A lenta digitalização das bibliotecas brasileiras

A Rede 84 - capafotos Robson RegatoPor Rafael Bravo Bucco.

LIVROS, MANUSCRITOS, partituras, gravuras, periódicos, gibis… assim como no mundo concreto, as bibliotecas digitais oferecem ao público diversos tipos de conteúdos. Mas há uma enorme diferença do lado de cá, entre nós, leitores. Em vez de sentar a uma mesa para folhear um volume ou levar para casa e devolver uma semana depois, no ambiente virtual podemos ler tudo o que desejarmos e baixar tudo o que pudermos armazenar em nossos notebooks, tablets, e-readers ou smartphones, para consultar quando e onde bem entendermos. E esse acesso amplo começa a ir além do universo das obras de domínio público ou sob licenças livres. As bibliotecas digitais mais avançadas estão entrando na lógica das instituições físicas, ou seja, estão “emprestando” qualquer título de seus acervos, mesmo os que têm copyright.

Nos Estados Unidos, onde cada estado definiu a própria política de acesso a acervos de livros digitais (os e-books, produzidos para leitura eletrônica) e digitalizados (exemplares físicos escaneados), esse modelo já funciona. Em Nova York, por exemplo, o residente que tiver uma carteirinha da biblioteca estadual pode “retirar” livros virtualmente, baixando arquivos do site. E o procedimento vale para qualquer empréstimo: de autores sob domínio público (como Edgar Allan Poe) a best-sellers contemporâneos (como J. K. Rowling). Parece ser consenso por lá que, se a biblioteca adquiriu um exemplar físico ou eletrônico do livro, tem o direito de emprestá-lo a uma pessoa por vez. De sua parte, o usuário se compromete a não copiar ou reproduzir o material e a “devolvê-lo” após certo período – ou seja, após o tempo determinado, a liberação ao conteúdo expira.

Aqui no país do futebol e do Um Computador por Aluno (UCA), o conceito mais amplo de biblioteca digital ainda é um sonho. Não há políticas públicas nesse sentido, e as iniciativas que existem são isoladas, com foco na digitalização de materiais. Uma das instituições à qual caberia capitanear ações de inclusão sociodigital, o Ministério da Educação atua timidamente: criou o site Domínio Público, que tem apenas clássicos, a maior parte com textos originais, escritos no português da época em que foram concebidos. O Fundo Nacional pelo Desenvolvimento da Educação não prevê nenhuma verba para incentivar a digitalização ou a distribuição de livros eletrônicos por bibliotecas regionais.

O Ministério da Cultura (MinC) tem uma proposta, ainda embrionária. O foco é a digitalização dos acervos existentes, e não a criação de bibliotecas digitais com variedade de títulos, de livros antigos a atuais. Por ser o passo inicial, a intenção, no momento, é estabelecer um padrão para os arquivos em formato digital. “O que tem acontecido é uma fragmentação das iniciativas de digitalização, com diversas instituições trabalhando por conta própria em seus acervos. Cada biblioteca, cada museu, tem sua lógica. Nossa intenção é chegar a um denominador comum para criar um ecossistema que atenda a todos, mas isso depende de um arranjo entre os envolvidos”, argumenta José Murilo Junior, coordenador de Cultura Digital do MinC.

Embora sem definir prazo, o ministério informa que pretende desenvolver uma rede para interligar bibliotecas, museus e outros repositórios públicos. Essa rede facilitaria o acesso a livros, fotografias, áudios e vídeos dos acervos. As instituições participantes teriam de seguir uma padronização para inserir os metadados nos documentos digitais, de modo a facilitar a indexação e a rastreabilidade dos arquivos por motores de busca. “Estamos conversando com os responsáveis pela Europeana [a principal biblioteca digital do velho continente e que reúne materiais de diversos países da União Europeia] para entender como chegar a uma arquitetura institucional e de software que facilite a integração entre muitos agentes”, diz Murilo. O tempo é curto, ele reconhece. Os acervos nacionais em domínio público precisam ser completamente digitalizados até 2020, como estabelecido nas metas do Plano Nacional de Cultura.

O que existe

A Biblioteca Nacional é o maior exemplo de esforço pela digitalização da cultura brasileira. Em 2006 inaugurou a Biblioteca Nacional Digital (BND), ambiente online onde é possível acessar e baixar o conteúdo digitalizado. Apenas obras presentes fisicamente no acervo da biblioteca estão no site. Além dos livros, há fotografias, partituras, mapas, manuscritos, gravuras e aquarelas. Mas só isso não basta para criar um modelo de biblioteca compatível com o que a tecnologia permite fazer hoje. Por isso, segundo o presidente da instituição, Galeno Amorim, está em andamento um projeto para criar uma página no site que oferecerá livros clássicos da literatura brasileira nos formatos digitais mais comuns, como PDF e HTML.

