Periférica, divergente, marginal. Com o aumento, tanto da publicação de livros, como de espaços de poesia e outras atividades ligadas à arte, acumula-se também o debate em torno desse movimento, se é que se pode falar de um movimento de literatura da periferia. Existe na cidade de São Paulo cerca de 60 saraus contabilizados de modo não oficial.
Quanto à produção de livros, especialistas no assunto ponderam a dificuldade de contabilizar, mas existe um consenso de que na última década houve um salto vertiginoso, tanto de obras como de autores. De carona nesse contexto, entre os dias 15 e 17 de março ocorreu o I Seminário de Literatura da Periferia, principal atração da 1ª Feira Literária do Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso (CCJ), na cidade de São Paulo.
O evento promoveu o debate em torno da produção artística da periferia, apontando as novas possibilidades narrativas e poéticas em que as histórias e mesmo seus protagonistas diferenciam-se das grandes obras canônicas.
Da periferia, divergente
Um dos eixos das discussões questionava como as manifestações da literatura da periferia aproximam a produção literária (oral e escrita) e a ação política. Como disse o poeta Sérgio Vaz, do Sarau Cooperifa, ao Brasil de Fato, em janeiro passado, todas as nomenclaturas são boas: suburbana, alternativa, marginal, divergente. “Mas eu gosto de literatura periférica porque nos pertence. Assim como a literatura grega é feita pelos gregos, a literatura negra é feita pelos negros, a literatura periférica é feita pela periferia”, destacava.
Para Nelson Maca, professor da Universidade Católica de Salvador (Ucsal) e integrante do coletivo Blackitude, “literatura divergente” configura-se entre as melhores denominações para essa literatura não canônica. “Digo que é divergente porque o divergente deve divergir de algo que é canônico, que é o modelo. Qual é o modelo? Quem é que pode ir mais longe no Brasil? Pela lógica, é o homem, não a mulher; é o branco, e não o preto ou o vermelho; é o heterossexual e é o adulto, o cristão, e principalmente o católico. Quando a gente ataca esse padrão, a gente está divergindo”, explica.
Se proposta da poesia de Maca não é agradar ninguém, essa divergência tem que criar conflitos, pois, se não criá-los, não é divergência. Faz questão de ressaltar que admira autores como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Castro Alves, mas aponta a importância de se produzir histórias e personagens que têm a ver com o universo de pessoas como ele. “Quero mostrar que na escola se pode ler textos e livros diferentes, de assuntos que são difíceis. Falar de racismo, sexismo, homofobia, fazer um poema com um português coloquial, falar palavrão, tudo isso é tabu”, destaca.
O professor da Ucsal aponta para a importância de “territorializar” a produção artística dos textos. “Elegi falar de mim a partir da negritude. O meu território é a experiência do homem negro. Vamos supor que um grupo de escritores esteja escrevendo textos em que os protagonistas sejam homossexuais; é outro território”, explica.
Maca aponta que o “grande território brasileiro” é o território da burguesia, da elite, porque “tratam o Brasil como se fosse só deles”. “Os sem-terras, os homossexuais, todos tem que lutar pelo seu território, pela sua cultura”, completa.
Entrelaçado
Seguindo a mesma linha de Nelson Maca, o ativista cultural Ruivo Lopes, organizador do Sarau da Ocupa em um prédio ocupado por famílias sem-teto, no centro de São Paulo, reforça que não é necessário negar a literatura dominante, retrato da elite da sociedade. “A gente pode aprender com essa literatura a identificar os elementos de injustiça e desigualdade e ressignificá-los em relação a nossos pressupostos: para a luta anti-rascista, anti-machista”, explica.
Entretanto, segundo ele, a produção literária deve sempre busca a qualidade artística, “a lapidação da palavra, do verso”.“[Os ricos, a elite, a grande mídia] Riem cinicamente pra gente todos os dias. Essa é uma artimanha. A gente pode sorrir com muita raiva. É o nosso cinismo se contrapondo a pressupostos de uma sociedade dominante. Mas a literatura também não precisa descartar o verso reto, o verso seco, o verso espinhoso”, ressalta Ruivo.
Neste sentido literatura e luta política se entrelaçam a ponto de formar um dread (penteado “rasta”). Tal metáfora, utilizada por Diego Arias, do Sarau da Brasa, reforça que a literatura da periferia sempre chega num ponto em que não é mais possível distinguir “o que é política do que é a criação artística”. Por ser formadora cultural, por se inserir nesse “campo de batalha”, a literatura periférica, divergente, marginal, “põe no papel” tudo aquilo que a sociedade em que vivemos não aceita enquanto pluralidade, segundo Ruivo Lopes.
Como já afirmou Sérgio Vaz, o âmbito desse “campo de batalha”, em muitos casos, se localiza entre os limites do bairro. “Se [a poesia] atingir outras pessoas, ótimo. Mas nossa ideia é mudar isso aqui. Interferir em nossa geografia, como diz o [poeta] Marcelino Freire”, aponta Vaz.
Efêmera
Paralelamente, além do texto escrito, a produção literária da periferia está nos saraus espalhados pela cidade, até mesmo no centro. “O espaço de encontros dos escritores da periferia tem sido os saraus. Aí se ouve os versos em primeira mão. Às vezes serve como teste, às vezes serve como afirmação, mas é o grande terreiro onde o escritor estabelece alguns diálogos”, descreve Ruivo Lopes.
Dessa forma Nelson Maca pondera que nem toda boa poesia “está em livro”. “Aprendemos que boa literatura precisa ser escrita, impressa somente. Há o porém de que a oralidade é efêmera, mas temos que recuperar essa coisa de falar e ouvir poesia, fazê-la ritmada, cantada”, reflete.
A partir de 2006 o poeta Hugo Paz começou a frequentar os saraus que funcionaram como uma porta de entrada para o mundo da poesia. “Tem muitas quebradas que eu não sabia que tinham movimentos culturais e têm. Eles querem ser ouvidos e a literatura é um instrumento de expressão. E um jovem que vê o outro recitando poesia ou escrevendo um livro sente-se motivado. Talvez na escola, a professora não tenha passado desse jeito a poesia e, nos saraus, os jovens começam a se envolver; é bacana”, afirma o poeta.