leitos sejam abertos e com isso que novas áreas de especialidades sejam credenciadas. Cada leito do hospital corresponde a um quantitativo de funcionários que leva em consideração a especificidade do serviço. A Unidade de Terapia Intensiva, por exemplo, possui hoje capacidade para 20 leitos e atende apenas 10 destes. Os demais leitos da unidade, sem o quantitativo ideal de profissionais para atendê-los, estão sendo utilizados como um espaço para guardar equipamentos e entulhos.
O hospital, que também sonha com uma UTI pediátrica e uma futura ala de queimados, não pode manter a crença de que todos os seus problemas serão resolvidos agora com a EBSERH. Para a direção não existem grandes expectativas para 2016, espera-se que este ano alcance uma estabilização do processo de perda para futuramente entrar em uma possível curva de melhora.
Segundo o diretor, dificilmente ocorrerão remanejamentos de setor para os funcionários que já trabalham no local. As mudanças concentram-se na organização gerencial, enquanto a lógica departamental do organograma atual será mudada para o modelo de linhas de cuidado, que teoricamente viabiliza um cuidado processual do paciente. O superintendente do hospital também permanece sendo escolhido pela universidade, que até então tem promovido eleições e espera-se que ainda siga cumprindo desta forma.
Considerando ser um hospital que já recebeu ameaças de privatização em décadas anteriores, e que se construiu em pleno seio universitário que impulsiona a cada dia seus alunos na busca de transformações sociais, enfrentando os interesses do setor privado e construindo coletivamente, por tantos anos, uma gestão em saúde de referência a todos os hospitais de Florianópolis, espera-se também para 2016 que os estudantes e professores estejam agora atentos a não permitir uma autonomia universitária secundarizada e a perda de suas premissas de assistência e ensino historicamente construídas.
Entender a defesa do hospital, implica em conhecer sua história. Filho de uma grande mobilização dos professores, estudantes e comunidade, o HU por muito tempo foi o terreno vazio de um sonho e de uma necessidade inadiável. O movimento para a sua conquista iniciou-se desde a década de 60, composto de estudantes da saúde e de outros cursos, também futuramente com o diretório central dos estudantes e uma importante comissão formada por professores.
Foram anos de lutas e campanhas para pressionar os poderes oficiais da época. O Prof. Polydoro Ernani de São Thiago, que dá nome ao hospital, registra que o “fazer acontecer, com verbas mitigadas em um Estado pobre” não foi simples e nem sempre se manteve um otimismo crescente neste desafio de construir o próprio hospital de ensino. Com longas fases de espera, adiamentos, promessas prorrogadas e falhas na liberação de verbas, os integrantes do movimento tiveram reduzidos os seus números cada vez mais diante à aparente irrealidade, escolhendo o caminho confortável da descrença. A luta sofreu grande vexame e os estudantes e professores passaram a ser considerados visionários e utópicos.
“Uma luta que não foi fácil em época de ditadura. Apanhávamos, recebíamos ameaças frequentes de ser presos e algumas pessoas desapareciam, existia muita repressão. Quem lutava pelo hospital, era apelidado de terrorista.” Recorda o Profº Carlos Alberto Justos.
O ensino da saúde na universidade estava em crise, assim como os menos favorecidos economicamente obtinham a pior qualidade deste serviço. Estudantes tinham suas práticas nos porões do Hospital de Caridade, assistindo em condições precárias às pessoas pobres, que na época eram normalmente tratadas como “indigentes”. Enquanto nas portas de acesso às outras dependências do hospital que eram privatizadas, lia-se um aviso: “Proibido a entrada de professores e estudantes”.
Passados quase 20 anos de esforços, com inauguração em 1980, o meio científico hospitalar do HU é hoje símbolo de ensino, pesquisa e assistência para a cidade de Florianópolis. Não foi com discurso fácil que o hospital alcançou suas reconhecidas pesquisas e garantias de assistência pela medicina, uma enfermagem que avança em alta complexidade e gestão hospitalar, tecnologias de ensino cada vez mais fidedignas à prática de saúde, uma fonoaudiologia, odontologia, psicologia, serviço social, nutrição e farmácia que assistem de forma ímpar a cidade com suas consultorias em alta demanda, assim como, com portas abertas para todas as outras áreas da universidade.
“Não é ninguém que vai vir de fora e colocar leito privado aqui, será sempre o nosso pessoal aqui de dentro, independente do modelo que nos coloquem, quem vai dizer o que pensa enquanto missão desta instituição.”, disse Profº Carlos Alberto Justos e Silva. Questionado sobre a aprovação da EBSERH e a luta estudantil que se mostrou intensa nos últimos meses, o diretor também coloca o que espera do corpo universitário para este ano: “Sempre revisitem o nosso sonho da década de 60. O sonho de se ter um hospital que dignifique a saúde brasileira e que não fique refém da iniciativa privada. Não podemos ter um país onde os presidentes da república vão se tratar no Sírio Libanês. O norte é criar um sistema de saúde forte e a melhor forma de assistir a população, o vento pode nos soprar para outros lados, mas eu não posso esquecer onde fica o meu norte.”.