Enquanto a novidade não é lançada, a BND vem sendo procurada pelo acervo de raridades. Com 400 mil acessos e mais de 1 milhão de pesquisas mensais, ainda não tem quase nada de seus arquivos disponíveis na internet. “Acho que temos apenas 1% do acervo digitalizado”, comenta Angela Bettencourt, coordenadora de informação bibliográfica da instituição e responsável pela digitalização. Em julho, a BND abriu uma nova “ala” de seus corredores virtuais. Lançou a Hemeroteca Digital, com 5 milhões de páginas de jornais brasileiros publicados entre os séculos 19 e 20. A intenção é completar a digitalização até março de 2013, colocando no ar outras 5 milhões de páginas.

Apesar de recente, a hemeroteca já se tornou campeã de visitas pelos usuários do site. Além disso, tem sido vista como o início de uma mudança drástica na organização digital da biblioteca. Isso porque foi construída com o software livre DSpace, que permite a fácil organização e indexação de acervos. Diante do resultado positivo, decidiu-se pela reformulação de toda a BND, inicialmente concebida com programas proprietários. A nova arquitetura também usará o DSpace, com recursos avançados de navegação – como a possibilidade de criar uma conta de usuário, fazer marcações ou comentários sobre as obras e ter integração com as redes sociais.

A Brasiliana USP surgiu em 2009 com a intenção de digitalizar o acervo de obras raras. O objetivo era preservar os exemplares, reduzindo o manuseio. Hoje, soma 1,7 mil acessos por dia de usuários de Brasil, EUA e Portugal. Os arquivos estão em formato PDF. O professor Pedro Puntoni, coordenador da biblioteca, explica por quê: “Queríamos reproduzir exatamente a imagem do original. Trabalhamos apenas com as primeiras edições de livros clássicos, originais de obras raras. Por isso adotamos um formato que reproduz a imagem da página do livro”.

Segundo o professor, a intenção é preservar também o conceito de livro como objeto: “Queremos que as pessoas vejam a diagramação e o design das obras”. Para criar a Brasiliana, a USP desenvolveu a plataforma Corisco, um conjunto de softwares baseado no DSpace. O sistema recebeu camadas de customização para evitar que os navegadores precisassem de plugins ao visualizar as obras.

Devido à lei de direitos autorais, as bibliotecas digitais não têm ebooks atuais. Um esforço para oferecer conteúdo recente, no entanto, pode ser visto no projeto Scielo – onde a solução foi apostar em licenças livres. Especializado na divulgação de periódicos científicos, o Scielo foi criado em 1997 como um ambiente virtual para publicação da ciência produzida no Brasil. A iniciativa resultou de uma parceria entre a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme).

Com 373 mil artigos, tem uma equipe de 40 pessoas encarregadas de validar, segundo critérios técnicos, o conteúdo enviado para publicação, o que garante credibilidade não apenas aos textos publicados, mas ao repositório. “O sistema ainda permite fazer a marcação do texto e fazer uma citação com link para outro artigo”, comenta o fundador Rogério Meneghini.

Desde 2003, a rede se expande em um modelo de franquia segundo o qual países interessados financiam a criação de Scielos locais. Hoje existem dez repositórios distribuídos por Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Espanha, México, Portugal e Venezuela. Mais cinco estão em construção: África do Sul, Bolívia, Paraguai, Peru e Uruguai. Outra frente de crescimento foi criar uma página apenas para publicar livros. No Scielo Books é possível encontrar livros científicos, licenciados em Creative Commons, em formato PDF ou ePub. Lançada em março, a página tem 5 mil acessos diários.

Para Abel Packer, coordenador do Scielo/Fapesp, as bibliotecas digitais têm um papel social muito bem definido: “A criação de uma biblioteca deve responder a questões básicas como escopo temático, cobertura geográfica e cronológica da coleção. O objetivo da coleção pode ser preservar, mas na maioria dos casos é informar e responder a demandas de uma determinada comunidade”.

O know-how adquirido com a Scielo foi levado para outra biblioteca digital, também com foco acadêmico. Mantida pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD) surgiu em 2003, de conversas entre representantes do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), Bireme, CNPq, USP, PUC-RJ e da Universidade Federal de Santa Catarina. Hoje, é considerada a segunda maior do tipo no mundo, com mais 180 mil textos.

