Por André Barrocal.
Preto 31 foi o último número sorteado legalmente em um cassino no Brasil, no Copacabana Palace, no Rio. Era quase meia-noite e naquele 30 de abril de 1946 um decreto-lei do presidente Eurico Gaspar Dutra, no cargo havia três meses, ressuscitava um ato de 1941 de seu antecessor, Getúlio Vargas, a proibir todo tipo de jogatina.
Sete décadas depois, há boas chances de o Congresso aproveitar que a penumbra da meia-noite se aproxima de 2017 para mandar Dutra e Vargas às favas e liberar roletas, bingos, caça-níqueis, loterias, bicho, enfim, os jogos de azar.
Tudo com a discreta (ou nem tanto) simpatia do presidente Michel Temer, de Eunício Oliveira, comandante do Senado, de Rodrigo Maia, o da Câmara, e da maioria dos governadores, todos interessados em arranjar uma grana com a cobrança de impostos. É um debate polêmico, no entanto. E com odores de maracutaia.
A pressa pró-jogatina aumenta com a proximidade da próxima eleição, a primeira de nível nacional a ser disputada sem dinheiro doado por empresários. Como o mundo das apostas gira cash, eis uma brecha para driblar a falta do financiamento.
“É bem possível (que seja uma brecha), pois o caixa 2 pressupõe dinheiro em espécie. E só o dinheiro da jogatina, do tráfico ou de igrejas se presta a isso”, diz Eugênio Aragão, vice-procurador-geral eleitoral de 2013 a 2016.
No Congresso, o lobby, estrangeiro inclusive, corre embalado por cifras mirabolantes de receita e investimentos. Dá para imaginar o que isso significa no mais corrupto Parlamento dos anais brasileiros.
Na linha de frente da legalização está o “Centrão”, aquele bloco de partidos como PP, PTB e PRB que adora um negócio. Uma turma que usa argumentos aptos a sustentar a liberação da maconha e do aborto, temas que causam, porém, urticária na patota.
A liberação da jogatina arrepia a Procuradoria-Geral da República, convencida de que seria uma festa para certo tipo de empreendimento. “Instrumento facilitador para a ocultação de valores e lavagem de dinheiro, extremamente danoso ao combate ao crime organizado”, diz o procurador Peterson de Paula, secretário de Relações Institucionais da PGR até há pouco.
Ele assina uma nota técnica enviada ao Congresso em fevereiro de 2016 contra a legalização e já esteve duas vezes entre deputados.
A nota concentra-se em uma proposta de maio de 2014 perto de ir a votação no Senado, apresentada pelo senador piauiense Ciro Nogueira, presidente do PP. O projeto “mais amplo e permissivo” já visto em Brasília, diz De Paula, com punições “pífias” e sem mecanismos de controle de sonegação e de lavagem.
A Anfip, associação dos auditores da Receita Federal, diz não ter “a menor condição de fiscalizar”. Idem o Coaf, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras.
Aprovado o projeto, diz a PGR, haveria “dominância do crime organizado” no controle da jogatina, nada de novos empresários. Histórias de contraventores presos por jogo ilegal sobram no Brasil.
Uma das mais saborosas foi a Operação Furacão, de 2007, com a qual a Polícia Federal desmontou um esquema no Rio composto de jogo ilegal, corrupção de agentes públicos, tráfico de influência e venda de sentenças judiciais.
Além de uma penca de bicheiros e empresários, foram presos dois magistrados, um procurador e dois delegados da PF. Outra ação rumorosa foi a Operação Monte Carlo, de 2012, desarticuladora de uma organização que operava caça-níqueis e jogos de azar em Goiás. Levou à cadeia o bicheiro Carlinhos Cachoeira e à cassação do mandato do então senador pelo DEM goiano Demóstenes Torres.
Procurador atuante em Brasília, Guilherme Shelb participou na virada dos anos 1990 para os 2000 de uma ação internacional sobre máfias, italiana e espanhola, e ainda se lembra das descobertas de certo grampo telefônico enviado pela Itália. A bandidagem na mira planejava mergulhar em três negócios para branquear os lucros.
O comércio de frutas na América Central, o de minérios na Ásia e os caça-níqueis no Brasil. Caça-níqueis e pôquer eletrônico, diz Shelb, geram 80% da renda dos cassinos do mundo.
“O perfil central de consumo desses negócios é de desempregados, trabalhadores, classe média baixa”, comentou no plenário da Câmara, em um debate em dezembro de 2016. “É uma grande estratégia de exploração da economia popular.”
Uma exploração monumental, a julgar pelos números a circular no Congresso. Ciro Nogueira fala ser possível o poder público arrecadar 15 bilhões de reais com tributação. Mesma cifra propalada pela recém-criada Frente Parlamentar pela Aprovação do Marco Regulatório dos Jogos. Relator do projeto de Nogueira, o senador Fernando Bezerra Coelho, do PMDB de Pernambuco, estima 29 bilhões em três anos.
O deputado Nelson Marquezelli, do PTB, um dos mais atuantes pró-jogatina, garante: 24 bilhões no primeiro ano, 50 bilhões no segundo e 100 bilhões no terceiro. O presidente da Associação de Jogos Eletrônicos e Similares do Brasil, Arlindo Pereira Figueiredo Junior, promete investimentos de 700 bilhões de dólares.
