Por Júlia Andrade Ew.
Fotos: Patrícia Egerland
No Brasil existem mais de 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência física. A situação dessas pessoas, principalmente as mais pobres, não é nada fácil. Segundo o IBGE, por exemplo, apenas 4,7% das calçadas do Brasil são acessíveis para pessoas com deficiência física. Além de enfrentar o descaso do governo, perceptível através da insuficiência do sistema de saúde, dificuldade de acesso à educação (pois nosso sistema de educação não é inclusivo) e o desemprego, essa parte da população ainda enfrenta o preconceito vigente.
Ilustrando esse cenário, o jornal A Verdade colheu o relato uma moradora do morro do Pantanal, que se localiza próximo a Universidade Federal de Santa Catarina, na cidade de Florianópolis. Cristiane Felisberto (41 anos) teve meningite e paralisia na infância, o que gerou uma deficiência motora em uma das mãos, além do fato de que nunca pôde caminhar. Sua irmã, Ana Paula (43 anos), que auxilia em seus cuidados, também participou.
O dia-a-dia de uma mulher com deficiência na periferia
Cristiane relata que rotineiramente passa a maior parte de seus dias na cama, e têm como programação diária assistir televisão e escutar música. Passa uma média de 20 horas por dia em um colchão que não é ortopédico, pois um desses é muito caro. Afirma não sair há meses de casa. Normalmente sai de sua residência uma vez por mês ou menos, apenas por emergências médicas. “O terreno aqui é muito acidentado. Precisa de 4 a 6 pessoas pra me carregar até lá embaixo onde chega o carro. E precisa de um vizinho arranjar alguém que tenha carro também, só que em dia de chuva nenhum carro sobe até aqui em cima”, relata Cristiane.
O bairro, que além de não possuir sistema de saneamento básico (não há serviço de fornecimento de água tratada da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (CASAN) e não há coleta e tratamento de esgoto, que corre a céu aberto) nunca obteve calçamento. A “Operação Asfaltaço” da prefeitura de Florianópolis, onde foram gastos mais de 218 milhões de reais, nunca chegou nem perto da residência de Cristiane.
O transporte público, que em poucos casos é acessível a cadeirantes, também não sobe o morro. É preciso caminhar cerca de 2 quilômetros para chegar na avenida principal, onde passam os ônibus. “Como o morro é muito íngreme, seria impossível descer com a cadeira de rodas, e subir mais ainda. Dependemos sempre da solidariedade dos nossos vizinhos, que graças a Deus nos ajudam”, afirma Ana Paula, irmã da entrevistada.
Além dos problemas enfrentados pela falta de transporte público, o desemprego é outro fator a ser enfrentado pela família. Cristiane não trabalha, e Ana Paula também não, para poder cuidar de Cristiane. Na casa moram um total de 9 pessoas, das quais apenas três estavam empregadas. Com a onda do Coronavírus, as três pessoas foram demitidas, fazendo com que a única entrada da família seja o benefício de Cristiane, o BPC (Benefício de Prestação Continuada), que consiste em um salário mínimo para idosos ou pessoas com deficiência. “O valor é pouquinho, tá muito difícil. Se cortarem o BPC não sei como seria possível” afirma Cristiane sobre o benefício que no dia 02 de abril deste ano o presidente da república, Jair Bolsonaro, se opôs a ampliar através do veto a proposta que tramitou no congresso para que mais famílias tenham acesso ao benefício, não limitando o benefício a pessoas que vivem por mês com renda inferior a um quarto do salário mínimo (R$ 261,25) como é atualmente, mas a meio salário mínimo (R$522,5). O presidente também objetivou atacar o BPC através da reforma da previdência, aprovada do ano passado.
(Cristiane e Ana, em sua residência,cedem entrevista ao jornal A Verdade)
Tudo poderia ser diferente
“Eu me considero fechada, eu não posso trabalhar, não posso sair de casa de casa porque ela não pode ficar sozinha… me sinto trancada no mundinho dessa casa. Não tem opção de atividades para a Cristiane, não tem nada…Tudo podia ser diferente!” afirma Ana, irmã e cuidadora de Cristiane.
Cris, como é conhecida pela vizinhança, nunca foi a escola, e aprendeu a ler e escrever aos 35 anos, por iniciativa de seu sobrinho, que foi seu professor dentro de casa. “Gostaria muito de ter ido a escola, se dependesse de mim eu estaria lá agora! Eu gostaria também de trabalhar, poder ocupar mais a minha cabeça. Também queria conhecer o Kleiton Ramos e ir no show do Zé Neto e Cristiano”, afirma, quando questionada sobre seus sonhos. “Tenho o sonho também de conhecer a praia, que eu nunca fui!” Afirma Cristiane, que mora há 18 anos em uma capital turística conhecida como “Ilha da magia” por suas belas praias, mas só viu o mar pela sua janela, já que o lazer em Florianópolis não é acessível a pessoas com deficiência, a moradores das periferias ou a classe trabalhadora em geral. Coisas aparentemente simples, como a sociabilidade, a vontade de conhecer pessoas e lugares novos são cruelmente distantes, conforme relata nossa entrevistada.
De fato, como afirma Ana, tudo poderia ser diferente. E, com a organização das Anas e Cristianes, dos trabalhadores que mais sofrem com o descaso do governo dos banqueiros, milionários e grandes empresários, e a construção do poder popular, será.
Presidenta estadual da UP, membro da coordenação estadual do MLB, formada em Psicologia.
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