O modelo da BDTD é único no país. Um catálogo online reúne todas as teses e dissertações publicadas sob licenças livres nas faculdades e universidades brasileiras filiadas. O usuário pode buscar por qualquer assunto e, ao encontrar uma tese, baixar diretamente do banco de dados da instituição. A BDTD funciona como um mecanismo de busca e agregador, no qual os metadados das obras foram inseridos seguindo um padrão, e interligando instituições de Norte a Sul.

Esse é o modelo que o MinC espera colocar em pé até 2020 para criar uma central de acesso ao acervo de todas as bibliotecas públicas que não tenham foco unicamente acadêmico. Enquanto isso, os estudantes brasileiros – que ficaram no 88º lugar na classificação da Unesco e poderiam ser enormemente beneficiados com políticas públicas de acesso à cultura digital – devem se contentar com as versões digitais dos clássicos. Ou colocar a mão no bolso para ler, em suas telas, autores atuais e “protegidos” por lei. Desse jeito, em vez de copiar os EUA nas melhores práticas de inclusão digital, como o sistema da biblioteca pública de Nova York, nos resta acompanhar os estadunidenses nas compras de e-books, que cresceram 117% no ano passado, segundo pesquisa encomendada pela Câmara Brasileira do Livro.

Quem não pode ler, pode ouvir

Uma das principais instituições para promoção da acessibilidade no país, a Fundação Dorina Nowill para Cegos transcreve gratuitamente qualquer livro impresso para áudio. Basta que uma pessoa com deficiência visual comprovada faça a solicitação. A fundação também cria versões no formato Digital Accessible Information System (Daisy), que permite ler o livro no computador, por meio de sintetização do texto em som, além de possibilitar a realização de buscas por palavras e a criação de marcações.

Quem mora em São Paulo também pode retirar o áudio gravado direto na biblioteca da Dorina Nowill. Quem vive fora da capital paulista, por enquanto, precisa aguardar a remessa pelo correio do CD com o arquivo. A partir de 2013, porém, o acesso às obras vai ser feito pela internet. A fundação está montando uma biblioteca digital online. As obras poderão ser baixadas em qualquer computador.

O diferencial do projeto está no acervo. Estarão à disposição quaisquer livros, não apenas aqueles sob domínio público. A lei de direitos autorais permite que instituições como a Dorina Nowill façam adaptações de produtos culturais a fim de garantir o acesso a pessoas com deficiência. Assim, a fundação pode converter para Daisy ou audiobooks quaisquer livros solicitados. Como medida preventiva para evitar a pirataria, especialmente do material em áudio, os livros terão criptografia e só poderão ser acessados por usuários que se cadastrarem e comprovarem ter deficiência visual.

Paulo Freire para todos

Desde o início do ano, o Brasil – e o mundo! – ganharam um inestimável presente. Obras de e sobre Paulo Freire começaram a ser colocadas na web, não só em texto, mas também em áudio. Fruto de uma parceria entre o Instituto Paulo Freire (IPF) e Coletivo Digital, 2 mil páginas de livros do educador pernambucano foram convertidas para formato de audiobooks. Os arquivos estão disponíveis para download sob licenças livres e em formato de áudio aberto no site do Projeto Paulo Freire Memória e Presença.

A primeira fase, de gravação de áudio, foi concluída em julho. Sônia Couto, coordenadora do Centro de Referência Paulo Freire, lembra que a iniciativa dará acesso a pessoas com deficiência visual. “Paulo Freire apoiaria a iniciativa, feita de forma livre e colaborativa”, diz.

Além dos audiobooks, o IPF compila, organiza e preserva o pensamento do educador pernambucano. A instituição vem criando uma enorme biblioteca digital livre com conteúdos relacionados a Freire. Os materiais podem ser lidos online ou baixados. Essa biblioteca digital foi construída com base na plataforma Corisco, criada pela Brasiliana USP, a biblioteca digital da Universidade de São Paulo.

Anderson Fernandes de Alencar, coordenador do Projeto Paulo Freire Memória e Presença, conta que os trabalhos para criação da biblioteca digital começaram em 2011, com o objetivo de digitalizar todo o acervo do Instituto. São 50 mil páginas de texto, 200 vídeos e 3 mil fotos. A intenção é publicar tudo na web até o final do ano. Por enquanto, já estão no ar mais da metade dos vídeos, 35 mil páginas dos livros e as 2 mil dos audiobooks.

Fonte: Outras Mídias.

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