A maconha da lata

Por Fernando Evangelista.

– Se existisse a possibilidade de viajar no tempo…

– Já existe – ele interrompeu.

– Existindo a possibilidade de viajar no tempo, para onde o senhor iria?

Já passava das dez da noite e ninguém arredava o pé do auditório da Faculdade. Todos os lugares, os oficiais e os de improviso, estavam ocupados. Cada um se virava como podia, dando e recebendo mochiladas involuntárias.

O nobre cientista, doutor honoris causa em diversas universidades, com seus quase 80 anos, mais lúcido do que nunca e bem-humorado como sempre, deu uma resposta surpreendente:

– Se pudesse viajar no tempo, eu iria para o Rio de Janeiro em 1987.

Antes que ele pudesse explicar, alguém fez outra pergunta e a história da viagem no  tempo perdeu-se para todo o sempre. Ou quase, porque anos depois, numa outra palestra, também lotada, eu questionei o velho cientista sobre aquela data e lugar. Ele explicou. E fez a alegria da plateia.

Em setembro de 1987, tripulantes do Solana Star, barco pesqueiro de bandeira panamenha que navegava próximo à costa brasileira, despejaram 22 toneladas de maconha no mar. A maconha estava em latas de alumínio, parecidas com latas de leite em pó, cada uma de um quilo e meio.

Os tripulantes livraram-se da droga porque descobriram que a Polícia Federal brasileira, alertada pelo DEA – órgão de combate às drogas da Polícia Federal americana –, já sabia do carregamento. Para evitar o flagrante, jogaram tudo no mar.

A peripécia do Solana Star – e de seus sete tripulantes, quase todos americanos – começa na Austrália, passa por Cingapura, onde permanece alguns dias e onde teria sido abastecido com as latas, e segue em direção ao Brasil. O plano era repassar a maconha para duas outras embarcações menores no Rio e levá-la para Miami, o destino final. Não deu certo.

Os traficantes, porém, não se desesperaram. Com o barco “limpo”, fundearam calmamente no porto do Rio e, sem serem incomodados, saíram do país para nunca mais voltar. Ficou só o cozinheiro, o único tripulante preso nessa história. Condenado em primeira instância a 20 anos de prisão, foi absolvido por falta de provas pelo Tribunal Federal de Recursos.

E assim, como por encanto, 15 mil latas chegaram às praias brasileiras, concentrando-se em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tanto do lado policial, quanto do lado dos apreciadores da erva, foi um Deus nos acuda – não só pela quantidade, mas também pela qualidade da maconha.

Qualidade jamais vista na história deste país – extremamente pura e potente. No recém-lançado Verão da Lata, do jornalista Wilson Aquino, editora Leya, o delegado Antônio Royal resume o inusitado da situação: “Imagine o sujeito que é usuário de droga, está na praia, vê uma lata boiando, abre e está cheia de maconha. Quer dizer, isso é como a lâmpada do Aladim! Onde já se viu maconha boiando de graça?”.

Nunca ninguém tinha visto, nem boiando, nem de graça. Nem mesmo o experiente pescador Messias, entrevistado por Aquino: “Por causa da força da situação, eu experimentei. Fiz um charuto numa folha de banana, fiz um charutão. Dei uma, duas e não consegui dar a terceira tragada. Comecei a rir sem parar. Chamei a minha mulher, ela experimentou e aconteceu a mesma coisa: caiu na risada. A gente ficou muito louco”.

Loucos ficaram também os traficantes locais, que viram os clientes minguarem.  Ninguém precisava comprar porque todo mundo tinha, da melhor e de graça. A turma do fumacê ficou feliz da vida, os policiais furiosos e o fato entrou para a história da cultura underground brasileira.

Muitas pessoas, é bom lembrar, resgataram quantidades significativas de latas e as entregaram às autoridades. Multiplicaram-se surfistas e pescadores e o desafio policial era diferenciar quem eram os “do bem” ou “do mal”. Um delegado adotou uma solução curiosa: quem fosse pego com um abridor de latas, flanando serelepe pela praia com cara de felicidade, seria sumariamente levado para a delegacia.

Segundo testemunhas oculares, o verão carioca de 1987-1988 foi o mais festivo, pacífico e divertido da década. Pesquisas, realizadas por maconheiros profissionais e ocasionais, apontam que nos meses seguintes ao milagre da multiplicação das latas, o índice de crimes violentos caiu drasticamente. Nunca se foi tanto à praia, nunca se matou tanta aula chata e tanto trabalho inútil. Paz e amor na sua versão completa, sob a proteção do Cristo Redentor.

Depois de contar esta história, o velhinho cientista concluiu: “Naquele momento, o Brasil perdeu uma grande chance de discutir aberta e profundamente a questão das drogas. Ainda hoje, boa parte das pessoas não sabe diferenciar as drogas pesadas das drogas leves e coloca tudo no mesmo saco furado. Isto é uma tragédia”.

Numa das centenas de reportagens publicadas sobre o caso, uma é especialmente reveladora: um delegado caçador de latas, com o cigarro nas mãos, afirma: “as drogas são o mal do mundo”. A cena seguinte é de um promotor, entrevistado em casa, dizendo que quem for pego com as latas será severamente punido. Atrás do digníssimo promotor, uma estante de bebidas alcoólicas de todos os tipos.

Em novembro de 2011, psiquiatras, psicólogos e outros especialistas debateram a questão das drogas no Senado Federal. Todos, sem exceção, afirmaram: a droga que mais causa dano à sociedade é o álcool. Estudo publicado na revista inglesa The Lancet, medindo os danos à sociedade e ao usuário, coloca o álcool no topo da lista. Em segundo e terceiro lugar, estão a heroína e o crack. De acordo com este estudo, o tabaco é mais prejudicial do que a maconha.

As drogas, sejam quais forem, lícitas ou não, se parecem muito com o mar, o mesmo que acolheu e distribuiu as “latas da alegria”. Drogas consideradas leves, como a maconha, lembram um mar calmo, mais receptivo e menos ameaçador. As drogas pesadas, como a cocaína, são como um mar em tempo de ressaca.

Ambos os mares são extramente perigosos para quem os menospreza, para quem acha que pode tirar de letra e nadar de volta na hora que quiser. Muita gente se afoga antes de alcançar a terra firme. Por isso, o velho cientista tem razão ao afirmar: “só o conhecimento pode nos salvar”.

O conhecimento e um pouco de bom humor, que não faz mal a ninguém, não tem contraindicações, nem causa dependência.

Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira.

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