Uma numeralha da qual dá para desconfiar de se prestar mais à sedução do que a retratar a realidade. Enquanto os bingos puderam funcionar, entre 1998 e 2002, na vigência da Lei Pelé, a receita estatal foi inferior a 150 milhões por ano.
A legalização é discutida paralelamente no Senado e na Câmara e é possível que se encontre agora no fim do ano. O andamento do projeto de Nogueira é revelador dos planos do Congresso de deixar para arriscar-se por uma ideia polêmica quando o País estiver meio desatento.
Sua votação plenária já foi marcada três vezes, sempre às vésperas das férias nacionais e parlamentares: julho de 2015, dezembro de 2015 e dezembro de 2016.
Parece que o enredo se repetirá em 2017, agora com o pretexto de arrumar grana para os estados aplicarem em segurança pública. Um pleito de 15 governadores ou vices que em 7 de novembro estiveram em Brasília com Eunício Oliveira, o presidente do Senado que acha que, “sem nenhuma hipocrisia, temos de discutir a questão dos jogos”.
Por falar em hipocrisia…
Ao justificar em 2014 por que apresentava a proposta, Nogueira afirmava por escrito que o jogo é uma “realidade social” no Brasil e que “não é o jogo que fomenta o crime, mas sua proibição”, e a legalização permitiria cobrar impostos. Argumentos que podem ser invocados para descriminalizar a maconha.
E que será que o senador pensa da cannabis? É autor de projetos com punições mais severas e, sobre isso, comentou certa vez: “Não podemos liberalizar uma série de crimes para evitar que as pessoas sejam presas. Nós temos que trabalhar para de essas pessoas não cometam esses crimes”.
O líder da Frente dos Jogos, deputado César Halum, do PRB, é outro tartufo. Um médico que fez carreira na Fecomércio do Tocantins, está no segundo mandato e, na eleição municipal de 2016 foi grampeado a confessar já ter se “prostituído” politicamente.
“O Brasil não pode querer dizer: isso (jogo) não existe”, diz ele, “tolera há 70 anos o jogo ilegal.”
O mesmo pode ser dito do aborto, não? Milhares acontecem por ano em verdadeiros açougues, a pôr em risco a vida das mulheres. É, mas Halum é da bancada (e da legenda) evangélica e não quer nem ouvir falar no assunto, como disse recentemente a um site de jogatina.
“Esse conceito de família, de ser contra o aborto, do fortalecimento da família, de ser contra essa ideologia de gênero que estão querendo aplicar no Brasil, eu comungo com isso de formação.”
O objetivo de Halum e sua Frente é forçar a votação imediata da lei da jogatina, legalização defendida publicamente pelo presidente da Câmara. A proposta pronta para decisão nasceu de uma comissão especial instalada em setembro de 2015 graças a Marquezelli, um milionário fazendeiro do interior paulista no sétimo mandato.
Para se familiarizar com roletas, baralhos e que tais, o deputado até viajou a Las Vegas, Mônaco e China.O motivo do empenho? “O jogo existe no Brasil”, diz, e o Estado poderia cobrar impostos. Fora os investimentos.
No fim de 2015, foi a um encontro da Maçonaria em Washington e ouviu algumas vezes: “E aí, quando o Brasil vai legalizar o jogo?” O lobby internacional de fato baixou no Congresso.
Tobin Prior, vice-presidente da Fertitta Entertainment, empresa de Las Vegas no ramo há 41 anos, é um dos lobistas, a prometer a parlamentares investir no Brasil em caso de “regulação e ambiente de negócios apropriado”.
A primeira audiência pública da comissão foi em dezembro de 2015, com um convidado digno do tema. Fabio Cleto, então diretor da Caixa Econômica Federal, que uma semana depois era demitido por Dilma Rousseff por suspeita de corrupção e alvo da PF na Operação Catilinárias. Hoje ele é um criminoso confesso, convertido em delator a acusar estrelas do PMDB.
A comissão aprovou a lei em agosto de 2016 e aproveitou para rebatizar os jogos de azar de “jogos da fortuna”. Obra do relator, o paulista Guilherme Mussi, autor ainda de outra gracinha: anistia geral para contraventores já punidos por jogo ilegal. Gente como Cachoeira.
Mussi pertence ao PP de Ciro Nogueira. Idem o presidente da Caixa, Gilberto Occhi, que acaba de declarar que o banco quer operar jogos de azar.
O projeto recebeu um único voto contrário na comissão, o do petista Vicente Cândido, de São Paulo. Ele até é favorável à liberação, dado que o jogo é uma realidade, mas preferia uma lei mais restritiva. “Com esse projeto vamos virar o país da jogatina”, diz.
Mais: Mussi preparou um texto que tira do Congresso e dá ao governo Temer o poder de decidir o tamanho da tributação, “e nesse governo não dá para confiar”, diz Cândido.
O impopular mandatário até que nutre certa simpatia por liberar os jogos de azar. Como presidente da Câmara entre 2009 e 2010, promoveu um debate em plenário sobre o assunto e quase pôs um projeto para votar.
Hoje em dia, Marquezelli diz e repete: Temer sancionará a lei, se aprovada. E se não for aprovada ou sancionada, a esperança dos apostadores estará no Supremo Tribunal Federal, onde uma ação de abril de 2016 surgida de um processo no Rio Grande do Sul pode liquidar a polêmica e decidir se é constitucional a jogatina no Brasil. Bingo!
Fonte: CartaCapital